Podemos dizer, sem medo de errar, que a italiana Lancia é praticamente unanimidade entre os entusiastas por causa de dois modelos em especial: o belíssimo Stratos, que se tornou uma lenda dos ralis na década de 1970 e deu origem a um dos mais belos especiais de homologação de todos os tempos; e o Delta HF 4WD/Integrale, que venceu seis títulos no WRC entre 1987 e 1992 e é um dos hot hatches mais cultuados da história.
Os mais entendidos – entre os quais, certamente, estão boa parte de nossos leitores – também apreciam modelos mais antigos, como o Fulvia HF, que também fez história em ralis e provas de turismo nos anos 60 e 70; e clássicos das ruas como o Thema 8.32 e seu motor Ferrari.
Isto posto, cavando um pouco mais fundo, deparamo-nos com outros carros interessantíssimos e cheios de significado na história da Lancia. Um bom exemplo é o Lancia Aurelia, modelo fabricado entre 1950 e 1958 em versões sedã, cupê e conversível. A carroceria projetada por Felice Mario Boano, do estúdio Ghia (exceto o modelo conversível, que foi desenhado pela Pininfarina) é belíssima, e o Aurelia também possui a distinção de ser o primeiro carro produzido em série equipado com motor V6. Havia um bom motivo para isto: a Lancia procurava um motor que fosse compacto o bastante para caber em um cofre estreito, e que tivesse funcionamento suave. Com comando no bloco e um ângulo de 60° entre as bancadas de cilindros, o motor de 1.754 cm³ (arredondados para 1,8 litro) utilizado nos primeiros exemplares entregava 56 cv, mas já em 1951 foi introduzida uma versão de 1.991 cm³ (dois litros) e, de início, 70 cv – potência que no ano seguinte aumentou para 90 cv com a adoção de dois carburadores Weber e de um comando de válvulas com graduação mais agressiva. Nos anos seguintes, foram desenvolvidas versões de 2,3 e 2,5 litros do motor V6, sendo que este último chegava aos 110 cv.
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Batizado em homenagem à antiga estrada romana Via Aurelia, o Lancia Aurelia foi largamente utilizado por entusiastas do automobilismo em eventos de longa duração disputados em vias públicas pela Europa, como as famosas Mille Miglia e Targa Florio. Embora não tivesse uma equipe de fábrica que a representasse, por iniciativa de Vincenzo Lancia a companhia fornecia suporte para quem quisesse disputar corridas com seus automóveis. Um destes caras era Giovanni Bracco que, acompanhado por Umberto Maglioli, foi o segundo colocado na Mille Miglia de 1951 com seu Aurelia de motor 2.0. No mesmo ano o carro foi o primeiro em sua categoria e o 12º na classificação geral das 24 Horas de Le Mans. Na Targa Florio de 1952, os três primeiros colocados foram exemplares do Lancia Aurelia.
Agora que você já tem o contexto, podemos enfim introduzir o carro sobre o qual viemos falar: um restomod feito com base em um Lancia Aurelia 1957, inspirado pelo carro de Giovanni Bracco, porém influenciado também pelos Porsche 356 “SoCal” que surgiram no fim da década de 1930 nos EUA. O projeto, conhecido como Lancia Aurelia “Outlaw” foi tocado por uma oficina britânica chamada Thornley Kelham, sob encomenda de um cliente que não teve sua identidade revelada.
O Lancia Aurelia de Giovanni Bracco foi vendido a um colecionador mexicano pouco depois da Carrera Panamericana de 1951, da qual também participou e, logo em seguida, desapareceu por mais de meio século. Depois de ser encontrado em um celeiro dos EUA, o carro foi enviado para o Reino Unido para uma restauração criteriosa feita pela Tohrnley Kelham. Lá, constatou-se que, ainda nos anos 50, o carro teve o teto rebaixado (como um hot rod, diga-se) provavelmente em busca de melhor aerodinâmica.
O carro de Bracco ficou pronto em 2015 e estreou no Concours d’Elegance Pebble Beach, na Califórnia. Pouco depois, a Thornley Kehlman recebeu de um entusiasta californiano a encomenda de um projeto feito na mesma pegada. E assim surgiu o Lancia Aurelia Outlaw.
O primeiro passo foi encontrar um carro apropriado para servir de base – que precisasse de uma restauração, mas estivesse estruturalmente íntegro. Após algum tempo de procura, a Thornley Kelham chegou a um cupê fabricado em 1957, que foi todo desmontado e teve quaisquer indícios de corrosão tratados, preservando-se a maior quantidade possível de metal original.
O teto foi rebaixado em cerca de 7,5 cm, e reforços estruturais foram aplicados às colunas “B”, para-lamas traseiros e assoalho. Os quatro para-lamas foram alargados, e as novas proporções valorizaram a largura e o comprimento do carro, que no geral parece mais “assentado”.
Os para-choques dianteiro e traseiro foram eliminados, assim como as luzes de direção abaixo dos faróis – elas agora são integradas às luzes principais – e as calhas de chuva. A grade manteve o formato original, mas as barras verticais foram trocadas por uma tela de metal, a fim de conseguir um visual mais agressivo.
O interior foi revestido com couro marrom Connoly e recebeu bancos concha do Porsche 356 instalados bem perto do chão, compensando os centímetros perdidos para as cabeças dos ocupantes por causa do teto rebaixado. O teto foi forrado com Alcantara, e a cabine é protegida por uma discreta rollcage feita de acordo com o regulamento da FIA para corridas históricas.
A cereja do bolo é o motor V6, vindo de um Lancia Flaminia – enorme sedã de luxo fabricado pela Lancia entre 1950 e 1970. Com 2,8 litros de deslocamento e três carburadores Weber de corpo duplo, o motor entregava originalmente 165 cv, mas a Thornley Kelham instalou um sistema moderno de injeção eletrônica com corpos de borboleta individuais que, além de maior confiabilidade, garantiram um ganho de 10 cv, chegando aos 175 cv no total.
Para acompanhar o novo padrão de desempenho, o carro recebeu freios a disco nas quatro rodas e amortecedores com gás nitrogênio na suspensão – cujo arranjo original, com braços semi-arrastados na traseira e colunas deslizantes na dianteira, foi mantido. As rodas medem 15 polegadas, e são originais do Jaguar D-Type.
O resultado é um carro de comportamento mais agressivo e direto do que a potência sugere, de acordo com quem já teve a oportunidade de guiá-lo. É um carro bastante firme em baixa velocidade, como quando roda na cidade, que se torna mais macia em alta velocidade. A direção por pinhão e cremalheira não possui assistência e é bastante comunicativa. Segundo os britânicos da Car, o Aurelia Outlaw está mais para carro de corrida que para grand tourer.
Foi um projeto longo, que consumiu mais de 5.000 horas de trabalho, que foi muito bem recebido após sua estreia, e foi tão bem recebido que a Thornley Kelham já construiu outros três exemplares e está trabalhando em mais dois. O preço parte de £ 400.000, ou quase R$ 1.620.000.