O automobilismo, por mais que tente disfarçar, é um esporte de morte. Não é questão de gosto por drama, nem de apelo sensacionalista — é um fato simples e brutal. O que faz um piloto virar herói não é apenas a velocidade que consegue extrair de um carro, mas o que está disposto a arriscar para isso. Velocidade sempre foi sinônimo de risco. E o risco, mesmo domado por décadas de evolução técnica, nunca sumiu de cena. Às vezes, ele apenas espera a hora certa de lembrar que está ali.
O filme F1, dirigido por Joseph Kosinski com produção de Brad Pitt e a chancela da Fórmula 1 real, tentou colocar isso na tela. E conseguiu. O acidente do personagem Sonny Hayes — vivido pelo próprio Pitt — é mais do que o ponto de virada emocional da história. É um dos poucos momentos em que Hollywood parou de tentar emular a Fórmula 1 e deixou que a Fórmula 1 a guiasse. Para quem já viu corpos voarem entre destroços de fibra de carbono e braços pendendo como bonecos de pano após um impacto a mais de 200 por hora, aquele acidente no filme soa estranhamente familiar. Porque é mesmo. É Martin Donnelly em Jerez, 1990.
Quem acompanhava a F1 no início dos anos 1990 lembra de Donnelly como nota de rodapé. Um talento promissor, irlandês, piloto de testes da Lotus quando ainda se fumava Camel no paddock, que teve sua carreira encerrada antes de começar. Mas a verdade é que Martin Donnelly se tornou uma espécie de fantasma da F1 moderna.
Donnelly era um piloto vindo da Fórmula Ford e da Fórmula 3 britânica, duas das categorias mais duras e competitivas da Europa nos anos 1980. Em 1987, venceu em Silverstone e Brands Hatch pela F3 britânica e, no ano seguinte, foi vice-campeão da F3000 britânica, categoria que naquele tempo funcionava como um vestibular brutal para a Fórmula 1. E ali ele impressionou.
O suficiente para ser notado pela Lotus, que o contratou como piloto de testes. Era 1988, e Donnelly tinha 24 anos. Rápido, técnico, disciplinado — os engenheiros gostavam de sua sensibilidade e sua frieza, duas qualidades raras num piloto jovem. Mas sua estreia oficial como titular veio por outro caminho: em 1989, substituiu Derek Warwick na Arrows por uma corrida, o GP da França. Não pontuou, mas também não se comprometeu. Fez o bastante para voltar ao grid no ano seguinte, agora como titular da própria Lotus.
Naquele 1990, contudo, a Lotus vivia tempos difíceis. A equipe tinha perdido o brilho e o dinheiro, mas ainda carregava o peso da história e a ambição de se reconstruir. O nvo Lotus 102 usava motor Lamborghini V12 — uma combinação tão promissora quanto instável. O carro era pesado, frágil e imprevisível. Mas Donnelly, ao lado de Derek Warwick, fazia o possível com o que tinha. Classificava bem, pilotava limpo, dava bom feedback. Era o tipo de piloto que merecia uma chance melhor. Só que a F1, às vezes, não dá chance. Ela tira.
Foi numa curva sem área de escape, atrás dos boxes de Jerez, que sua chance lhe foi tirada. Aquela curva à direita, feita com o pé embaixo entre um muro de metal e um resquício de grama, jamais perdoaria um erro. E o Lotus de Donnelly errou. A 225 km/h, o carro escapou, tocou o guard rail e se desfez como se fosse feito de papel.
O cockpit se quebrou ao meio como um “wafer”, segundo a descrição do próprio Donnelly. A dianteira do carro foi para um lado, o volante para outro, o banco ficou preso à porção traseira do cockpit, enquanto Donelly lançado como um saco de carne e ossos, voando 40 metros antes de cair no asfalto, inerte. Era como ver um morto. Só que ele não estava morto.
O impacto foi tão forte que rachou seu capacete, e um exame de raio-X mostrou que Donnelly tinha concussões nos pulmões e no cérebro, além de diversas fraturas nas pernas e hemorragia.
Hollywood, nos últimos anos, começou a perceber que a emoção do automobilismo não vem da glória nem da velocidade em si, mas da proximidade constante com o perigo. Por isso Sonny Hayes não poderia ser apenas um ex-piloto decadente. Ele precisava ser alguém que já tivesse morrido por dentro uma vez — ou, ao menos, olhado nos olhos da morte como Donnelly fez. A cena do acidente em “F1 – o filme” é, em essência, uma reencenação daquele voo irreal em Jerez.
A diferença é que Donnelly não era um personagem. Ele era real. O sangue era real. O osso que atravessou a pele e estourou uma artéria femoral também era. E se ele não morreu ali foi porque Sid Watkins — o mesmo médico que tentou salvar Senna quatro anos depois — estava no lugar certo, na hora certa.
Donnelly foi transferido para um hospital em Sevilha, na Espanha e, mesmo depois de uma falha renal e de correr o risco de ter a perna direita amputada, sobreviveu quase sem sequelas. Ele manca um pouco por causa da perna, mas conseguiu voltar a pilotar em 2000. Em entrevista ao site The 42, Donnelly relatou como foi a manobra que salvou sua vida:
“Levantaram meu visor e viram que eu estava asfixiado e minha pele havia adquirido uma leve coloração azulada. O dr. Sid colocou dois tubos pelo meu nariz, chegando às minhas vias respiratórias. Foi assim que ele me ressuscitou. Depois ele cortou as tiras do meu capacete e o removeu, mas tudo isso precisava ser feito com calma e muito cuidado. Havia muito sangue, porque um osso havia quebrado sobre meu fêmur e rompido minha artéria. Ou seja: Sid tentava não apenas me estabilizar, como também estancar o sangue.”
Donnelly ficou em coma induzido, respirando por aparelhos, por semanas, e sofreu duas paradas cardíacas. Ele voltou a viver e voltou a pilotar. Não como antes, nem mesmo na Fórmula 1 — o corpo nunca mais deixou —, mas o bastante para dizer ao mundo que ainda estava ali. Em 2011, reencontrou o Lotus 102 no Festival de Goodwood. Subiu nele, ligou o V12 e andou.
O acidente de Donnelly não é só um dos mais impressionantes da história da Fórmula 1. É, talvez, o mais cru. Porque não houve explosão, nem fogo, nem melodrama. Houve apenas um corpo estirado no chão, imóvel, numa posição que dizia “não era para ele estar vivo”. E ele estava.
E F1, por mais ficcional que seja, fez um favor à história: lembrou que, antes da glória, existe o risco. E que por trás de cada campeão, há vários pilotos como Donnelly — um piloto que nunca chegou lá, mas que nos lembrou por que chegar lá é tão importante e valioso.