Aqui vamos tentar apaziguar um debate que é uma verdadeira Jerusalém no mundo dos petrol heads: raramente há trégua ou acordo. A relação com os simuladores de corrida se polariza entre idolatria e desprezo – este último, frequentemente relacionado à dificuldade de alguns usuários em se adaptar aos simuladores, independentemente de suas capacidades como pilotos no mundo real. Por que isso acontece?
Os argumentos se repetem dos dois lados da trincheira: os defensores dizem que ajuda a desenvolver a sensibilidade, que é essencial para conhecer autódromos novos, desenvolve e estimula o aspecto técnico, que aumenta a capacidade de concentração e, claro, que se não fosse importante, pilotos profissionais não o usariam de forma obsessiva como o fazem. Os críticos dizem que falta realismo nos programas, que a interface (a relação do piloto com o controle e a reação do carro) não é fiel e, claro, o famoso e indispensável “não tem força G, não dá referência, é inútil”. Ou ainda algo como “se bater no joguinho não acontece nada. Vai dar um pancão na pista pra ver”.
Este ponto de divergência é o início do nosso papo sobre simuladores e o mundo real. Neste post, vamos falar sobre o que pode estar por trás desta divisão de opiniões – e só depois poderemos falar sobre os simuladores em si.
Limitação cognitiva e imersão no simulador
No fundo, há razão em ambos os lados. Se um piloto que anda como um profissional na pista é um barbeiro descontrolado no simulador – e você sabe que isso não é exatamente incomum, principalmente com os pilotos mais velhos -, é óbvio que existem limitações que separam claramente o mundo virtual do real. A questão é que, em essência, estas limitações não são técnicas (como veremos ao longo desta série), mas sim cognitivas e interativas – afinal, o simulador é uma tentativa de recriação do mundo, que usa interfaces sensorialmente limitadas (além da força G, um câmbio ou pedal de embreagem de um controle, por melhor que seja, pouco tem a ver com o real) e que depende da capacidade de imersão de seu usuário para ser funcional.
É muito difícil de se contestar o realismo na reprodução dinâmica e geográfica quando vemos vídeos como este abaixo, do aclamado rFactor 2 (ainda em fase beta), mas se determinada pessoa não consegue imergir no simulador, o link homem-máquina (no caso, virtual) se perde. Neste cenário, o piloto virtual, por melhor que seja no mundo real, se torna incapaz de interagir apropriadamente com o programa – que fica inútil, não importando a sua sofisticação. É neste momento que as críticas e o desprezo emergem.
Estas dificuldades de imersão nos simuladores são mais frequentes com os pilotos que nasceram no começo da década de 1970 para trás – justamente a geração que, em sua maioria, experimentou apenas as fases mais embrionárias dos games (do Telejogo ao Super Nintendo), bidimensionais e praticamente sem compromisso em reproduzir fisicamente o mundo. Isso não acontece com todos, mas não é exatamente raro encontrar registros de pessoas mais velhas que enjoaram ao jogar games em primeira pessoa (como o Doom) ou simuladores de corrida. Jovens que não são gamers e que não passaram pela adaptação sensorial passam por exatamente o mesmo problema – especialmente ao experimentar coisas extremas, como o Mirror’s Edge. Assista o vídeo abaixo de tela cheia.
Os idosos, a medicina e os games de corrida
Games e simuladores de corrida estimulam uma atividade cerebral bastante intensa e requerem adaptação proporcional à sua complexidade. Para embasar isso e os parágrafos acima, podemos recorrer ao NeuroRacer, game para idosos desenvolvido pelos pesquisadores da Universidade da Califórnia em São Francisco (UCSF), no qual o jogador pilota em uma estrada sinuosa, cheia de placas. Ele deve apertar o botão somente quando uma determinada placa aparece e deve ignorar todas as outras. A dificuldade é crescente – tanto no percurso quanto a frequência das placas.
O ponto central, de acordo com o PhD de neurologia, psicologia e psiquiatria Adam Gazzaley (idealizador do NeuroRacer), é a multiplicidade de tarefas simultâneas (manter o carro na pista, observar e analisar as placas, reagir) que impedem que o cérebro entre no piloto automático, estimulando-o constantemente. “Geralmente, quando você fica bom em algo, fica mais fácil de fazer a tarefa e atividade cerebral se acomoda”, declarou ao Science Daily em setembro de 2013. “Mas neste jogo, quanto melhor você fica, maior a dificuldade”, completa. A dinâmica e a pluralidade de tarefas muito distintas diferenciam os jogos de corrida de outros tipos, como os de puzzles ou de plataforma – não por razões qualitativas, apenas categóricas.
Agora, a parte que nos interessa: os dados colhidos pela UCSF com eletroencefalogramas em 174 pessoas com entre 16 e 85 anos de idade mostraram mudanças relevantes no padrão das ondas de baixa frequência no sistema nervoso (especialmente o cortex pré-frontal do cérebro) envolvido no controle cognitivo dos mais idosos. Conforme os idosos se tornaram bons no NeuroRacer, suas atividades cerebrais durante a atividade assumiram padrões similares aos de jovens jogadores. É a adaptação cognitiva ao simulacro combinada ao ganho de reflexos.
Mais do que isso, a capacidade de concentração e de se manter produtivo – tanto no jogo quanto nos posteriores Testes de Variáveis de Atenção (TOVA) – se prolongaram espantosamente por até seis meses após o tratamento com o NeuroRacer, o que pode implicar em consequências positivas em outras disfunções cerebrais aparentemente desconexas, como depressão e demência, também envolvidos em funções cognitivas. “Esta pesquisa é um exemplo poderoso do quão elástico o cérebro idoso pode ser”, declarou Gazzaley. Nunca é demais, contudo, assumir estes depoimentos com certa cautela, já que eles são fonte e beneficiados em potencial ao mesmo tempo. Leia a reportagem completa neste link (veja este outro também).
Simuladores: infinitamente mais complexos para o cérebro do que o NeuroRacer?
Por ter vivência tanto com games quanto com simuladores já há alguns anos, posso falar com certo conhecimento de causa. Dentre todos os tipos de jogos e programas que você pode usar em um console ou computador, sem dúvida o simulador de corrida é uma das atividades mais exigentes para o cérebro em intensidade – para não dizer stress mental.
A princípio, você pode pensar em atividades básicas, como acelerar sem destracionar, frear sem travar as rodas, decorar o traçado, fazer a tangência usando o máximo da pista, procurar sentir o limite de aderência nas curvas e, claro, não errar. Mas, como um ex-sim racer entusiasta, posso falar que há muito, mas muito mais coisa envolvida – e a maioria delas está no processo de começar a andar no limite e desenvolver o acerto do carro, principalmente quando você tem o know how. É um parágrafo cansativo, esse a seguir – e ele acontece, digamos, on board.
Você vai para a pista. Um traçado que você já conhece, mas em um carro cru, sem ajuste algum. Freios e pneus estão frios, então você precisa se lembrar de colher as impressões dinâmicas só quando eles estiverem no range operacional. Ao longo do aquecimento, você já vai colhendo impressões sobre o escalonamento das marchas e relação de diferencial – principalmente para as curvas mais importantes (as velozes ou trechos sinuosos de média) e o retão, claro. Nas freadas velozes, como está a distribuição de frenagem? A traseira está dançando? São os freios ou a extensão dos amortecedores traseiros? A dianteira está bloqueando fácil? O carro está apontando na entrada ao seu gosto? Precisa de mais cáster? Menos carga nos amortecedores ou barra estabilizadora dianteira? Será que não é o bloqueio de diferencial em coasting que está fazendo o carro arrastar a dianteira? Ou é falta de cambagem na frente ou excesso de carga de suspensão na dianteira? Como a suspensão está apoiando nas transições? Transferindo muito peso em diagonal? No passo de curva ele mantém a frente pregada ou foi só o placebo induzido pela entrada afiada trazida pelo cáster, e depois espalha no meio da curva? Está usando bem os pneus da frente e de trás ou está sobrecarregando um dos eixos? Ao buscar o acelerador o carro espalha? Será que não tem bloqueio demais ou de menos em power? Como está a transição entre power e coasting no diferencial, está suave ou seca e arisca? Como a suspensão está copiando quando você pega bumps e zebras? Vale reduzir as cargas de alta velocidade do amortecedor? Na frente e atrás? Como está o balanço dinâmico em curvas com mais aderência aerodinâmica (média e alta) e nas com mais aderência mecânica (de baixa)? Como a carga de suspensão está reagindo com o downforce? Está dando batente em algum ponto da pista? Como estão se comportando os pneus? Precisa de mais grip em saídas de curvas lentas ou mais estabilidade nas de alta?
E aí você começa a mapear a pista, tentando desenvolver uma regulagem que privilegie mais os pontos importantes – pois é impossível ter um acerto que cubra tudo.
É uma eterna checklist, um zilhão de perguntas feitas e respondidas por você, às vezes simultaneamente, enquanto tenta andar no limite sem se arrebentar em um monte de pixels. Dependendo de sua experiência, a resposta envolve mais de um fator. Você vai acumulando as perguntas, sintomas e respostas, “volta” para os boxes e faz as alterações. Volta para a pista e novamente, seu cérebro começa o mesmo questionário – desta vez, mais orientado às mudanças que você fez. Muitas delas vão trazer efeitos derivados adversos, ligados a outros elementos do setup. Parece doentio, mas acredite: é saudável pracaramba. Você está, ao mesmo tempo, se concentrando na pilotagem e processando dezenas de raciocínios complexos por minuto.
Tudo isso já é algo intenso mentalmente, mas quando você é um cara como eu, acostumado a carros de turismo, e resolve se engraçar com fórmulas, o resultado é literalmente um superaquecimento cerebral. Há uns quatro anos, me engracei por alguns meses com o simulador rFactor e alguns carros de Fórmula 1 turbinados da década de 1980. Nas primeiras vezes cheguei a sentir dores de cabeça, porque estava acostumado a raciocinar em determinado ritmo – e, do nada, a frequência foi quase dobrada.
Gravei este vídeo em maio de 2010. Nem eu nem o carro não estavam 100% no ponto – depois disso, aumentei um pouco o bloqueio de diferencial para reduzir as destracionadas da roda traseira interna nas saídas de curva (por isso o vídeo com tantas tomadas externas), me acostumei melhor à agressividade do turbo lag e limpei um pouco mais a tocada. Mas mesmo depois que estava bem acostumado, sentia um pouco de sobrecarga. Com o tempo, você vai se habituando, o stress diminui e a coisa flui mais naturalmente.
Nessa época, eu estava conseguindo andar bem de kart e não fazia feio em autódromo também. No kart ao menos, eu era bem melhor do que hoje – estou em péssima forma. Eu não tenho dúvidas de que o rFactor (ou qualquer outro simulador avançado) ajuda bastante no mundo real e traz sim, mais conhecimento e sensibilidade fina – falaremos mais sobre ele e outros simuladores adiante. O que ele não faz é cobrir todas as variáveis do mundo real – aliás, longe disso.
A chave: para a adaptação cognitiva, muita insistência
A resposta já foi dada no início do post, mas vale sublinhar. Nada do que falei acima faz sentido se o piloto não consegue imergir no simulador por falta de adaptação cognitiva. E só as horas de vôo vão trazer isso.
Esta é a coisa mais importante e que separa os pilotos do mundo real que curtem e que desprezam os simuladores. O procedimento de encontrar o acerto do carro, todas as impressões dinâmicas que você colhe, tudo é bastante similar ao mundo real. Só que para a mágica acontecer, seu cérebro precisa estar adaptado tanto à interface (os controles) quanto já ter feito as conexões cognitivas que permitam que você “sinta” o carro na pista. É uma questão de treino, de hábito, de costume – e para quem nunca teve contato, pode ser uma questão de muitas horas de prática. De preferência, sem um amigo tirando sarro ao lado – jogar em grupo é sempre engraçado, mas no clima zoeira never ends dificilmente você “entra na Matrix”.
Na verdade, este período de adaptação é necessário mesmo para quem já está acostumado aos simuladores. Ao mudar de plataforma, por exemplo, do Asseto Corsa para o rFactor ou para o Project C.A.R.S., mesmo um piloto virtual habituado com a imersão não consegue render bem logo de cara. Há uma série de razões para isso: POV (ponto de vista, o que inclui da posição da câmera à distorção grande angular usada pelo sistema, o que aumenta ou reduz a percepção de velocidade), programação do force feedback do volante e claro, as diferenças que existem entre os engines (o universo de parâmetros físicos usado pelos simuladores para recriar a realidade) – especialmente no que se refere à física dos pneus. Independentemente de um simulador ser mais ou menos preciso que outro, melhor ou pior, esta necessidade de adaptação é o maior estímulo para a criação de fanboys de um ou de outro simulador: poucos são os que querem sair da zona de conforto.
E no final das contas, tudo isso vale a pena? Tirando os profissionais, cujas horas de voo nos simuladores chegam a fazer parte do programa de desenvolvimento do próprio carro, para todo o resto é uma questão pessoal. O preconceito existe, geralmente pautado por uma infantilização dos simuladores, mas como um entusiasta amador que já andou aqui e ali em alguns simuladores e pôde experimentar alguns carros bacanas em autódromos, digo que faz diferença sim – principalmente quando dá aquela estiagem (de grana ou de tempo) e você fica alguns meses sem andar no mundo real. Há ganhos em sensibilidade, percepção espacial e velocidade de raciocínio. Você não vai ficar à prova de erros (como eu mesmo cometi no vídeo abaixo), mas certamente vai percebê-los com maior antecipação.
Nos próximos posts desta série, falaremos um pouco sobre a importância da interface (os controles e a ergonomia de uso) para conseguir andar bem, sobre a complexidade dos engines e sobre dois equívocos terríveis: subestimar e superestimar os simuladores. Eles são apenas uma ferramenta para ajudá-lo em algo que é muito mais complexo e infinitamente mais divertido: pilotar no mundo real.