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Car Culture

Flachbau: a história do 911 Slantnose

No início da década de 1970 a Porsche vivia uma encruzilhada nas pistas. O domínio absoluto que havia alcançado com os protótipos — primeiro com o 917 de 4,5 litros em Le Mans 1970, depois com a evolução 917/30 no Can-Am — estava chegando ao fim. A FIA mudara os regulamentos de endurance, limitando motores e categorias de protótipo, e forçava a Porsche a recuar. Se os 917 haviam projetado a marca ao topo do automobilismo mundial, agora era hora de voltar às origens: o 911.

O carro de competição de referência da casa em 1973 era o 911 Carrera RSR 2.8, logo evoluído para o RSR 3.0. Leve, com até 330 cv aspirados, carroceria alargada e suspensão refinada, o RSR brilhou em provas como Targa Florio, Daytona e Sebring. Mas quando 1975 chegou, ele já mostrava sinais de obsolescência. O motivo era simples: a FIA havia reformulado os regulamentos para 1976, reorganizando o Campeonato Mundial de Carros Esporte em diferentes campeonatos para diferentes classes. Para a Porsche, a continuidade do RSR aspirado não faria sentido: faltava potência frente à nova geração de carros turbo, e o 911 Turbo de rua, lançado em 1974, oferecia uma base perfeita para homologação.

Nascia assim o 934, a versão de Grupo 4 do 911 Turbo. O regulamento exigia que ele fosse muito próximo ao carro de rua: mantinha as linhas básicas da carroceria, interior parcialmente conservado, e usava o motor 3.0 turbo com injeção mecânica Bosch K-Jetronic. A potência, porém, subia de 260 cv no 930 de rua para algo em torno de 480 cv, com peso mínimo próximo a 1.120 kg. Foi o carro entregue aos clientes para campeonatos nacionais e continentais em 1976.


Em 1976, a Porsche estruturou sua temporada em dois polos: o 936, desenvolvido para os protótipos do Grupo 6, e o recém-criado 935, uma versão radicalizada do 911 Turbo, adaptada às regras do Grupo 5. Ambos os projetos contavam com o patrocínio da Martini Racing, que já havia apoiado os 917 e 908 da marca no início da década, incluindo o 917 vencedor de Le Mans em 1971.

O calendário era exaustivo: sete etapas em cada campeonato, algumas coincidentes, outras até em países diferentes, exigindo que a Porsche dividisse suas equipes e recursos com precisão militar. Jacky Ickx e Jochen Mass eram os pilotos titulares, quando a agenda da Fórmula 1 permitia; Rolf Stommelen, ainda em recuperação do grave acidente no GP da Espanha de 1975, atuava como reserva, junto de Manfred Schurti.

As regras do Grupo 5 permitiam modificações expressivas na carroceria, desde asas maiores e bitolas alargadas até sistemas de refrigeração por água, desde que a forma básica do carro permanecesse reconhecível. Para o 935, a base era o flat-six 3,0 litros do 911 Turbo, agora reduzido a 2,85 litros para cumprir o limite de deslocamento — o regulamento impunha um fator de equivalência de 1,4 para motores sobrealimentados, o que fazia com que o 935 se enquadrasse na classe de 4,0 litros. Mesmo com o deslocamento menor, o motor entregava 561 cv a 7.900 rpm e 60 mkgf a 5.400 rpm. O carro pesava 900 kg em ordem de marcha. Nos testes de pré-temporada em Paul Ricard, o 935 atingiu 295 km/h, provando que era competitivo mesmo contra protótipos mais sofisticados.

Além do 935, a Porsche oferecia aos clientes o 934, versão de rua preparada para o Grupo 4 com 362 kW (485 cv), e o Carrera RSR naturalmente aspirado com 340 cv. Algumas equipes privadas adaptavam os 934 ao regulamento do Grupo 5, criando os chamados 934/5. Entre elas, estava a Kremer Racing, que inscreveu um 935 K1 construído sobre um chassi de fábrica. Na primeira prova, as 6 Horas de Mugello, a Kremer terminou em segundo, atrás do 935 da Martini Racing com Mass e Ickx. As sete primeiras posições foram ocupadas por Porsches, apenas o oitavo era um BMW, deixando claro o domínio da marca na pontuação.

O campeonato, contudo, não seria fácil para a Porsche. Logo após a segunda prova, os fiscais da FIA exigiram que o 935 usasse o mesmo spoiler e tampa do motor do 911 Turbo de rua — o 935 usava uma peça maior para acomodar um imenso radiador ar-ar para o sistema turbo. A troca do custou semanas de testes e uma pequena fortuna para a Porsche. Além disso, o 935 sofreu com problemas de embreagem (importante notar que ele tinha diferencial fechado), falhas de ignição e vibrações atrapalharam a Porsche em Silverstone e Vallelunga, permitindo que a BMW vencesse as duas corridas.

O 935 ainda com a dianteira original em Silverstone

Na véspera da quinta etapa do campeonato, os 1.000 Km de Nürburgring, os engenheiros da Porsche, liderados por Norbert Singer, que havia trabalhado no 917 e no 908, descobriram uma brecha no regulamento que permitia alterar a dianteira do carro. O 935 sofria com uma ligeira turbulência na dianteira, causada pela posição verticalizada dos faróis e pelos para-lamas salientes. Mas com a brecha encontrada nas regras, a Porsche poderia reposicionar os faróis e remodelar o capô para melhorar a resistência ao vento. Assim, nascia a dianteira “flachbau” ou “slantnose”.

O novo 935 em Nürburgring

Além da frente, o 935 ganhou para-lamas traseiros alongados, que melhoravam o fluxo de ar, ofereciam mais espaço para os componentes do motor e aprimoravam o resfriamento. O 935 com a nova frente estreou nos 1.000 Km de Nürburgring, pilotado por Stommelen e Schurti enquanto Mass e Ickx corriam em Mônaco pela Fórmula 1. A performance impressionou: pole position com 7:37,5. Na prova, as vibrações provocadas pelas superfícies irregulares de Nürbrugring causaram uma falha na ignição e o carro abandonou a prova com apenas nove das 47 voltas previstas. A BMW levou mais uma vitória. Ainda assim, era evidente que o conceito funcionava.

O teste de fogo para o 935 aconteceu nas 24 Horas de Le Mans — que não estava em nenhum dos campeonatos daquele ano. A Porsche optou por um acerto de motor mais conservador e se classificou em terceiro com Stommelen e Schurti. Mesmo com o peso mais alto e o maior arrasto comparado aos protótipos do Grupo 6, o 935 terminou a corrida em quarto lugar.

A partir dali, o 935 passou a correr apenas com a dianteira baixa e, apesar das dificuldades em Nürburgring e na etapa seguinte, na Áustria, o 935 voltou a vencer nas duas últimas provas do Mundial de Marcas, em Watkins Glen e Dijon. Com as duas vitórias, a Porsche superou a BMW por dez pontos e conquistou o título.

No fim da temporada, apesar das dificuldades, o 935 e o 936 conquistaram seus campeonatos. Nas pistas, o Slantnose chamava atenção e inspirava as equipes clientes a adotarem a dianteira baixa “flachbau”, algo que acabaria levando o novo design para os Porsche de rua — e, mais tarde, inspirando a própria Porsche.


Agora coloque-se por um instante em 1978. Pense nos supercarros da época: Ferrari BB, Aston Martin V8, Lamborghini Countach, Maserati Bora/Merak, Lancia Stratos e De Tomaso Pantera. Agora pense em um Porsche 911 Turbo, com exatamente o mesmo visual básico de 1964 e tente imaginar o impacto que o 935 causou no público. Era um carro totalmente novo — um Porsche moderno e capaz de superar qualquer outro esportivo, como ficou claro nas pistas. Era natural, portanto, que o público procurasse um Porsche mais parecido com o 935. O único problema é que ele não existia. O 935 era um carro exclusivo para as pistas, uma derivação radical do 930 e, por isso, se você quisesse um 935 de rua, teria de se contentar com o 930. Isso, claro, se dependesse apenas da Porsche.

Um Supercarro de 1978

Acontece que, naquele final dos anos 1970, você não dependeria apenas da Porsche. Era o início do auge do “german tuning”, e o que não faltavam eram empresas dispostas a entregar ao público o que as fabricantes não queriam, não podiam ou não conseguiam. No caso da Porsche, ela ainda não havia descoberto a fábrica de dinheiro que é a customização de um esportivo, então coube à DP Motorsport e à BB Auto fazer isso.

E o Porsche Turbo 1978

Não se sabe qual das duas foi exatamente a primeira a oferecer a conversão — o que se sabe é que as duas já ofereciam um kit slantnose/flachbau em 1978, cada uma ao seu jeito. A DP Motorsport era a fornecedora da dianteira da Kremer, então apenas adaptou seu kit de corrida para o carro de rua. Por isso, ele tinha os faróis nas extremidades do para-choques, sob lentes, como o 935 de fábrica e os 935 K da Kremer.

A BB Auto, por sua vez, era mais sofisticada: o carro recebia uma nova dianteira toda de aço e usava os faróis retráteis do Porsche 928. O modelo foi batizado como 911-30-28, e foi oferecido a partir de maio de 1978. Só a conversão básica custava 7.500 marcos alemães (DM). Na época, um Turbo Targa novo convertido pela BB, completo com motor 3.3 e a dianteira 928, chegava a 162.500 marcos. O propulsor entregava 370 cv com pressão do turbo ajustada para 1,1 bar.

Além da conversão básica, os clientes podiam escolher uma série de upgrades. Havia rodas BBS com centro colorido e aro polido (3.250 DM), grande radiador de óleo frontal (4.500 DM) e diferencial autoblocante (850 DM). O interior podia receber bancos e painel revestidos em couro, carpetes de veludo até no porta-malas (3.950 DM), assentos elétricos (2.200 DM), ar-condicionado (2.600 DM) e até um minibar refrigerado no banco traseiro (1.500 DM).

O pacote de entretenimento também era extenso: TV colorida Sony com amplificador (2.650 DM), telefone de 40 canais Citizen com amplificador de 150 W (4.000 DM), sistema de som de quatro alto-falantes (1.300 DM), relógio e tacômetro digitais (1.200 DM) e até um interruptor de boost ajustável com indicador de pressão (2.000 DM).

Para clientes mais preocupados com segurança, havia opções de alarme (700 DM), cofre conectado ao alarme (850 DM) e compartimento oculto para arma de fogo (380 DM). Entre os upgrades mais prosaicos estavam o limpador traseiro e os retrovisores aquecidos e elétricos.

O primeiro 911-30-28 Turbo Targa foi encomendado pelo proprietário de cassino de Curaçau, Ortega Ramirez, que pediu praticamente todas as opções possíveis. As personalizações extras deste exemplar Midnight Black, incluindo detalhes em dourado e bancos e tapetes monogramados, elevaram o preço final para impressionantes 250.000 DM — equivalentes a 361.500 euros atualmente. Como comparação, um GT3 RS 2025 custa 250.000 euros.

A demanda pelas conversões da DP e esta venda suntuosa da BB Auto, logo motivaram outros tuners a desenvolverem seus próprios kits. A Ruf começou a oferecer o seu em 1979 e a Kremer, no ano seguinte. Também em 1980 a Porsche acordou para o mercado. Todas estas preparadoras estavam ganhando dinheiro com um desenvolvimento seu. Era hora de fazer algo a respeito.


Àquela altura a Porsche já tinha sua divisão de projetos especiais, a Sonderwunsch, mas ainda atuava a pedido dos clientes, e não por iniciativa própria. A divisão era mais a oficialização de uma prática que sempre existiu na Porsche (a de pedidos especiais em troca de quantias generosas) do que uma “divisão especial” propriamente dita. Tanto que o primeiro 930 flachbau oficial da Porsche só aconteceu em 1989, quando o empresário alemão Gerhard Siegfried Amann decidiu que não queria as conversões das preparadoras, e sim um 930 flachbau original Porsche.

A Porsche encontrou uma solução diferente das preparadoras. Em vez de adaptar a dianteira do 935 ou do 928, eles simplesmente criaram novos para-lamas lisos, alinhados com o capô, e um novo para-choques que acomodava o novo conjunto óptico — um faróis retangulares em cada lado —, que ficaria conhecido como “hammerhead”.

Um “Hamerhead” similar ao modelo original de Amann

O carro foi entregue em 1980, pintado de cinza prateado, e serviu como base para as primeiras unidades do 911 Flachbau feitas pelo programa Sonderwunsch da Porsche. Ele ainda seria atualizado mais três vezes: duas pela própria Porsche (em 1983 e 1985), quando foi repintado de preto, e uma terceira por uma oficina independente, que instalou uma dianteira da DP Motorsport nele.

O Porsche de Amann atualmente

Em 1983, depois de fazer 58 unidades do 911 Flachbau “Hammerhead”, a Porsche finalmente passou a oferecer uma solução mais bem-resolvida para os clientes que quisessem um 911 com a dianteira baixa. Eles ainda seriam feitos exclusivamente sob encomenda pelo programa Sonderwunsch, mas agora com um para-choques mais elegante, incorporando faróis auxiliares e um radiador de óleo centralizado. Os faróis passaram a ser escamoteáveis, e havia a opção de respiros nos para-lamas, acima dos faróis, emulando os carros de corrida 935. A maioria dos 204 exemplares desta fase saiu da fábrica com saias laterais, tomadas de ar traseiras, interior personalizado e kit de potência de 330 cv.

Foi somente em 1985 que a Porsche passou a oferecer o 911 Flachbau como um modelo opcional regular para o 911 Turbo. Na prática, ele foi um modelo voltado ao mercado americano, uma vez que 630 dos 686 exemplares produzidos foram vendidos nos EUA, sob as especificações daquele mercado. Mais conhecido como Slantnose, o modelo foi oferecido tanto como opção para o Turbo S (M505) quanto para o Turbo SE (M506).

Eles eram fabricados junto dos 930 na linha de produção em Zuffenhausen já com os para-lamas achatados e com os respiros após os faróis retráteis. Antes de ir para as lojas, contudo, eles passavam pelo Departamento de Reparo e Restauração (onde foram feitos todos os Flachbau anteriores) para receber o acabamento final. O M505 mantinha o para-choque dianteiro do 930 e o motor 3.3 Turbo com catalisador. O radiador de óleo centralizado na dianteira não era permitido em alguns estados norte-americanos, então foi instalado no para-lamas traseiro direito, logo atrás da tomada de ar.

Sem radiador na dianteira, é o M505

Já o M506 tinha o radiador de óleo montado na dianteira e um defletor mais profundo. A maioria vinha equipada com o kit de 330 cv. Os dois modelos foram oferecidos a partir da linha 1986 e permaneceram em produção até 1989, quando a nova geração do 911, a 964, chegou ao mercado.

O M506 tinha o radiador centralizado

Àquela altura a Porsche já tinha entendido as regras do jogo: oferecer algo exclusivo por muita grana. A Porsche Exclusive, sucessora direta do Sonderwunsch, não ia deixar passar a chance de recriar o Flachbau dentro desse novo cenário. Havia duas interpretações principais. A primeira seguia a tradição inaugurada no 930, com faróis escamoteáveis no capô e para-lamas dianteiros de desenho plano e prolongado, remetendo diretamente ao estilo do 935 de corrida. Esta versão é muitas vezes referida como 964 Turbo S Flachbau X83/X84/X85, dependendo do mercado.

Os códigos até hoje confundem muita gente. O X83 foi a versão exclusiva para o Japão, baseada no 964 Turbo 3.3, com os faróis escamoteáveis no estilo 935. Foram feitos apenas 10 exemplares. O X84, voltado para a Europa, seguiu a mesma receita, mas em números ainda menores: cerca de 27 carros. Já o X85 foi o código destinado aos EUA, o maior mercado de Porsche — e do Flachbau. Mesmo assim só rendeu 39 unidades. Somando tudo, pouco mais de 70 carros em todo o mundo — um número quase simbólico diante da produção total do 964.

Essas três variantes têm em comum o estilo “slantnose clássico”: dianteira baixa, faróis pop-up, para-lamas dianteiros redesenhados e entradas de ar inspiradas no 935. Mas havia também uma alternativa, mais discreta, que usava faróis fixos integrados à carroceria no estilo do 968. Essa versão ficou conhecida como “Package Option 505” e acabou servindo de porta de entrada para clientes que queriam exclusividade sem abraçar o visual mais radical.

O modelo 1994, também com o código 505, como seu antecessor

Quando o motor 3.6 de 360 cv chegou em 1993, nasceu o 964 Turbo S Flachbau, o auge da espécie. Além da dianteira, ele recebia entradas de ar extras nas laterais traseiras, rodas Speedline de três peças e uma infinidade de detalhes feitos sob encomenda: interiores completos em couro colorido, consoles exclusivos e combinações de pintura que hoje são praticamente impossíveis de repetir. Pouquíssimos foram construídos em 1994, tornando-o ainda mais raro do que os X83/84/85.

A dianteira “flachbau” só voltaria ao mercado em 2019, quando a Porsche lançou a série limitadíssima 935, baseada no 991 GT2 RS. Apesar da produção de apenas 77 unidades voltadas ao uso exclusivo em pista, a Lanzante converteu duas destas unidades para uso nas ruas — o que faz delas as mais recentes “Flachbau” que se pode comprar. Isso, claro, se a Porsche não estiver mesmo pronta para lançar um novo 911 Flachbau.