Uma vez que você dá seu primeiro passeio de moto por lazer, o estrago está feito e você não quer mais parar. O que começa com pequenas expedições pelos arredores da cidade, explorando estradinhas que talvez você até já conhecesse, porém agora sob outra perspectiva, e evolui para trajetos cada vez mais longos e demorados. Então, um dia, você decide fazer sua primeira viagem de verdade – e, dizem, é um caminho sem volta.
É por isso que, para muita gente, andar de moto é mais que um passatempo ou um momento de lazer: é, literalmente, um estilo de vida. Há pessoas que jamais trocariam as viagens de moto por viagens de carro. São pessoas que acreditam que estar à mercê dos elementos em um veículo muito mais leve, cuja condução depende muito mais dos movimentos do seu corpo, traz uma sensação de conquista muito maior do que qualquer carro poderia sonhar em fazer. E isto, até certo ponto, é verdade. Não apenas porque a moto te permite se conectar de forma muito mais direta ao mundo a seu redor. Mas também por causa dos desafios extras, como o mau tempo e a limitação de espaço. Não dá para viajar com a família de moto – no máximo, com mais uma pessoa. E, claro, levando somente o necessário.
Em um carro você pode levar muito mais coisas, e ele pode até te servir de abrigo. Uma picape ou furgão podem ser transformados em pequenas casas sobre rodas, com tudo o que é preciso para ter conforto, lazer e comodidade mesmo longe de um hotel. Há pessoas que dirigem caminhões ou ônibus completamente equipados e acabam morando neles para sempre. Um estilo de vida nômade que, claro, tem seus atrativos e méritos. A moto, por outro lado, é puramente um veículo. É como um cavalo com motor e rodas – você pode ir a qualquer lugar com ela, claro, mas eventualmente vai precisar parar em algum lugar para descansar.
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Ou ao menos é o que a maioria das pessoas faz. Mas há quem leve a ideia de viajar de moto até extremos, encarando as limitações como desafios a superar, otimizando rotas e inventando novas formas de carregar toda a tralha necessária em cima da motocicleta. Gente como Emilio Scotto, um argentino nascido em 1954 que, na década de 1980, fez a viagem de moto mais longa da história, certificada pela Guinness World Records: 735.000 km em cima de uma Honda Gold Wing, apelidada “Princesa Negra”, que foi sua companheira de viagem por dez anos. Ele até escreveu um livro sobre sua aventura: The Longest Ride: My 10-Year 500,000 Mile Motorcycle Journey, que ainda não tem edição em português.
Emilio fez aquilo que muitos já sonharam em fazer – uma ideia que, a esta altura, já virou um clichê espalhado aos quatro ventos por postagem nas redes sociais: largou tudo e partiu “para conhecer o mundo e a si mesmo”, naquilo que acreditava ser sua missão nesta vida. E, desde o primeiro instante, ele estava determinado a registrar no papel suas aventuras. Contudo, Emilio acredita que fez algo diferente dos demais.
Em entrevista ao periódico equatoriano El Comercio, Emilio conta que não precisou pensar muito na decisão. Ele tinha 29 anos de idade quando abandonou seu emprego e partiu sem roteiro, sem dinheiro e sem data para voltar. Tudo o que ele tinha eram suas roupas, sua moto e o equivalente a US$ 300 no bolso. “Não foi uma decisão difícil porque não deixei nada para trás pensando em voltar, deixei para sempre. Decidi deixar o caminho que estava trilhando na vida, dar um salto no ar e cair em outro caminho, desconhecido, que não sabia onde iria me levar. Mas sabia que nunca mais seria a mesma pessoa.”
Em suas memórias, Emilio diz que começou a planejar sua viagem ao mundo aos oito anos de idade, quando ainda não fazia ideia da profissão que seguiria, mas já sabia que queria conhecer tudo o que fosse possível. A Gold Wing foi sua primeira moto – ele diz que ela a escolheu. “Uma moto preta, com carenagem, rádio, antena e alforjes nas laterais. Perto dela, uma placa dizia: ‘Sobre duas rodas, o mundo é seu’. e aquilo virou meu lema. Eu sabia que aquela moto era a moto certa”.
Na época, a Gold Wing ainda não era sinônimo de moto estradeira. Ela havia acabado de chegar à sua segunda geração, que trocava o motor boxer de 999 cm³ por uma unidade maior, de 1.085 cm³, quatro-tempos, com comando nos cabeçotes e quatro válvulas por cilindro. Era um motor sofisticado e robusto, capaz de entregar 81 cv a 7.000 rpm e 8,97 kgfm de torque a 5.700 rpm, e que provou sua durabilidade nipônica ao rodar cerca de 400.000 km antes de abrir o bico e ser substituído por um novo, que ainda rodou pelo menos 300.000 km. Quando a viagem terminou, Emilio decidiu que sua Gold Wing já havia lhe servido o suficiente, desligou o motor pela última vez e enviou a moto a um museu.
Antes de se aposentar, a Gold Wing consumiu 42.000 litros de combustível, 700 litros de óleo, 86 pneus, 12 baterias e nove bancos.
No fim da jornada, a motocicleta ostentava diversos adesivos, incluindo de patrocinadores – Pepsi, Agip e a fabricante de pneus Metzeler. Emilio, porém, sente certo orgulho quando lembra que estes apoios só foram acontecer em 1992. Em 1985, quando partiu, este tipo de negócio não existia. Ninguém patrocinava viajantes, não existiam as redes sociais ou blogs para que seu diário de viagem “viralizasse”. O conceito de “conteúdo viral”, em si, não havia sido desenvolvido ainda.
Mas Emilio começou a atrair atenção, e virou notícia. Saindo de Buenos Aires, ele partiu para o Uruguai e, em seguida, chegou ao Brasil. Estava no Rio de Janeiro duas semanas depois de deixar a capital argentina – e, lá, teve todos os seus pertences levados por ladrões. O perrengue foi superado com a ajuda da população local, que doava dinheiro e roupas, pagava por trocas de óleo e combustível, oferecia estadia ou, no mínimo, pagava uma refeição quente. E foi assim outras incontáveis vezes: Emilio disse várias vezes que o povo de cada país visitado foi a principal força que lhe ajudou a percorrer tantos quilômetros.
Emilio atravessou o Brasil de sul a norte, chegou à Venezuela e, de lá, atravessou a Amazônia para chegar à América Central. México, Estados Unidos, Canadá e Estados Unidos novamente – para, saindo de Nova York, pegar um voo até a Europa. Embora, segundo o próprio Emilio, ele tenha passado praticamente despercebido pela grande mídia nos EUA, na Europa a situação foi diferente.
O aventureiro chegou à Alemanha e seguiu ao sul. Chegando à Itália, Emilio encontrou o ídolo Maradona. O jogador o havia reconhecido de uma matéria de revista e perguntou o que podia fazer para ajudá-lo. Emilio disse que uma diária em um quarto seria o suficiente, e Maradona lhe pagou três diárias em um hotel cinco-estrelas.
“Mas eu perguntei se podia, em vez disto, alugar um quarto em uma pensão. Com o valor das três diárias do hotel, consegui dormir na pensão por um mês”, contou em uma entrevista ao The Guardian. Da Itália, Emilio seguiu para a Espanha, onde passou uma temporada escrevendo relatos de sua viagem para uma revista e conseguiu ganhar algum dinheiro – o suficiente para seguir viagem pelo continente africano.
Levou dois anos para atravessar a África, passando por terras desoladas, presenciando guerras civis e adoecendo – quase morreu de malária. Quase foi capturado por piratas na Somália. Voltou para à Europa para consertar sua moto e partiu novamente, desta vez para a Ásia. Na China, os fiscais da fronteira queriam lhe cobrar, ilegalmente, uma taxa para entrar no país – e só conseguiu se livrar por interferência do Motoclube de Pequim. Na Índia, em Nova Délhi, ele casou-se com sua noiva, Monica Pino, que havia ficado na Argentina mas decidiu acompanhá-lo na volta o continente americano, atravessando as ilhas do Pacífico de navio.
Emilio chegou a Los Angeles nove anos depois de deixar a Argentina. Tinha atravessado percorrido 580.000 km e visitado 190 países, mas seu objetivo era completar todos os 214 países de sua lista. Ele o fez quase imediatamente: atravessou o Oceano Pacífico outra vez, desembarcou no Japão e seguiu para a Rússia e os outros países do Leste Europeu. Depois, atravessou a Escandinávia e pegou carona em um cargueiro para chegar até a Islândia. De lá, mais uma viagem de barco levou Emilio e sua moto até a América do Norte. Montado na moto, Emilio desceu novamente pela América Central e passou pelos países que faltavam na América do Sul – Peru, Equador, Chile e Paraguai. E então, em 1995, sua Honda Goldwing entrou novamente em solo argentino.
Àquela altura, Emilio estava em seu 13º passaporte de 64 páginas. Na Alfândega, sua moto foi retida: ele havia ficado 10 anos com ela fora do país, e o limite era de apenas um ano. Oficialmente, a viagem terminou ali: 735.000 km percorridos de moto sem voltar ao país de origem – era esta a definição oficial do recorde para a Guinness World Records. Duas voltas ao mundo, ou quase uma viagem de ida e volta para a Lua. A marca ainda não foi superada.
Mas Emilio ainda viajou mais um pouco: fez uma turnê pela Argentina e, depois, viajou com a Gold Wing para a Espanha, onde fez um encerramento simbólico para sua expedição.
Apesar da certificação oficial, o recorde de Emilio tem seus detratores – há quem diga, por exemplo, que a última porção de sua viagem – 155.000 km em dez meses – só seria possível se ele rodasse 516 km por dia, todos os dias, sem contar paradas e eventuais quebras. Um site chamado Horizons Unlimited possui uma página bastante antiga que aponta algumas inconsistências nos relatos de Emilio para diferentes veículos quanto a distâncias e momentos marcantes da viagem, como a troca do motor de sua Gold Wing, e também menciona que o trajeto descrito por Emilio na última etapa de sua jornada deveria ter “apenas” 36.000 km.
Os pontos são pertinentes, especialmente ao lembrar que a única fonte de informação sobre a viagem de Emilio são suas fotos em outros países – em seu livro há mais de 200, nas mais variadas locações ao redor do mundo – e seus relatos, escritos ou verbais. É fato, porém, que ele viajou o mundo de moto e atravessou centenas de milhares de quilômetros.
Após a viagem, Emilio conta que ficou um tempo sem saber o que fazer – até se mudar para os Estados Unidos e abrir uma agência de turismo especializada em viagens de motocicleta, ajudando outras pessoas a fazer algo parecido com o que ele próprio fez.