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Car Culture

Eu assisti a “F1 – o Filme” e…

Se você gosta de corrida, vai se divertir. Se você gosta da Fórmula 1 como ela é hoje — um espetáculo moldado pra TikTok, com câmeras no capacete e edição de clipe — vai amar. Se você procura cinema, talvez saia do cinema com a sensação de que te prometeram Senna e te entregaram Carros com gente de verdade.

Mas vamos por partes.

Como entretenimento e propaganda, “F1 – O Filme” funciona absurdamente bem. A evolução tecnológica permite que o filme seja gravado como uma corrida de F1 moderna — a câmera está colada no asfalto, e integrada ao cockpit — a produção desenvolveu por três anos uma forma de acoplar as câmeras IMAX aos carros de forma que elas não afetassem o manejo e a dinâmica dos carros.

Isso, porque os carros são reais: são modelos de F2 caracterizados como F1. Brad Pitt e Damson Idris (que faz o novato Joshua Pearce) treinaram com carros reais (de F3 e de F2) e pilotaram mesmo os carros nas cenas onboard. As reações deles no cockpit, os movimentos corporais são reações legítimas às forças G.

Os pilotos-dublês fizeram só as cenas de maior velocidade e complexidade. As cenas foram filmadas em GP reais, com o público lá, com os pilotos de verdade nos bastidores. Quando Pitt e Idris dividem uma curva em Silverstone com a multidão ao fundo e o som real do público, não estamos vendo uma dramatização: estamos vendo um show dentro do show. Até mesmo a sede da equipe do filme é, na verdade, a sede da McLaren.

E é aí que o filme brilha. Ele é uma carta de amor à F1 moderna, mas com um olho no passado. O personagem do Pitt, Sonny Hayes, tem um arco que lembra o Doc Hudson de Carros (sim, a animação da Pixar). Ele era uma promessa nos anos 1990, se acidentou feio, virou lenda esquecida e volta como mentor — só que a tal lenda tem a chance de correr de novo.

O filme joga várias referências e easter eggs no caminho: o acidente de Hayes é, na verdade, o acidente real de Martin Donnelly em Jerez, 1990. A participação dos pilotos reais remete a Grand Prix — que também usou carros de F2 como F1, e é lembrado quando Pitt e Idris estão correndo, a pé, no trecho abandonado de Monza, nas curvas inclinadas. Há menções a Senna e a Schumacher, aos cinco títulos consecutivos da Ferrari, Fernando Alonso parabenizando Hayes após uma jogada de equipe (Singapura, 2009), e até uma menção velada, mas não muito, à barbeiragem da FIA em Abu Dhabi 2021. Tudo muito calculado pra fazer o fã de corrida dizer “ah, eu vi isso!”.

A presença da F1 real — gravações em GPs de 2023 e 2024, paddock acessado pela equipe da produção, briefing técnico de Hamilton, pit stops cronometrados — dá ao filme um verniz de legitimidade que nem Rush (2013), com todo seu drama preciso, conseguiu reproduzir. Quando Pitt e Idris dividem uma curva em Silverstone com a multidão ao fundo e o som real do público, não estamos vendo uma dramatização: estamos vendo um show dentro do show. E como um show, “F1 – O Filme” funciona muito, muito bem.

Só que aí vem o outro lado.

Como filme em si, “F1” é uma colagem de coisas que você já viu. A estrutura é praticamente a de “Top Gun: Maverick”. Ou “Carros”. O cara mais velho (Doc Hudson e Maverick) que volta pro jogo, o novato com talento bruto e soberba (Relâmpago McQueen e Rooster), a missão impossível (no caso, colocar uma equipe novata no meio da temporada da F1), o momento do quase fracasso, a superação no fim. Todo mundo já viu essa história: o veterano chega traumatizado, o novato é arrogante, eles se esforçam para conviver no começo, se desentendem, brigam, acontece alguma coisa, eles se unem, um aprende com o outro e, no fim, os dois resolvem tudo juntos. Funciona? Claro que funciona. Mas não surpreende em nada.

O roteiro não arrisca. Personagens não são aprofundados. Kerry Condon, excelente atriz, tem diálogos que só funcionam como ponte para cenas de ação — tudo o que ela faz é reagir ao rádio e à telemetria. Javier Bardem parece uma paródia. O trauma do passado de Hayes, sugerido pelos flashbacks, não tem efeito algum — ele serve apenas para explicar por que ele deixou a Fórmula 1 e passou a viver de forma errática, sem contratos nem compromissos.

Mas não me entenda mal: eu gostei. O filme é divertido. Ver a F1 filmada com essa qualidade, com som real, com aquele visual IMAX, é um presente pra quem gosta de automobilismo. Lewis Hamilton atuou como consultor técnico, indicando onde deveriam estar as ultrapassagens, apontando os momentos de troca de marchas para o editor de áudio. E o envolvimento da F1 real é total: Liberty Media liberou acesso aos paddocks, às pistas, aos dados. Eles queriam um filme que vendesse a imagem da F1 moderna — e conseguiram.

Só que isso tem um preço. O filme vende uma versão de conto de fadas da F1. Ele não quer incomodar. Não quer fricção, não quer ruído emocional — quer encantamento, deslumbre, perfeição visual. A narrativa é controladinha, limpinha, feita pra deixar qualquer patrocinador feliz.

A F1 do filme não é o palco político e corporativo que “Ford vs Ferrari” tinha como peça central do filme, nem a intensidade emocional de Rush — e o trauma de Hayes era uma deixa fácil para isso. É uma F1 idealizada. Nem poderia ser diferente, afinal, é um filme oficial, autorizado pelo Formula One Group.

Ao mesmo tempo, é justamente essa formatação de “produto oficial” que faz dele um filme tão bom para quem só quer diversão baseada em carros de corrida. Pense em “Drive to Survive”. É a mesma coisa, mas em forma de filme.

Então se você vai ao cinema como “cinéfilo”, pra ver uma história nova, com personagens complexos e conflitos reais, vai acabar decepcionado. Mas se você quer ver um filme de corrida que finalmente entendeu como filmar um carro de verdade — com vibração, com peso, com adrenalina real — esse é o melhor que o cinema já entregou até hoje, tecnicamente falando. Se Le Mans era sobre o tempo e o tédio da espera pela hora de acelerar, e Rush era sobre os homens, seus medos e anseios, F1 é um filme sobre o espetáculo. E como espetáculo, ele é excelente.