Os esporte-protótipos das décadas de 1960 e 1970 estão entre os carros mais cultuados pelos entusiastas e com razão: poucas categorias de corrida eram tão extremas e forneciam um espetáculo para os sentidos tão intenso quanto as provas de longa duração da FIA naquela época. Os automóveis eram construídos quase sem restrições técnicas, correndo por horas a fio nos circuitos mais importantes do planeta, com alguns dos melhores pilotos de todos os tempos ao volante.
Nós, pessoas comuns, passamos a vida apenas sonhando com a experiência de sentar ao volante de um daqueles monstros mecânicos. Há, contudo, quem tenha a oportunidade de conduzir três deles em um só dia. Você só precisa ser um piloto profissional consagrado, com quatro títulos na Fórmula Indy (2007, 2009, 2010 e 2012), como Dario Franchitti.
Não é bem assim, mas de fato Dario foi convidado pela revista Motor Sport para acelerar três protótipos emblemáticos do antigo WSC, o World Sportscar Championship: a Ferrari 512S, o Porsche 917K e o Lola T70. Três carros de corrida bem diferentes feitos com o mesmo objetivo – ser mais rápidos que todos os outros nas corridas de 6, 12 ou até mesmo 24 horas do Mundial de Endurance. Na década de 1970 isto geralmente significava uma estrutura tubular, carroceria de fibra de vidro, motor central-traseiro e… não muito mais do que isto. Elementos de aerodinâmica, por mais sofisticados que fossem, ainda eram bem mais simples que os de hoje; não havia transmissões sequenciais, controles eletrônicos e sistemas híbridos; e os motores geralmente eram naturalmente aspirados, derivados daqueles vistos nas ruas.
E o resultado não poderia ser outro: um verdadeiro espetáculo de som e fúria no circuito de Donington Park, no Reino Unido, que naquele dia aparentemente estava cheio de clássicos das pistas. O vídeo foi feito para complementar a edição de outubro de 2018 da revista Motor Sport, mas os caras foram legais o bastante para compartilhá-lo na íntegra em seu canal do Youtube. Nesse tipo de situação é bom ter fones de ouvido por perto.
Os três carros possuem significado histórico. A Ferrari 512S competiu pela equipe norte-americana NART em provas como as 12 Horas de Sebring e as 24 Horas de Daytona.
O Porsche 917K, por sua vez, é um dos carros que estrelaram “As 24 Horas de Le Mans” (Le Mans, 1971) com Steve McQueen. Mas este não é o carro que o king of cool conduziu, e sim o carro que venceu a corrida do filme. O carro, de chassi #24, segundo consta foi o primeiro 917 a participar de uma corrida de verdade – os 1.000 Km de Spa-Francorchamps, na Bélgica, em 1969.
Já o Lola T70 é um dos carros da coleção de David Piper, uma das maiores figuras do automobilismo dos anos 1960 e 1970. Piloto, entusiastas e colecionador, Piper competiu em diversas corridas de longa duração nas décadas de 1960 e 1970. Conhecido por seus carros verdes, ele adicionou este exemplar do T70 a sua coleção em 1969, quando o mesmo ainda era um dos mais modernos e populares protótipos-esporte disponíveis no seleto mercado de carros de corrida.
Apresentada em 1969, a Ferrari 512S inaugurava uma nova geração de motores V12 para a Ferrari, com cinco litros de deslocamento (por isso o nome 512 – 5 litros e 12 cilindros) e 560 cv. Era um motor extremamente sofisticado, com comando duplo nos cabeçotes e quatro válvulas por cilindro que, arrefecido a líquido, precisava de um pesado radiador e diversos dutos para ser resfriado adequadamente; mas a recompensa era um ronco aburdo. Este invadia completamente o cockpit que, diferentemente dos outros dois protótipos testados por Franchitti, era aberto. O duto de admissão ficava a poucos centímetros da cabeça do piloto, e o resultado era o som estridente da indução se misturando à música dos 12 cilindros. O retrovisor ficava do lado de fora, sobre a moldura do para-brisa, e não havia espelhos nas laterais.
De acordo com Franchitti, a característica mais marcante da Ferrari 512S é a direção pesada (algo ainda mais evidente com o volante de diâmetro pequeno), porém muito comunicativa e precisa para um carro de quase cinco décadas. O entre-eixos curto, de apenas 2,4 metros (igual ao do Fusca!) reduz bastante a inércia polar e, consequentemente, a 512S muda de direção muito rápido.
O problema da Ferrari 512S era seu temperamento: embora fosse tão veloz quanto o Porsche 917, ela sofria com problemas de confiabilidade, especialmente na transmissão e na suspensão, o que acabou cobrando seu preço nas 24 Horas de Le Mans de 1970 (que foram vencidas pela Porsche).
No calendário do Mundial de Endurance (do qual Le Mans não fazia parte, sendo uma corrida especial separada das demais), a 512S venceu as 12 Horas de Sebring de 1970, mas as nove outras corridas ficaram com a Porsche. Que, como já dissemos, era praticamente imbatível nas provas de longa duração naquela década.
Mas não é “só” disso que é feita a reputação do 917: além de ser um carro vencedor, ele também era simplesmente ridículo – no bom sentido. A estrutura tubular era embrulhada por uma carroceria de fibra compacta, de tamanho suficiente apenas para garantir a eficiência de seus elementos aerodinâmicos, e que não deixava espaço para nada que não fosse absolutamente necessário para andar rápido na pista movido por seu flat-12 de 4,9 litros e 630 cv, feito a partir de dois flat-6 de 911. Ou seja, era um motor arrefecido a ar, que trazia a vantagem de não precisar de um pesado sistema de arrefecimento. E tinha uma construção relativamente simples, com componentes robustos, o que certamente ajudava no quesito durabilidade.
Dario Franchitti faz questão de lembrar as características que tornam o 917K famoso: o comprometimento na redução de peso, que incluía uma chave de ignição perfurada e a manopla do câmbio esculpida em madeira balsa; e o fato de as pontas dos pés do piloto ficarem a centímetros do bico do carro – bem na zona de impacto. Ele também diz que o carro é um dos que melhor conseguem transmitir ao piloto exatamente o que está acontecendo a cada minuto para que possam ser aplicadas as devidas correções.
“Quando o carro acelera é possível sentir a dianteira levantando, como em uma lancha de corrida, e quando ele freia você pode sentir o carro mergulhando para a frente, e é possível controlar a trajetória do carro na curva dependendo do momento da frenagem, da força da frenagem e de quanto tempo dura esta frenagem”, ele comenta. E acrecenta que o curso dos pedais é longo, permitindo bastante modulação – especialmente no acelerador. “Era o controle de tração que eles tinham naquela época”, brinca. E completa dizendo que há uma razão para que o 917 seja referência entre os protótipos-esporte, mas que não teria coragem de levá-lo ao limite como “muito poucas pessoas eram capazes de fazer”. Modéstia ou preocupação com o preço do seguro? Difícil dizer.
O último carro que Dario pilota em Donington Park é também o mais antigo em concepção. O Lola T70 é de uma geração anterior aos outros dois carros e, para Franchitti mas, ao mesmo tempo, é o que mais se assemelha a um protótipo moderno em termos de ergonomia e posição de pilotagem, com o volante mais próximo do piloto, encosto menos inclinado (no Porsche 917 o piloto vai quase deitado) e um interior mais confortável, no geral. “O visual é parecido, mas o ambiente em si é bem diferente, muito mais espaçoso”.
Foto: Petrolicious
Diferentemente do Porsche e da Ferrari, o T70 não usava um motor criado especificamente para ele, e sim um V8 Chevrolet small block de cinco litros (305 cm³) baseado naquele que podia ser encontrado no Corvette e no Camaro, por exemplo. Isto o tornava não apenas mais acessível na hora de comprar e de manter – , mas também lhe conferia bastante torque em baixas rotações – e 450 cv à disposição do pé direito. “Ao contrário do 917 e da 512, este carro não é uma peça de museu que anda de vez em quando. Ele ainda compete, e por isso dá para perceber que ele é melhor resolvido em dinâmica. O volante é pequeno e muito, muito pesado, mas tem boas respostas e o carro tem bastante aderência”. O piloto escocês admite que o Lola T70 não entrega o mesmo nível de desempenho que os outros dois, mas graças a seu excelente acerto dinâmico, era um carro extremamente competitivo por uma fração do preço. E isto fazia bastante diferença em uma época de grids cheio de equipes privadas.
Dito isto, todos os três têm em comum uma experiência de pilotagem muito mais orgânica do que qualquer protótipo moderno.
Foto: Motorsport.com
“Eram carros que permitiam que se brincasse mais com os freios e o acelerador – qualquer movimento do piloto tinha um impacto muito maior sobre o que o carro fazia na pista. Eles deixam muito mais claro quando você ultrapassa seus limites, quando você toma mais liberdade e freia um pouco mais tarde ou carrega velocidade demais na saída da curva. É preciso ter muito mais cuidado com isto. Os caras que dirigiam essas coisas na chuva, à noite, em corridas de 12, 24 horas, eram pilotos de muita coragem.”