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Automobilismo Car Culture

Eu fui ver a Subida de Montanha da Serra do Rio do Rastro e…

Eu entendo perfeitamente o complexo de vira-lata que nós, brasileiros, carregamos em um cantinho da nossa cultura. O Brasil parece mesmo ter sido feito para não dar certo nunca. Se você reparar, o melhor da nossa história está nos capítulos que quase aconteceram. Desde sempre, poderes invisíveis conspiraram contra a liberdade do brasileiro, impedindo o verdadeiro poder popular. A “terra dos sonhos” não é mera propaganda ideológica de países desenvolvidos. É constatação de milhões de histórias que aconteceram naqueles lugares.

Eu entendo o complexo de vira-latas que a gente carrega, mas não o aceito. O Brasil, com tudo isso, é uma potência do automobilismo. Mesmo com os carros custando caro desde sempre, com poucos autódromos, entraves burocráticos e briga de classes, a resiliência dessa gente bronzeada nos fez o terceiro país com mais títulos de Fórmula 1, o país com mais vencedores da Indy 500 depois dos EUA, um dos quatro países com mais títulos na Indy e um dos dois únicos países com mais de um tricampeão de F1. Mesmo faltando esgoto pra maioria da população, a gente foi lá e fez e deu um gostinho do que a gente poderia ser se ninguém atrapalhasse os brasileiros.

E note que peguei um recorte simples: pilotos brasileiros. Nem estou falando de projetistas, engenheiros, designers e tudo mais. O carro a álcool não é coisa nossa, mas quem fez esse negócio funcionar há quase 50 anos e produziu uma frota de milhões de carros com combustível vegetal? E o câmbio automático, quem fez?

Não é uma questão de ufanismo, mas de valorizar um pouco da nossa própria existência. Eu digo isso porque há 15 anos, eu senti inveja do trio do Top Gear passando pelo Passo Stelvio, na Suíça. “Por que não temos estradas assim no Brasil?” Bem… porque não somos a Suíça, e sim o Brasil. Não temos o Passo Stelvio, mas temos, por exemplo, a SP-123, que liga o Vale do Paraíba ao Sul de Minas. É um “passo”, mas como nosso relevo é geologicamente antigo, a Serra da Mantiqueira mal chega aos 2.000 metros de altitude.

Aliás, a SP-123 é, na prática, a continuação da SP-125, que liga o Litoral Norte de SP ao Vale do Paraíba. Ela também é um “passo”, mas novamente, como a Serra do Mar é uma formação geológica antiga, ela tem só 1.000 metros de altitude por ali. Estas duas subidas, juntas, são a maior “subida de montanha” que se pode fazer no Brasil. Você sai do nível do mar em Ubatuba/SP, e 190 km depois está a 2.060 metros, no topo do Pico do Itapeva. Além de ser divertido para quem dirige, a vista panorâmica do mar e depois do vale também remetem aos “passos” suíços. O negócio é igual, só muda a adaptação local.

Outra formação geológica famosa lá fora e que “não temos aqui” é o Grand Canyon americano. Realmente não há nada tão alto como o Grand Canyon Park por aqui. Mas, novamente, porque aqui não é o oeste americano e sim o Brasil. Enquanto as formações do Grand Canyon têm só 5.000.000 de anos, nossos cânions têm mais de 100.000.000 — ou seja: são 20 vezes mais antigos. É como comparar algo do ano 101 com algo de 2020. Além disso, como estamos nos trópicos (ou pertinho deles), nossos cânions são verdes. E eles existem em todo o território nacional — do Tocantins ao Rio Grande do Sul.

E mais: nós temos uma combinação única de cânion e passagens de serra, com direito a uma subida de montanha a la Pikes Peak. É um pouco de tudo, de um jeito só nosso. Uma das paisagens mais impressionantes do Brasil: a Serra do Rio do Rastro. Eu estive lá, finalmente, neste último fim de semana por dois motivos. O primeiro, é finalmente conhecer o Planalto Serrano catarinense, a última região que me faltava conhecer no estado — uma vergonha pra alguém que cresceu por estas bandas.

Sim. Gelo na pista no Brasil.

O outro motivo era acompanhar a segunda edição da Serra do Rio do Rastro Hillclimb. Sim, subida de montanha na Serra do Rio do Rastro. Um evento inspirado em Pikes Peak, com a dificuldade de uma volta em Nürburgring (e isso não é exagero, como vocês verão mais adiante), com o clima bucólico do interior de Santa Catarina, e uma paisagem de tirar o fôlego mesmo quando se está parado em um dos receptivos mirantes da região.

 

O lugar

A Serra do Rio do Rastro é uma das formações geológicas que constituem o Planalto Serrano catarinense, região que, como seu nome sugere, é a mais alta do estado de Santa Catarina, com picos de até 1.800 metros em relação nível do mar. Ali foi registrada, extra-oficialmente, a temperatura mais baixa do Brasil —  -17,8º no Morro da Igreja, na cidade de Urubici, no inverno de 1996.

Embora a Serra do Rio do Rastro seja o trecho rodoviário mais famoso, toda a malha rodoviária da região é formada por estradas sinuosas de asfalto suave, com subidas e descidas que se alternam entre túneis verdes e belvederes naturais. É um daqueles casos em que o caminho vale tanto quanto o destino.

A Serra do Rio do Rastro em si, liga a parte alta do Planalto à sua porção mais baixa. O trecho sinuoso começa a 1.420 metros de altitude e termina na cidade de Lauro Müller, que fica a 220 metros do nível do mar, em um trajeto de aproximadamente 25 km — uma variação de 1.200 metros em 25 km, o que resulta em uma inclinação média total de 5%.

 

A subida

Apesar de estar apenas em sua segunda edição, subir a Serra do Rio do Rastro em um carro de corridas é uma ideia antiga. João Paulo Wodiani, um dos organizadores da subida, ao lado de Rafael Rabitz, seu parceiro no Friends Trackday/Hillclimb, vislumbrou uma prova de hillclimb ali pela primeira vez em 2007. Em 2010 o piloto neozelandês Rhys Millen, recordista de Pikes Peak, veio ao Brasil em uma ação promocional da Red Bull e subiu a serra com seu Hyundai Genesis modificado. Com a passagem cronometrada, ele estabeleceu o primeiro tempo de subida da Serra, e atual recorde.

Três anos depois, em 2013, a equipe de drifters de Blumenau/SC, Drift-SC, também organizou uma subida da Serra, mas gravando um show de drift na forma de uma perseguição policial. Desde então houve outras subidas, mas nenhuma no formato de hillclimb como o pessoal do Friends Trackday viria a organizar pela primeira vez em 2022.

O projeto foi apresentado à prefeitura de Lauro Müller, que abraçou a ideia e providenciou a força política necessária para se realizar um evento deste porte, que fecha um trecho de rodovia estadual durante um período do dia. Coincidentemente, o trecho tem um traçado praticamente natural: há um mirante no Parque Eólico no topo da Serra, próximo ao posto policial rodoviário, onde a rodovia é interditada, e, cerca de 12 km abaixo, há outro mirante, onde é feito o bloqueio rodoviário no sentido oposto.

Com isso, o trajeto é cerca de 2 km maior que aquele percorrido por Rhys Millen em 2010, o que resulta em tempos de subida maiores, claro. Para fins de comparação e referência, as duas edições da Hillclimb Serra do Rio do Rastro tiveram o percurso “Rhys Millen” para os cinco primeiros colocados na prova, que podem optar por desafiar o tempo de Rhys Millen nesse trajeto mais curto.

O resultado é um percurso de 11,6 km de extensão, com variação altimétrica de 922 metros. A largada, no Mirante 12, é feita a 486 metros do nível do mar, enquanto a chegada, no Parque Eólico, acontece a 1.408 metros. Como comparação, a subida de Pikes Peak tem 156 curvas e uma variação de 1.440 metros de altitude.

O trecho inicial, mais baixo, é feito sobre asfalto novo, porém na parte mais alta, quando a rodovia fica mais íngreme e estreita, a superfície é concreto — muito desgastado em alguns trechos. Essa variação de superfícies e, especialmente, da conservação delas, é um dos grandes desafios da subida, exigindo um acerto equilibrado do carro. Uma suspensão muito rígida permite tempos mais baixos no início, mas sofre com os bumps da parte de concreto, por exemplo. No total, são cerca de 200 curvas e 11 hairpins.

O recorde da subida foi cravado na primeira edição pelo piloto Iures Delfino a bordo do seu Mitsubishi Lancer Evolution X, com um tempo de 9:14,32 (acima). Por isso, ele era um dos favoritos à vitória e a um novo recorde — no local falava-se em um tempo abaixo dos 9 minutos, porém um pequeno acidente o tirou da prova, deixando a vitória com o piloto Mateus Galiotto, a bordo de um Audi RS3, que completou a subida em 9:28,42.

Descendo com os competidores, note como a pista é estreita

Já no “desafio Rhys Millen”, o recorde atual é de 7:41,73, estabelecido neste ano por Mateus Galiotto, o vencedor da prova deste ano com um Audi RS3. No ano passado, o vencedor do desafio foi o FlatOuter Eduardo Cenci, com 7:53,41 em um Subaru BRZ original — o tempo de Rhys Millen é 7:17,989.

Eu cheguei à região na sexta-feira, 12 de janeiro. Vindo de Navegantes/SC, fui para Urubici, onde o FlatOuter Edu Martinelli mantém a pousada Villa Allora Cabanas (aquele trailer Turiscar que apareceu nesta matéria). Fiquei hospedado ali na noite de sexta para sábado, antes de prosseguir até o Mirante da Serra do Rio do Rastro, em Bom Jardim da Serra, para encontrar o pessoal da organização e os pilotos após os treinos daquela manhã.

Ali pude acompanhar de perto o clima do público, conversar com os pilotos e equipes, organizadores e com o pessoal da região que recebeu o público em um número atípico para esta época do ano. De tudo, o que mais chamou a atenção foi a presença do público interessado em ver uma corrida na Serra do Rio do Rastro. É o tipo de coisa que extravasa o universo entusiasta e atrai a curiosidade do público geral.

A Serra, afinal, é reconhecida nacional e internacionalmente por sua beleza e por seu traçado travado — é muito apreciada pelos motociclistas, aliás. Uma corrida serra acima despertou o interesse de muita gente a ponto de surpreender os locais, que estimavam um público de 10.000 pessoas — algo que, pessoalmente, acho superestimado — eu apostaria em 5.000 pessoas, no máximo.

Pode parecer pouco para quem está acostumado com os eventos de autódromo, mas se esse número fosse realmente confirmado, seria um feito e tanto. Isso, porque a Serra do Rio do Rastro fica, literalmente, no meio do nada. Não estou diminuindo as cidades da região, longe disso. Mas o local da prova fica no meio de Santa Catarina, a cerca de 200 km da capital Florianópolis, onde está o aeroporto mais próximo.

O público voltando para os mirantes após a prova.

Além disso, fora dos mirantes não há infra-estrutura. Para assistir a corrida pendurado nas barreiras como fez uma boa parte do público, é preciso ficar no mesmo local das 6h às 11h, pois é proibido transitar pela estrada fechada por questão de segurança. O público, portanto, levou cadeiras, água e toalhas para enfrentar uma pequena jornada de cinco horas no meio da serra, sob o sol do verão brasileiro.

Eu desci a Serra no sábado com meu Pote de Sorvete (vocês sabem, o Up), subi de carona no carro 00 “Limpa Pista”, um Subaru WRX pilotado no limite, e desci num Maverick 347 Stroker que derreteu a sola do meu tênis. Vi de perto a reação do público em cada uma destas curvas e foi algo inimaginável. O povo vibrando com as derrapadas controladas, com o ronco dos carros, com as correções dos pilotos, com o show dos drifters é algo que contradiz a ideia de que os carros deixaram de ser interessantes.

E o fato de estarmos no meio de um cânion verde, com infra-estrutura limitada e, ainda assim, arrancando sorrisos das pessoas, é uma prova muito sólida de que os carros ainda interessam muita gente. Tanto que em outubro deste ano teremos a terceira edição da Subida — e já confirmamos nossa presença mais uma vez.

Nos próximos dias trarei mais alguns detalhes desta segunda edição, como depoimentos de pilotos e mais imagens em fotos e vídeos do evento. Fique ligado aqui no site e nas nossas redes sociais!