“Roads? Where we’re going, we don’t need roads”. Você deve conhecer bem a frase – foi o que Doc Brown disse a Marty McFly antes de o DeLorean partir rumo ao dia 21 de outubro de 2015. E como a máquina do tempo do Doc podia voar – como boa parte dos carros que vimos naquele futuro que nunca veio — eles realmente não precisavam de estradas.
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Mas o que acontece quando você não tem estradas, e nem um carro voador? Você precisa de um veículo capaz de atravessar qualquer coisa. Qualquer. Coisa. E nem é preciso viajar para o futuro para encontar algo assim. Na verdade, o mais certo é olhar para o passado, porque faz quase 70 anos que uma empresa do Texas criou aquele que, até hoje, é considerado o maior veículo off-road terrestre do planeta. Está certo que ele não deu muito certo, mas uma coisa é fato: sendo tão absurdamente grande, ele realmente não precisava de estradas.
Estamos falando do LeTourneau Overland Train – que sim, era feito no Texas apesar do nome francês. Ele rodou pela primeira vez, em testes, no ano de 1953, e foi criado para levar cargas pesadas a lugares inóspitos (ou trazê-las desses lugares). E ele tem esse nome porque, embora não rodasse sobre trilhos, era mesmo muito parecido com um trem convencional. Na verdade, ele parecia uma mistura de trem com um daqueles caminhões gigantescos usados para mineração.
“Overland train”, na verdade, é o nome usado para referir-se a uma série de veículos de transporte criados pelo texano Robert Gilmore LeTourneau, que nasceu em 1888 e morreu em 1969. Ele passou a maior parte de sua vida inventando maquinas pesadas, e ao fim de seus dias tinha quase 300 patentes registradas em seu nome. Foi sua empresa, a LeTourneau Technologies, quem forneceu 70% do maquinário pesado utilizado pelos Aliados durante a Segunda Guerra Mundial. E não é por acaso que a Universidade LeTourneal, na cidade de Longview, Texas, tem esse nome – e também é lá que está enterrado seu corpo. Um feito e tanto para alguém que nunca chegou a se formar engenheiro de fato, e aprendeu tudo na prática.
Começou com um novo powertrain, no qual LeTourneau trabalhava desde a virada da década de 1950. O que ele queria era criar uma forma de levar a força para as rodas sem a necessidade de diferenciais – eliminando, assim, a perda de força natural dos sistemas de transmissão convencionais.
LeTourneau criou o sistema pensando nos veículos que já fornecia – escavadeiras, guindastes e caminhões projetados especificamente para transportar tanques de guerra e munição pesada (mísseis, por exemplo). De uma forma não muito diferente das locomotivas diesel-elétricas, o sistema empregava motores elétricos, um para cada roda, alimentados por um motor a diesel que atuava como gerador. Dessa forma, era possível ter tração integral com torque imediato e sem perdas mecânicas. Não era muito diferente do Snow Cruiser, o gigante perdido na Antártida, porém os motores elétricos utilizados por LeTourneau eram muito mais potentes, e os veículos equipados com eles conseguiam transpor praticamente qualquer tipo de terreno e relevo.
Depois de testar o sistema em máquinas de terraplanagem com bons resultados, LeTourneau começou a aumentar suas ambições. Não demorou para que ele percebesse que, o arranjo permitia a instalação modular de mais geradores a diesel e segmentos – ou seja, em teoria, era possível criar um veículo infinitamente longo com vários “vagões” elétricos e quantos motores a diesel fossem necessários para alimentá-los.
Ir ao infinito e além não era preciso, mas a ideia de um gigantesco trem elétrico sem trilhos capaz de atravessar qualquer terreno não podia ser ignorada. Foi assim que LeTourneau concebeu, então, a primeira versão de seu Overland Train: o VC-12 “Tournatrain”, composto por quatro módulos – a locomotiva à frente e outros três vagões de carga com capacidade para 20 toneladas cada. Todos os módulos tinham quatro rodas, e cada roda tinha seu motor elétrico – na prática, era um veículo com tração “16×16”, sendo que todos os motores elétricos eram alimentados por um motor a diesel Cummins de 500 cv. Com mais uma locomotiva secundária e dois outros vagões de carga, o VC-12 chegou a ter capacidade máxima de 140 toneladas – suficientes, por exemplo, para levar troncos de árvores derrubadas na construção de estradas, sem se preocupar com o trajeto até o descarte.
LeTourneau ficou bastante satisfeito com sua criação. E mais gente se interessou – mais precisamente, o TRADCOM, escritório de transportes do exército americano, que precisava enviar materiais de construção para o Círculo Polar Ártico. Lá, seriam construídas uma série de estações de radar (63 no total) a fim de detectar qualquer atividade suspeita por parte da União Soviética – afinal, a Guerra Fria estava a pleno vapor e a ameaça de um apocalipse nuclear era encarada com muita seriedade. Se os soviéticos conseguissem transportar armas nucleares pelo estreito de Bering, seria o fim da humanidade. Ou ao menos era o que os Estados Unidos achavam, e tentaram evitar.
Acontece que só um veículo grande, potente e versátil como o Tournatrain poderia ser utilizado nessa empreitada. Então, LeTourneau contou com a ajuda dos engenheiros do exército para aperfeiçoar o projeto.
Foi assim que nasceu o VC-22, segunda geração do Overland Train. Ele era ainda mais absurdo: tinha nada menos que seis vagões, incluindo a locomotiva, com mais de 83 metros de comprimento. Cada um dos vagões contava com quatro rodas motrizes, novamente, e o resultado era um trem enorme, com dois motores Cummins de 400 cv, tração nas 24 rodas e capacidade de carga de 150 toneladas. Foram contruídas duas unidades em cerca de um mês.
Além do VC-22, a LeTourneau também construiu o “Sno-buggy”, nome que definitivamente não combinava com a magnitude do veículo: em vez de um trem, ele era composto por um único módulo com quatro motores elétricos e oito rodas motrizes (quatro em cada eixo). O gerador era um V12 a diesel de 28 litros igual ao motor utilizado pelo caça Lockheed P38, e não havia suspensão: os pneus de 7,3 metros de diâmetro com baixíssima pressão davam conta de amortecer quaisquer impactos. Os mesmos pneus foram usados nos Overland Trains e em outros veículos feitos pela LeTourneau. Anos mais tarde, na década de 80, eles foram aproveitados no famoso caminhão-monstro Bigfoot.
O Sno-Buggy era um veículo de testes, mas o VC-22 foi usado de verdade por um ano. Ele só foi aposentado depois de um incêndio no motor – o conserto sairia caro demais e por isso, o veículo foi levado para uma rodovia deserta no Alasca e deixado lá.
A LeTourneau não abandonou a ideia, porém, e construiu Overland Trains ainda mais complexos. O primeiro deles, chamado LCC-1 (de Logistics and Cargo Carrier), ficou pronto em 1956 e era muito parecido com os anteriores, porém tinha mais capacidade de manobrar e um motor-gerador mais potente, de 600 cv. Ele foi utilizado entre 1956 e 1962, mas problemas mecânicos o tiraram de circulação e, assim como o VC-22, ele acabou abandonado no coração do Alasca. Diferentemente dele, porém, o LCC-1 acabou resgatado pelo Yukon Transportation Museum e transformado em uma atração permanente.
Tanto o VC-22 quanto o LCC-1 podem ser vistos do espaço em imagens de satélite – incluindo os mapas do Google Maps. Dá para ter uma boa noção de seu tamanho com isso.
Acontece que R. G. LeTourneau era um cara incansável, e projetou mais um Overland Train antes de aposentar-se: o TC-497. Diferentemente de todos os outros, ele não tinha motor a diesel, mas sim quatro turbojatos a gás que somavam mais de 1.200 cv. Um dos motores ficava na locomotiva à frente, e os outros três tinham seus próprios vagões. No total, o TC-497 tinha 13 carros e somava 54 rodas (a locomotiva tinha seis rodas, e os outros carros tinham quatro). Novamente, cada roda tinha seu próprio motor elétrico, e o veículo era capaz de levar 150 toneladas de carga a 30 km/h por mais de 640 km. Era possível até mesmo aumentar a autonomia: bastava colocar mais carros, mais motores e mais reservatórios de combustível, ad infinitum.
O TC-497 foi usado em testes, e provou-se o mais ágil e versátil de todos os Overland Trains, apesar do tamanho extra. Isso porque ele era o único no qual todos os vagões esterçavam, não apenas a locomotiva. No total, o TC-497 media absurdos 164 metros de comprimento com seus 13 vagões. Ele era, de fato, o maior veículo off-road terrestre já produzido no mundo, e havia até mesmo lugar para morar dentro dele: além da sala de controle, a locomotiva abrigava camas, uma cozinha e banheiros para a tripulação.
Só que o TC-497 também foi o único que não viu serviço: embora os testes com ele tenham sido promissores, àquela altura o exército dos EUA já estava começando a empregar helicópteros de carga para transportar materiais até o Ártico. Eles eram mais rápidos e mais baratos, efetivamente matando a necessidade de levar os insumos por terra.
Como os outros Overland Trains, o TC-497 foi abandonado sem muita cerimônia quando deixou de ser útil. Mas, em vez de ficar à mercê do tempo em um deserto de neve, o veículo foi deixado no deserto do Arizona. Lá, a maior parte de suas peças foi retirada e vendida ou triturada, exceto pela cabine da locomotiva.