Reta dos boxes. Aproximação da frenagem, placa dos 50 metros, tira o pé do acelerador, ataque sólido ao pedal do freio, traseira balança de leve, dois punta-taccos. Pista inclina pra esquerda, é preciso segurar o volante um pouco para a direita pra ficar do lado de fora. Entrada de curva num movimento suave, mas firme. Dianteira aponta à esquerda, traseira dá uma leve escorregada no trail braking, contra-esterço, não deixa espalhar, fica do lado de dentro, reaceleração plena para ataque à segunda perna, à direita…
Visualizar uma volta inteira na mente era o treino típico dos campeões na era analógica do automobilismo, de Clark, Stewart, Moss, Lauda – mais do que isso, disputas mentais eram um passatempo relativamente comum. Os colegas cronometravam e o piloto cravava o seu fim de volta – os melhores conseguiam uma diferença ínfima com suas melhores voltas reais, entre um e dois segundos, mesmo em circuitos longos, como Zandvoort ou Spa.
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Visualizar e ver são duas coisas distintas e essenciais a um piloto: o primeiro, por uma necessidade técnica, o segundo, por uma necessidade física. Mas e se você fizesse uma volta inteira em Interlagos pra valer, num carro de competição real, apenas visualizando e sem poder enxergar, ao melhor estilo “Perfume de Mulher” (1992)? E se um grupo de amigos fizesse essa arriscada loucura por você por uma limitação física sua?
De volta ao cockpit
O jornalista automotivo e piloto Douglas Mendonça (na foto abaixo, ao lado de Emerson Fittipaldi em Indianápolis), com mais de quatro décadas de carreira, perdeu sua visão há cerca de seis anos por conta de uma enfermidade que se agravou rapidamente desde 2011. Em um curto intervalo de tempo, sua frequência nos eventos de lançamentos da indústria diminuiu até o ponto de não mais o encontrarmos, ausência bastante sentida. Em sua carreira, não apenas mais de duas décadas como diretor da revista MotorShow e uma década dedicada à área de testes na Quatro Rodas (foi um dos principais responsáveis pela adoção da bureta eletrônica e do Correvit), mas também uma vitória na Mil Milhas Brasileiras em 1983 e Mil Quilômetros de Brasília em 2004.
Desde então, Douglas continua atuando na área como jornalista automotivo – possui colunas nos sites Autopapo, AutoEntusiastas e na revista Autoesporte –, mas de suas mãos foi tirado o volante desde que a doença atingiu um quadro crônico. Ao amigo e jornalista Eduardo Pincigher (que também é piloto e também trabalhou na Quatro Rodas na mesma época), ele confessou algo de cortar o coração – um pensamento que, não tenho dúvidas, cada entusiasta sentiria exatamente o mesmo:
Não enxergar o que eu estou comendo é o de menos. Todo dia alguém tem que fazer o meu prato, ou dizer a roupa que eu vou vestir. Mas isso eu tiro de letra. O que realmente me incomoda é que todas as noites, sem exceção, eu sonho que eu estou guiando um carro.”
A partir deste ponto, tudo ficou entre amigos: além de Pincigher, o mais-que-renomado fotógrafo Cláudio Laranjeira, Ricardo Dilser (que é sobrinho de Douglas, e também é piloto e hoje está à frente da comunicação de produto do grupo FCA na América Latina), Roberto Manzini (diretor do Centro de Pilotagem que leva o seu sobrenome) e Edu Bernasconi da Fullpower se uniram para realizar algo épico. Eles botaram Douglas Mendonça de volta a um cockpit de um carro de corrida em Interlagos.
O carro vocês conheceram nesta matéria especial. Um Fiat Palio que foi projetado originalmente para o renascimento de uma prova de Endurance que nunca aconteceu: as 24 Horas de Interlagos de 2014. Com o motor 1.6 preparado pelo Zezão (Automec, Brasília) com receita inspirada na Fórmula Futura, o conjunto recebeu comando bravo com tuchos mecânicos desenvolvido pela Fiat Corsa (Itália), coletor de escape sob medida, cabeçote fluxado e rebaixado (taxa de 14,3:1) e, com isso, rende 170 cv a 7.300 rpm e 19,3 kgfm a 5.700 rpm. O câmbio foi reescalonado com peças de prateleira da Fiat e o diferencial da Dobló Adventure, o mais curto da família de transmissão C510. Suspensão recalibrada e cheia de artimanhas para muito mais cáster e cambagem, carroceria toda aliviada (os painéis removíveis seguem de lata, mas com todas as chapas internas removidas)… um belo de um X-tudo feito para um regulamento restrito, baseado no Paulista de Marcas.
Como todo carro de tração dianteira dessa natureza de competição, este Palio possui uma dinâmica sacana. Uma tirada de pé do acelerador fora do momento e a traseira vem atravessando de uma forma que, se não houver reações rápidas, a rodada é inevitável. Romance à parte, a experiência de ter alguém que não pode enxergar ao comando de um carro de competição, mesmo com um instrutor do nível de Manzini auxiliando a direção, é algo bastante arriscado. Note que Manzini, amarrado nos cintos de corrida, possui uma limitação bem grande de o quanto ele consegue esterçar auxiliando Douglas: o comando, no fim das contas, é de Mendonça.
Mas é aí que entram as sutilezas que dão ainda mais beleza à coisa. A forma como Mendonça controla a embreagem, realiza os punta-taccos nas reduções, a forma como ele busca fazer a leitura sensorial da pista, mapeando mentalmente o traçado, sentindo as transferências laterais e diagonais de peso e controlando o carro, são de um piloto nato. Um piloto que apenas não pode enxergar, mas que visualiza e que interpreta a dinâmica do carro com perfeição. Note como há “buracos” propositais na instrução de Manzini, justamente nos momentos em que ele sente que Douglas está lendo mentalmente a pista. Chega-se ao ponto em que Beto provoca Mendonça para acelerar mais, pois sente segurança no que ele está fazendo e Douglas, sabendo dos riscos e da dinâmica traiçoeira de um carro de corrida, seguia conservador.
Degustem sem moderação toda a história e o registro emocionante feito pela Fullpower deste momento em Interlagos, com direito a vídeo on board. Ficam os nossos parabéns ao Pincigher, Dilser, Bernasconi, Laranjeira, Manzini e todos os demais envolvidos!