Entre os vários perfis de motoristas, o mais detestado em todo o mundo talvez seja o chamado “dono da esquerda”: aquele cara que dirige na faixa da esquerda das rodovias e só sai dali quando precisa abastecer ou sair da rodovia.
Mas existe um outro tipo de “dono da faixa esquerda” que raramente é percebido ou atingido pela opinião pública: o motorista que acredita que todos devem lhe ceder passagem imediatamente, só porque a lei diz que é obrigatório, e acaba tornando-se agressivo quando contrariado. É um comportamento tão comum quanto “amarrar” a faixa da esquerda, mas igualmente inadequado e até perigoso.
Esse tipo de conflito acontece majoritariamente devido a uma má interpretação de algumas definições do Código de Trânsito Brasileiro. A primeira diz respeito às normas de circulação em vias com várias faixas:
Art. 29. O trânsito de veículos nas vias terrestres abertas à circulação obedecerá às seguintes normas:
[…]
IV – quando uma pista de rolamento comportar várias faixas de circulação no mesmo sentido, são as da direita destinadas ao deslocamento dos veículos mais lentos e de maior porte, quando não houver faixa especial a eles destinada, e as da esquerda, destinadas à ultrapassagem e ao deslocamento dos veículos de maior velocidade;
A outra dispõe sobre a conduta dos motoristas durante manobras de ultrapassagens:
Art. 30. Todo condutor, ao perceber que outro que o segue tem o propósito de ultrapassá-lo, deverá:
I – se estiver circulando pela faixa da esquerda, deslocar-se para a faixa da direita, sem acelerar a marcha;
A interpretação mais comum destes dois artigos é que a faixa de esquerda serve para ultrapassagens e veículos em maior velocidade e quem está circulando pela esquerda tem o dever de sair da frente imediatamente quando um veículo mais rápido solicitar a passagem.
“Você está fazendo isso errado”
Para alguns, o carro à frente não tem a obrigação de ceder passagem pois ele está na faixa destinada aos veículos de maior velocidade — e na velocidade máxima permitida. Para outros, ele deve ceder a passagem imediatamente, independentemente de estar no limite de velocidade pois a lei determina isso.
O conflito acontece quando o motorista à frente pensa não ter a obrigação de ceder passagem e o motorista que vem atrás acha que ele precisa sair imediatamente. O negócio é que as duas opiniões estão equivocadas. A lei não determina que o motorista mais lento deve ceder passagem imediatamente, e também não desobriga ninguém de ceder passagem por estar no limite de velocidade.
Se você continuar lendo os dois artigos, encontrará as seguintes definições:
Art. 29 […]
X – todo condutor deverá, antes de efetuar uma ultrapassagem, certificar-se de que:
a) nenhum condutor que venha atrás haja começado uma manobra para ultrapassá-lo;
b) quem o precede na mesma faixa de trânsito não haja indicado o propósito de ultrapassar um terceiro;
c) a faixa de trânsito que vai tomar esteja livre numa extensão suficiente para que sua manobra não ponha em perigo ou obstrua o trânsito que venha em sentido contrário;
Em outras palavras o item b diz que você não deve iniciar uma ultrapassagem se o veículo à sua frente já estiver indicado a intenção de ultrapassar. Isso não se aplica somente a situações de pista simples, mas também à faixa da esquerda: se o veículo da frente estiver ultrapassando um terceiro veículo, antes de solicitar a passagem você deve esperar ele concluir sua ultrapassagem. Embora não esteja escrito ipsis litteris, isso significa, na prática, que o motorista à sua frente só será obrigado a ceder passagem quando concluir sua ultrapassagem.
Além disso, releia o artigo 30: a faixa da esquerda é destinada aos veículos de maior velocidade e às ultrapassagens. Isso também significa que um veículo lento, ao se aproximar de outro veículo mais lento, deverá usar a faixa da esquerda para sua ultrapassagem. E, novamente, antes de solicitar passagem, você deverá esperar ele concluir a manobra.
Em rodovias movimentadas, com uma fila densa de veículos lentos na faixa da direita, os veículos mais velozes devem realmente circular pela faixa da esquerda, conforme diz a lei, ainda que não estejam ultrapassando. Quem está mais rápido e se aproxima de um veículo mais lento na faixa da esquerda (que, por sua vez, está mais rápido que os veículos à direita), deve manter distância segura, aguardar o término da manobra do carro à frente e só então solicitar a passagem.
Forçar a passagem “colando” na traseira do carro à frente é infração de trânsito: art. 192. Deixar de guardar distância de segurança lateral e frontal entre o seu veículo e os demais. Ultrapassar pela direita também: art. 199. Ultrapassar pela direita, salvo quando o veículo da frente estiver colocado na faixa apropriada e der sinal de que vai entrar à esquerda.
Por outro lado, o motorista que não está ultrapassando e acha que não precisa ceder passagem por estar no limite de velocidade, estará deixando de seguir os deveres previstos no artigo 30, além de estar cometendo uma infração: art. 198. Deixar de dar passagem pela esquerda, quando solicitado.
Além disso há ainda uma última recomendação no artigo 30, que pode implicar na infração prevista pelo artigo 192 (distância segura):
Art 30. […] Parágrafo único. Os veículos mais lentos, quando em fila, deverão manter distância suficiente entre si para permitir que veículos que os ultrapassem possam se intercalar na fila com segurança.
Ou seja: os veículos à direita devem manter distância suficiente para que um veículo que lhe ultrapassa ocupe o espaço à sua frente.
Infelizmente a teoria e a prática sempre acabam diferentes. Nem sempre se encontra o cenário ideal previsto pelo Código, nem sempre você encontrará motoristas que conhecem plenamente a legislação de trânsito (embora isso seja fundamental para conviver no trânsito) e por isso você deve colocar em prática a direção defensiva.
Quando todos acham que têm razão
Forçar passagem, “empurrar” o carro da frente, permanecer na faixa da esquerda, fazer frenagens bruscas desnecessárias, gesticular etc só servirá para esquentar os ânimos e iniciar um episódio de road rage que, na pior das hipóteses, terminará assim:
O motorista de trás não guarda distância segura do carro à sua frente, talvez para não perder velocidade. O motorista à frente não cede a passagem imediatamente talvez por estar mais rápido que o fluxo de veículos à direita. O motorista de trás se aproxima demais e o motorista da frente freia bruscamente.
Nesse momento o motorista do carro de trás desvia para a direita e acaba surpreendido por uma motocicleta nesta faixa (que ele não viu antes por não guardar a distância segura do carro preto à frente). Ele tenta então voltar para a faixa da esquerda, porém ao frear forte para evitar a batida, ele transferiu o peso do carro para a dianteira, deixando a traseira leve. Some isso à guinada brusca e o resultado não poderia ser outro: o carro rodou e bateu na mureta.
É uma versão potencializada do “lift-off oversteer”, que é a transferência diagonal de peso em um carro de traseira leve e com freio-motor atuante no eixo dianteiro, o que multiplica o efeito, e acontece quando você alivia o acelerador bruscamente em alta velocidade dentro uma curva em um carro de tração dianteira.
Se você não quiser arruinar sua viagem de fim de semana, ou uma semana de trabalho, tampouco destruir seu amigo de quatro rodas, seja mais paciente. Não faz sentido ter razão quando você acaba internado no hospital e com um carro destruído.