FlatOut!
Image default
Car Culture

Estrelas na lama: a Mercedes nos ralis

Pense em um carro de corridas da Mercedes e ele dificilmente será um carro de rali. Dependendo da sua idade, ele será um monoposto de F1, ou um sedã de turismo, ou um protótipo de Le Mans ou um esportivo de provas de estrada, mas não um carro de rali.

É compreensível, afinal, foram carros como o W196, o 300SLR, o Sauber C9, o CLK GTR e o 190E Cosworth que forjaram a imagem da marca alemã nas pistas de asfalto. Fora delas, quando o asfalto termina e a poeira predomina, é mais provável ver um Porsche 911 do que um Mercedes, para ficarmos nos esportivos de Stuttgart.

É claro que isso não significa que a Mercedes não teve suas incursões no rali. No Paris-Dakar, por exemplo, eles conseguiram cinco vitórias consecutivas de 1982 a 1986 com seus caminhões. Com os carros, a história começou nos anos 1950, mas não foi tão consistente, nem muito vitoriosa, mas isso não a torna menos digna de ser contada — até mesmo por ser um lado inusitado e pouco conhecido da história da marca.

A estreia da Mercedes nos ralis aconteceu em janeiro de 1952, quando Karl Kling, Rudolf Caracciola e Hermann Lang disputaram o rali Monte Carlo em três Mercedes-Benz 220 W187 (sim, esses carros aí ao lado). Eles não venceram a competição, mas voltaram para a Alemanha com o troféu de melhor desempenho de equipe.

Apesar do resultado positivo, a Mercedes optou por não criar um programa oficial de rali pois esse tipo de prova não era muito popular entre o público alemão, acostumados a circuitos onde a ação acontecia volta após volta diante do público.

Isso, contudo, não impediu que pilotos independentes inscrevessem seus Mercedes em ralis. Entre 1952 e 1955 nada menos que 174 pilotos participaram de provas regionais e nacionais com carros da marca, dentre os quais se destacou Walter Schock, um importador de frutas tropicais que, certo dia, decidiu inscrever no rali Solitude seu W180 I 220a de uso diário. Sem apoio algum da fabricante, ele juntou-se ao co-piloto Rudolf Moll e, juntos, voltaram para casa com o troféu da vitória.

O bom resultado os motivou a continuar disputando ralis locais até que, em 1955, eles tomaram uma decisão mais ousada e decidiram ir ao principado de Mônaco disputar o rali Monte Carlo. Mas não pense que a Mercedes gostou da ideia e apoiou a dupla: o chefe da divisão de competições da marca, Alfred Neubauer estava mais preocupado em vencer o mundial de Fórmula 1 e o Mundial de Carros Esporte e não tinha tempo para os ralis. Por isso, tudo o que a Mercedes fez por Schock e Moll foi uma revisão mecânica e o rebaixamento da suspensão do 220a.

Mesmo assim os dois pilotos de fim-de-semana conseguiram terminar a prova em um excelente quinto lugar geral, e depois partiram para a Itália, onde disputaram e venceram o Sestrière Rally. De lá foram para a Iugoslávia onde terminaram o rali Adriatica em segundo lugar e, em seguida, rumaram para a Noruega, onde terminaram o Rali Viking em quarto lugar. Terminando esta turnê europeia, Schock e Moll voltaram à Alemanha onde disputaram o rali que começou esta história, o Solitude, desta vez terminando em terceiro lugar.

Naquele mesmo ano, contudo, um evento histórico mudaria o status dos ralis na Mercedes: a tragédia de Le Mans de 1955, que resultou no encerramento na equipe oficial da fábrica e na preocupação do público com este tipo de evento. Como consequência, os ralis voltaram a atrair o público, pois não tinham contato direto dos carros, parecendo assim muito mais seguros. Em 1956, Alfred Neubauer se aposentou, e Karl Kling assumiu seu lugar como gerente da divisão de competições — que passaria a apoiar os pilotos independentes com mais afinco do que uma mera revisão e molas mais curtas.

Kling, que correu no rali Monte Carlo e fez seu nome nas clássicas provas de estrada de longa distância, as precursoras dos ralis, passou a dar mais atenção à modalidade e assim a Mercedes saiu de vez da estrada para acelerar na terra e no cascalho. E eles fizeram isso com o que tinham à mão: o 300SL e os sedãs 220SE e 300SE, ambos com motores de seis cilindros e ancestrais da atual Classe S.

Uma das principais equipes era o Stuttgart Motor Sport Club dos dois pilotos que deram a partida nesta história: Walter Schock e Rolf Moll. Eles novamente inscreveram seu velho 220a no rali Monte Carlo, mas desta vez com o apoio total da fábrica terminaram a prova em segundo lugar, com apenas 1,1 segundo de diferença para o Jaguar vencedor.

Um mês depois os dois voltaram à Itália para o rali Sestrière, agora com um 300SL Gullwing, desta vez vencendo a prova sobre a neve italiana. Segundo Schock, com correntes nos pneus, o carro conseguiu chegar a 180 km/h nas montanhas (!) — algo impossível de se fazer com um carro de uso diário como o que fora levado pela dupla alemã no ano anterior. Depois do rali italiano, eles ainda disputaram o rali Wiesbaden, o rali da Acrópole e o rali Adriatica, vencendo as três provas.

Em 1959 o próprio Karl Kling saiu do escritório e assumiu o volante de um 190D escolhido a dedo para encarar (e vencer) os 14.000 km do rali Mediterranée-Le Cap, que partiu da costa do Mediterrâneo em direção à África do Sul.

Na temporada seguinte Schock e Moll, agora com um 220SE “fintail”, conquistaram o título europeu de rali, depois de finalmente vencer o rali Monte Carlo, seguidos por outras duas duplas da Mercedes — Eugen Böhringer/Hermann Socher e Eberhard Mahle/Rollan Ott — na segunda e na terceira posições.

Böhringer, aliás, foi o campeão europeu em 1962, depois de vencer o rali da Acrópole e o rali Liège-Sofia-Liège, de conquistar o segundo lugar no rali Monte Carlo e no rali da Alemanha, e de pontuar em outras duas provas na temporada, também com um 220SE.

Nos dois anos seguintes, a participação da Mercedes nos ralis foi ficando cada vez menor, de forma que nem mesmo as vitórias no Gran Premio Argentina de 1962 e no rali Liège-Sofia-Liège mantiveram  o programa de automobilismo da Mercedes ativo. Em 1964 ele foi encerrado (dando origem à AMG, indiretamente) para voltar de forma oficial somente nos anos 1990.

Contudo, nesse meio-tempo, houve várias ocasiões em que um Mercedes disputou o rali, mas dois deles se destacam: o 280E W123 que disputou a maratona Londres-Sydney; e o 450SLC C107, que disputou o WRC de 1978 a 1980.

 

280E – 30.000 km em 30 dias

classic_virtueller-rundgang_exponate_Mercedes-Benz-280-E-Rallyewagen_1180x686-1180x686

Em 1977 o empresário britânico Wylton Dickson decidiu reeditar uma corrida chamada Londres-Sydney, que havia sido realizada em 1968. Desta vez, porém, ele estabeleceu um novo percurso de 30.000 km que incluía três travessias oceânicas e foi divulgado como “o maior rali da história”.

D438128-40-years-ago-One-two-for-Mercedes-Benz-280-E-in-the-LondonSydney-Rally-tour-half-way-round-the-world-with-the-W-123

No total foram inscritos seis Mercedes 280E, todos por equipes e até pilotos independentes, porém com amplo suporte da Mercedes, que tinha Erich Waxenberger como engenheiro-chefe da divisão esportiva.

ccb00cdf3279df907df5e1c764d93dca

A preparação dos carros seguiu a mesma receita dos carros de rali da Mercedes dos anos 1960: mecânica praticamente original, componentes reforçados e suspensão retrabalhada para aguentar o tranco. Eles ganharam rodas de 15 polegadas, novas molas que elevaram a suspensão em 35 milímetros, além de braços reforçados na suspensão.

O câmbio de cinco marchas foi substituído pela caixa de quatro marchas do Classe S W116 com o motor V8, e o fundo do carro ganhou skidplates reforçadas para proteger motor e suspensão. O motor teve apenas uma modificação: o reajuste do ponto de ignição pensado na gasolina de baixa octanagem que poderia ser encontrada pelo caminho.

LS77car33

Foi o suficiente para conquistar os dois primeiros lugares da prova, depois de 30 dias e 30.000 km. Os dez primeiros lugares, aliás, foram dominados pela Mercedes e pela Citroën. Os Mercedes terminaram em primeiro, segundo, sexto e oitavo, enquanto os Citroën CX 2400 ficaram em terceiro, quarto, sétimo e décimo. A quinta posição ficou com um Peugeot 504 diesel e a nona com um Mazda RX4.

Ainda nas comemorações da vitória, o então presidente da Mercedes salientou a experiência adquirida com os ralis e anunciou que aquela conquista iria inaugurar uma nova era da Mercedes no automobilismo. Como? Retomando o programa de fábrica e inscrevendo um carro no WRC.

 

450SLC C107 – a Mercedes vai ao WRC

D191296

Depois de vencer a maratona Londres-Sydney, a Mercedes Benz decidiu ingressar no Mundial de Rali (WRC). Mas em vez de seguir a onda das demais fabricantes, que disputavam o campeonato com carros leves, compactos, ágeis e potentes, como o Fiat 131 Abarth, o Lancia Stratos e o Ford Escort RS1800, a Mercedes optou pelo maior cupê disponível, o 450SLC.

Ele era o oposto dos rivais dos estágios: pesado, grande e desajeitado, só superava os demais em potência — 230 cv produzidos pelo V8 M117 de 4,5 litros. A aposta na potência deu certo nas 24 Horas de Spa de 1971, mas dificilmente daria certo nos ralis. Especialmente mantendo o câmbio automático de três marchas original.

1979-slc1-610x406

A preparação do carro não tocou no powertrain, somente procurou proteger os componentes do carro com skidplates, instalou faróis auxiliares e uma gaiola de proteção para a dupla de piloto e navegador, obviamente obrigatória pelo regulamento.

A estreia do modelo aconteceu em um rali independente chamado Vuelta a la América del Sud, que também se estendia por 30.000 km como a maratona Londres-Sydney e tinha entre seus competidores inúmeros carros do WRC — e passou até pela Transamazônica!

Apesar das desvantagens evidentes do 450SLC, a Mercedes acabou ganhando a prova com Andrew Cowan, que mais tarde criaria a Mitsubishi Ralliart. Apesar do triunfo, a Mercedes sabia que precisaria melhorar o carro para ser competitiva no WRC. Foi assim que nasceu o 450SLC 5.0.

A marca instalou uma versão de cinco litros do V8 M117, que elevou a potência de 230 para 310 cv e colocou o carro no Grupo 4 da FIA. Para ajudar a reduzir o peso, a Mercedes instalou portas, capô e tampa do porta-malas de alumínio no cupê, além de fabricar um bloco de alumínio para o motor. O modelo ainda ganhou rodas mais largas BBS RA.

1980-500SLC-on-Bandama-rallye-610x414

Com esse carro a Mercedes disputou as temporadas de 1979 e 1980 do WRC, e teve como melhores resultados uma vitória tripla no Rali da Costa do Marfim e um segundo lugar no Rali Safari na temporada de 1979, bem como uma dobradinha no Rali da Costa do Marfim, um segundo lugar no Rali Codasur e um terceiro lugar no Rali Safari de 1980 — que lhe ajudaram a conquistar o quarto lugar entre os construtores naquela temporada.

Apesar do bom resultado, a Mercedes não enxergou uma forma de ser mais competitiva no campeonato de 1981 e abandonou a categoria.