Quando você vai comprar um carro usado, faz questão de checar a procedência – isto é básico. Saber quem foi o dono anterior (ou quem foram os donos anteriores) nos permite ter uma noção de como aquele carro foi tratado ao longo de sua vida, e pode até evitar que você coloque uma dor de cabeça de quatro rodas na garagem. Com veículos exóticos e de coleção isto geralmente não é um problema. Se um carro for raro, exclusivo e realmente valioso, são grandes as chances de todo o seu histórico ter sido registrado, com uma lista de todos os proprietários que ele já teve e dos serviços realizados.
Veja esta Ferrari 330 GT 2+2 Series I, por exemplo. Foram feitos 627 exemplares entre novembro de 1963 e abril de 1965 – é um carro raríssimo que costuma trocar de mãos apenas em leilões ou negociações sigilosas. Quem está interessado em pagar centenas de milhares de dólares por um exemplar certamente fará questão de desbravar toda a sua história, a fim de garantir que seu investimento valerá a pena.
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Neste quesito fica difícil competir com a Ferrari 330 GT 2+2 que viemos mostrar hoje: seu primeiro dono foi ninguém menos que o próprio Enzo Ferrari.
Você deve ter visto nosso post sobre Enzo Ferrari e sua curiosa predileção pelos automóveis da Peugeot – motivada pelo fato de as duas fabricantes terem fortes relações com o estúdio de design Pininfarina, que projetou a maioria das Ferrari das décadas de 1950 a 2000 e, na década de 1960, também idealizou diversos automóveis da companhia francesa. Sabe quando você tem um amigo em comum com alguém e, por isto, acaba fazendo amizade também com aquela pessoa? Foi mais ou menos o que aconteceu.
Só que, obviamente, Enzo Ferrari também tinha suas Ferrari – que não usava o tempo todo, pois não eram carros exatamente práticos (até hoje não são, na verdade, embora existam exceções). Afinal, era preciso promover a marca, não é mesmo?
Sendo o dono e fundador da Ferrari, o Commendatore tinha alguns privilégios – entre eles, a possibilidade de dirigir diariamente os protótipos de um modelo que sequer havia sido lançado ainda. Foi isto o que ele fez por dois anos, entre 1962 e 1963, quando a 330 GT 2+2 estava prestes a ser lançada.
A Ferrari 330 GT 2+2 foi criada para atender a uma nova demanda. Já na década de 1950 a Scuderia Ferrari começou a destacar-se na Fórmula 1, primeiro no campeonato dos pilotos, com títulos de Alberto Ascari em 1952 e 1953, Juan Manuel Fangio em 1956 e Mike Hawthorn em 1958; e depois no campeonato de construtores, com títulos em 1961 e, depois, em 1964.
Com isto a Ferrari foi conquistando cada vez mais notoriedade. Seus primeiros carros de rua eram belíssimos, mas também eram pouco mais que adaptações de seus modelos de corrida – e muitos deles acabavam, de fato, sendo utilizados em competições. Contudo, à medida que os títulos se acumulavam e a popularidade aumentava, os admiradores da marca começaram a desejar carros mais luxuosos e confortáveis com o emblema do cavallino rampante. E foi por isto que a 330 GT 2+2 surgiu.
A Ferrari já havia produzido um gran turismo de quatro lugares antes – a 250 GT/E, que teve quase 1.000 exemplares fabricados entre 1959 e 1963 e contribuiu enormemente para a estabilidade financeira da marca na época. Ela era movida por um V12 Colombo de três litros e 240 cv, uma versão amansada do motor usado nos carros de corrida. O problema é que, sendo derivada da Ferrari 250, a GT/E não era exatamente espaçosa – o banco traseiro acomodava melhor duas crianças ou, no máximo, dois adultos de baixa estatura.
A 330 GT 2+2, efetivamente a substituta da 250 GT/E, melhorava este aspecto – o entre-eixos 50 mm mais longo permitia que quatro pessoas viajassem com mais conforto, havia mais espaço para a bagagem. Além disso, os freios tinham duplo circuito e o motor era um V12 mais potente, de quatro litros e 340 cv, cujo comportamento era mais suave e amigável a uma condução mais civilizada.
A Ferrari 330 GT 2+2 foi exibida ao público pela primeira vez no Salão de Bruxelas, no início de 1964. Antes disto, o próprio Enzo Ferrari aproveitou para ser “piloto de testes” do carro. O desenho do carro, assinado por ninguém menos que Tom Tjaarda, foi um sucesso entre o público.
Foram construídos dois protótipos da Ferrari 330 GT 2+2 antes do início da produção, e ambos serviram como condução para o próprio Enzo Ferrari. O primeiro protótip0, de chassi nº 3105GT, foi feito em 1961. O segundo, de nº 4085 – o carro das fotos que ilustram este post – foi concluído em 1962 e ficou em poder da fábrica por dois anos, período durante o qual foi um dos automóveis de uso pessoal de Enzo Ferrari. Além disso, a 330 GT 2+2 nº 4085 foi o carro exibido em Bruxelas, e o exemplar utilizado nas fotos de divulgação da época.
Em junho de 1964 o carro foi enviado para Luigi Chinetti, vencedor das 24 Horas de Le Mans de 1932, 1934 e 1949. Durante a Segunda Guerra Mundial, Chinetti foi morar nos Estados Unidos e abriu a primeira concessionária Ferrari em solo americano.
E nos EUA a 330 GT 2+2 nº 4085 permaneceu desde então, trocando de mãos algumas vezes ao longo das décadas – o carro teve sete donos diferentes de acordo com o site Barchetta.cc, especializado no registro de Ferrari clássicas. Por 35 anos o carro ficou no estado do Texas, e entre 2007 e 2008 passou por uma extensa restauração, durante a qual recebeu o motor do primeiro protótipo, o carro nº 3105.
Depois de ser leiloada pela Barrett Jackson Scottsdade em janeiro de 2018 e arrematada por US$ 224.400 (cerca de R$ 860.000 em conversão direta), o carro agora está à venda, por consignação, em uma loja chamada Daniel Schmitt & Co, que fica no Missouri.
No anúncio publicado no eBay, o vendedor afirma que o motor V12 foi revisado há pouco tempo e que a Ferrari funciona perfeitamente. Diz também que todo o histórico do carro, inclusive o período que passou com o próprio Enzo, está documentado em um livro chamado Ferrari: a Complete Guide to All Models, de Leonardo Acerbi, autor italiano que também é estudioso da fabricante e Modena. O preço pedido? US$ 495.500 (R$ 1.930.000, aproximadamente) – quase o dobro do valor do arremate no início do ano.