Antigamente eu tinha a impressão de que a TVR construía um carro, o colocava à venda e depois descobria como ele se comportava. Geralmente, quando um de seus clientes escrevia para a fábrica reclamando que morreu.
Jeremy Clarkson, sobre o TVR Sagaris
Foi com esta auto-ironia tipicamente britânica, já avisando de antemão os possíveis problemas inerentes de um site recém-inaugurado, que o FlatOut entrou oficialmente no ar, há exatos 365 dias e algumas horas. Muitos de vocês já nos conheciam desde o finado site Jalopnik Brasil, muitos outros nos descobriram pelo crescimento natural do site (que hoje, passa da média de 3 milhões de pageviews / 1,5 milhão de visitas por mês) – mas poucos de vocês sabem a real história disso que parece apenas uma transição, mas que foi muito, mas muito além de uma mudança de nome.
Este post se dedicará a contar esta história – na íntegra, sem politicagens – e a agradecer a todos aqueles que nos apoiaram nesta jornada.
Uma morte…
O Jalopnik Brasil podia ter a mesma equipe editorial (eu, Juliano Barata, de editor-chefe; Leo Contesini de editor e Dalmo Hernandes de repórter), mas estruturalmente era algo totalmente diferente. O site era operado no Brasil pela empresa de mídia F451 (uma espécie de editora online, na qual éramos funcionários) sob uma licença anual da norte-americana Gawker Media, proprietária do Jalopnik US. Justiça seja feita, contudo, quem originalmente trouxe o Jalop para cá foi a Spicy Media, do visionário empreendedor Adriano Silva (dentre outros sócios), que foi eventualmente absorvida pela F451. Nesta época, o editor-chefe do Jalopnik Brasil era o Leo Nishihata, a quem agradeço pela oportunidade de ter me aceitado como colaborador.
Se os primeiros dois anos do Jalopnik Brasil (2010-2011, imagem acima) foram impressionantes em todos os sentidos possíveis, 2012 e 2013 não foram nada bons na parte da grana. A audiência crescia exponencialmente (em menos de um ano, passamos de 500 mil para 1 milhão de visitas mensais), mas comercialmente, a coisa ia de mal a pior. E então, em agosto de 2013, veio a notícia mais temida: a confirmação de que o contrato com a Gawker não seria renovado. Era a morte do Jalopnik Brasil. Junto, outro site da F451, o amado Tazio, também receberia a bandeira quadriculada.
Foi o pior dia da minha carreira.
Pior que a notícia da morte, contudo, foi o antes e o depois. Os meses anteriores, de expectativa, esforço e agonia, e os meses posteriores, de certeza de uma morte que chegaria em poucos meses, mas que não poderia ser anunciada de forma tão precoce, afinal, havia compromissos editoriais e comerciais a serem cumpridos. Estávamos – eu, Leo, Dalmo – altamente estressados. Mais do que isso, deprimidos. Dormíamos mal, comíamos mal, não tínhamos inspiração. O Jalopnik Brasil não era só um lugar onde a gente trabalhava. Era a nossa casa, o nosso ideal. Era nosso. Mesmo sem nunca ter sido.
Não era sobre a perda de um emprego, era sobre a perda de uma causa.
Quando tive o terrível fardo de dar esta notícia aos leitores, passei a noite em claro. A reação de quem leu, os comentários dos leitores que testemunharam aquele dia, me permitem dizer que não foi exagero.
Antes de assumir a vaga de editor-chefe no Jalop, tive alguns anos acumulados nas revistas Quatro Rodas e Car and Driver. Meu nome não era exatamente desconhecido neste mercado, então sabia que poderia arranjar onde ficar, mesmo que levasse um tempo. Mas comecei pela ordem inversa. Quando soube que havia uma vaga no caderno de automóveis do maior jornal do país, rapidamente contatei um amigo que tinha por lá, porque sabia que o Leo Contesini faria um trabalho excepcional por lá. Chegaram a agendar entrevista e tudo. Já estava fazendo meus contatos para buscar oportunidades para os talentos do Dalmo, quando tive uma ideia particularmente retardada.
“E se?”
…um nascimento.
Existem ideias idiotas, aquelas que você sabe que não vai dar certo. Mas quando a ideia é tão profundamente idiota que beira o absurdo, até existe a chance de ela dar certo. Afinal, ela sequer se enquadra no campo de atuação das leis de Murphy.
Por exemplo, montar uma empresa out of nowhere. Sem investidores, sem apresentação, sem case. Sem nada no bolso senão minha própria rescisão e um punhado de argumentos anotados num bloco de notas. Sim, eu liguei para o Leo e para o Dalmo para fazer um convite que beirava a ofensa: fazermos mais ou menos aquilo que fazíamos no site que estava prestes a fechar as portas, mas sem salário. Uma sociedade, que naquele instante dividia porcentagens do mais profundo e gelado zero.
Para piorar, estávamos em outubro, época na qual os planejamentos de publicidade costumam começar a ser fechados. Na melhor das hipóteses, o site, que nem tinha nome ou havia sido rabiscado, iria ao ar em janeiro. Perderíamos o calendário 2014 de publicidade (ao menos o primeiro semestre), que ainda teria a Copa do Mundo. Ou seja, a pior época para um site de carros nascer.
Minha oferta? Seguraria todas as contas estruturais da empresa até meu dinheiro da rescisão acabar. Pelas minhas contas, teríamos três ou quatro meses. Pode rir – eu riria.
Mesmo assim, todos aceitaram antes mesmo de eu terminar a lista de argumentos. Havia no ar um sentimento coletivo de fazer um esforço sobrenatural para manter viva a chama dos car lovers, porque fora isso, não havia mais nada mesmo. Era impossível chamar aquilo de negócio interessante no sentido econômico. Era morte certa, mas que se fosse acontecer, que acontecesse com a última gota de sangue, com o esforço e o endividamento pessoal. Uma versão empresarial microscópica dos 300 de Esparta.
É por isso que decidimos fazer tudo mais intenso no FlatOut. Botamos vocês para participar criando o “Project Cars”, verticalizamos mais as matérias, ficamos mais seletivos, pedimos a ajuda com o Crowdfunding, enfim: entramos no espírito Carpe Diem. Se não desse certo, ao menos teríamos a certeza de que o último dos esforços havia sido consumido.
O primeiro post do Project Cars foi lançado no segundo dia do site: 24 de dezembro. Nada menos que 740 comentários em pleno natal!
Em janeiro, primeiro mês completo do site, batemos 920 mil visitas. Em fevereiro, 980 mil. Em maio, passamos do 1,1 milhão e assim batemos o recorde do finado Jalopnik Brasil – ou seja, em cinco meses, passamos quatro anos do antigo site. Desde o segundo mês do site, atraímos a atenção de agências de publicidade, que não entendiam como um site “virgem” podia crescer tão rápido e ter engajamento (participação qualificada dos leitores) tão alto. Daí vocês têm uma noção da importância de… vocês mesmos.
Mas em maio, quando batemos o recorde do Jalopnik Brasil, também acabou o meu dinheiro. Tinha 400 reais na conta. O Crowdfunding, sistema de doações que criamos para ajudar a sustentar o site, não era suficiente para segurá-lo sozinho. Eu efetivamente vendi várias das partes vitais do meu Dodge Dart, enquanto começava a separar os e-mails dos contribuintes das assinaturas, para fazer as devoluções na possibilidade do pior cenário. Ao fazer as contas, torrando geral teríamos mais alguns meses extras.
Vitória na última curva
Magicamente, foi justamente nesta época que surgiram os primeiros contratos. Quase ao mesmo tempo, Dunlop (19 de maio) via agência Gpac/e-Tools, e AutoZ (6 de maio) patrocinaram as seções Zero a 300 e Project Cars. Pouco tempo depois, agências de publicidade como a Neogama, JWT, Ampfy e Aunica trouxeram publicidades (nas peças que comumente chamamos de “banners”) da Ford, BMW, Mini e Mitsubishi; e as empresas pequenas e médias (PME), como a Garage Store, AWRS e J RaceDesign entraram quase ao mesmo tempo. Hoje, temos uma lista de 15 empresas PME que apoiam o FlatOut todo mês, todas elas atuantes na área de peças e serviços voltados aos entusiastas. E o Crowdfunding também floresceu muito nesta época, pois foi justamente quando tivemos fôlego para investir e criar os famosos adesivos do FlatOut. Ter algo em mãos, que materializasse nossa causa, acelerou muito as assinaturas.
Estávamos salvos – as estratégias de negócio que montamos tinham uma inércia inerente a toda marca nova, mas efetivamente funcionaram e superaram bem o que o Jalopnik Brasil fazia. Poucos meses depois, quando recuperei o dinheiro torrado na infraestrutura do site, decidi dar continuidade ao meu projeto mais antigo: viajar para Nürburgring Nordschleife, pagando todas as despesas por conta própria, e fazer uma série de matérias especiais, com uma profundidade que não tinha visto em sites gringos – algo que eu sempre quis ler, mas não encontrava. Em suma, me endividei novamente, mas a causa não poderia ter sido mais nobre. Não sou eu, somos nós. É como cada um de nós encara esta empreitada, desde o início.
Não posso deixar de agradecer publicamente ao Leo Contesini e ao Dalmo Hernandes pela decisão inacreditavelmente irresponsável de entrar neste cockpit suicida chamado FlatOut – e pelo trabalho simplesmente sublime feito desde o começo. Cada um de nós amadureceu profissionalmente de uma forma tão imensa em 2014, pois todos assumimos riscos gigantescos e funções muito acima dos cargos que tínhamos na época em que éramos funcionários. Quem era leitor do Jalop BR talvez sinta este amadurecimento. Isso explica também alguns atrasos, como a loja online e o app. Mas dando tempo ao tempo, tudo sairá. E nos desculpem os erros e ocasionais pisadas de bola, acho que é impossível ser imune, mas nos dedicamos ao máximo.
Nossa gratidão a vocês, leitores, é nada menos que imensa. É a audiência de vocês, a participação no Project Cars, nos comentários, nos anúncios de publicidade, o apoio, as sugestões, as críticas, a paciência, tudo o que vocês fazem é o que realmente movimenta as engrenagens do nosso motor. Cada um de nós dedica, todos os dias, entre dez e quatorze horas à esta loucura. E fique tranquilo: sempre seremos independentes e sempre teremos total isonomia em nosso trabalho jornalístico.
FlatOut é uma expressão inglesa usada no automobilismo para curvas nas quais você faz de pé cravado. Sim, é uma homenagem à filosofia do grande Colin McRae e seu eterno “if in doubt, flat out!”. Nós tomamos a decisão suicida de entrar nesta curva na neblina a 200 km/h, com o sexto sentido nos dizendo que jamais daria certo. E não só sobrevivemos – como agora estamos no retão, de motor cheio. Em nome de toda a equipe, muito obrigado.
*Descanse em paz, Joe Cocker.