Hoje em dia mesmo os menores carros de competição são razoavelmente potentes e rápidos – como os hatches compactos que correm no WRC, o Campeonato Mundial de Rali, com seus motores 1.6 turbo de 380 cv, câmbio sequencial e tração integral, que são capazes de acelerar de zero a 100 km/h em 3,7 segundos. Há 50 anos, porém, as coisas eram obviamente diferentes.
O Renault R8 Gordini que competia nas provas de estrada na Europa, na década de 1960, é um excelente exemplo disto. Em 1966 o piloto francês Jean-François Piot foi o mais rápido de todos no Tour de Corse com seu pequeno sedã azul, movido por um quatro-cilindros de 1,3 litro com dois carburadores e 103 cv – ficando à frente de caras como o Alfa Romeo Giulia GTA e seu motor 1.6 de 170 cv; e do Porsche 911, que usava um flat-six de dois litros capaz de entregar até 210 cv. Seu segredo? Agilidade, baixo peso e resistência.
O Tour de Corse era um rali disputado em estradas de asfalto no interior da Ilha de Córsega, na França – vias estreitas, cheias de curvas fechadas e bastante técnicas e piso que não era exatamente um tapete. Neste tipo de cenário, força bruta não faz tanta diferença – usar como base para seu bólido um modelo popular, robusto, feito para consumir pouco combustível e não dar problemas mecânicos, costuma ser a chave para vencer. Outra evidência disto havia sido a vitória do Mini Cooper S no Rally Monte Carlo de 1964, que liderou do início ao fim com Paddy Hopkirk com um carro de tração dianteira com 76 cv.
A verdade é que o Tour de Corse foi quase um playground para a Renault em seus primeiros anos. A prova teve sua primeira edição, em 1956, conquistada por um Renault Dauphine, e até 1973 a fabricante francesa venceria a prova outras 11 vezes – sendo que a prova de 1973 fez parte da primeira temporada do WRC, da qual o Alpine A110 foi campeão.
A edição de 1966 era, na verdade, a terceira conquistada em sequência pelo Renault R8 Gordini. E isto levou a fabricante a lançar um mini-documentário especial de 13 minutos para enaltecer o pequeno esportivo. Se você curte material audiovisual vintage sobre carros de corrida pequenos e cheios de energia, prepare-se para um deleite.
O vídeo é todo em francês e, infelizmente, não tem legendas (nem mesmo em inglês, o que já facilitaria a vida de muita gente), mas a semelhança de algumas palavras ajuda a compreender alguma coisa. Ele mostra em detalhes o desenvolvimento a versão de competição do Renault R8. A preparação feita pela Gordini, oficina parceira da Renault que em 1968 tornou-se a primeira divisão de performance da marca, incluía o aumento da cilindrada de 956 cm³ para 1.255 cm³, aumento na taxa de compressão e instalação de dois carburadores para aumentar a potência de 48 cv para 105 cv (em um carro de 700 kg) – e atingir a velocidade máxima de 175 km/h.
Sendo uma produção francesa, o vídeo também tem uma forte pegada artística, com um belo trabalho de luz e sombra, ângulos de câmera certeiros e uma trilha sonora discreta, quase toda no piano – que, inclusive, a certa altura é usada para comparar a pilotagem do carro à precisão e ao ritmo de um pianista.
Se você quer ir direto ao ponto, o trecho que nos interessa de verdade é este aí embaixo – a mini-aula de pilotagem com Jean-François Piot. Sozinho com o R8 em uma estradinha rural francesa ele ensina algumas de suas técnicas para contornar curvas em alta velocidade: abusando do punta-tacco e escorregando a traseira na entrada e, em direção ao ponto de tangência, alinhando o carro para sair da curva apontado praticamente em linha reta.
Também é possível reparar no modo como a suspensão traseira por semi-eixos oscilantes trabalhava – havia mudanças radicais no ângulo de cambagem ao longo da curva, o que por si aumentava a tendência ao sobresterço.
Entre as modificações feitas pela Gordini, porém, estavam molas auxiliares de ar comprimido instaladas por dentro das molas helicoidais, e também uma cambagem default ligeiramente mais negativa, que aumentavam a aderência dos pneus traseiros e mitigavam parte das saídas de traseira.
Falando em pneus, outro aspecto que sempre vale a menção é justamente o comportamento dos pneus usados nos anos 1960: diagonais, com paredes mais flexíveis e perfil relativamente alto, que dobravam consideravelmente nas curvas. A inércia do motor montado na traseira, atrás do eixo, também contribuía para isto. É importante também observar que os Alpine A108 e A110 conservaram esta característica. Assim como o nosso Willys Interlagos (que era uma versão brasileira do A108), que dançava nas mãos de Bird Clemente – no Brasil, um dos mestres nesta tocada “de lado” na pista.
Se por um lado tal característica tornava os carros de corrida de antigamente mais lentos nas curvas, os pneus eram muito mais eficientes na hora de comunicar a situação do carro sobre o piso ao piloto. O resultado era uma pilotagem muito mais orgânica e, claro, divertida – tanto para quem assistia quanto para quem estava lá sentado, dentro do carro.
Jean-François Piot ainda correu de Gordini até 1968. A partir dali, participou de ralis e provas de longa duração com carros da Porsche e até mesmo com o Ford GT40, antes de retornar à Renault na década de 1970. Piot, aliás, foi um dos pilotos da equipe que venceu o Campeonato Mundial de Rali de 1973 com o Alpine A110. Ele morreu em 1980, aos 42 anos de idade, em uma acidente durante o Rali do Marrocos.