“Ford vs. Ferrari” nos ensinou que Ken Miles e Carroll Shelby foram fundamentais para o sucesso do GT40 em Le Mans e para a vingança de Henry Ford II sobre Enzo Ferrari. Esta parte da história está correta, e abordá-la no filme foi a decisão mais acertada possível.
Apesar do nome do filme ser “Ford vs. Ferrari”, a história é sobre “apaixonados por carros e corridas” vs. “burocratas carreiristas”. Mas ela também é uma história sobre a lealdade da amizade e sobre como o mundo é injusto e cruel e, a nós, só cabe aceitar essa realidade e aprender a lidar com ela.
É esse recorte que transforma “Ford vs. Ferrari” não apenas em um grande filme sobre carros (o melhor, provavelmente), mas também em um grande filme de modo geral. Não foi à toa que acabou indicado a este prêmio pelas diversas entidades de críticos e produtores, entre elas o Oscar.
O que o filme não conta é que antes de Ken Miles havia outro cara ao volante do Ford GT40. E que esse cara era ninguém menos que Bruce McLaren.
Muita gente talvez não se dê conta do contexto, mas há uma sobreposição das linhas do tempo nesta história. Bruce McLaren fundou sua própria equipe no início de 1963. E foi no início de 1963 que Henry Ford II tomou um chá de cadeira e uma negativa de Enzo Ferrari na Itália. Além disso, em 1963 Bruce McLaren ainda pilotava para John Cooper.
Se McLaren já tinha sua própria equipe, se ele corria por outra equipe, o que ele foi fazer na Ford? Como ele foi parar lá?
Simples: Bruce McLaren foi buscar o dinheiro que precisava para desenvolver seu primeiro carro de Fórmula 1.
A história de Bruce McLaren
Bruce McLaren morreu em 2 de junho de 1970. Faz 52 anos. Mais de meio século. Ele não foi campeão da Fórmula 1, nem venceu a Indy, e sua história em Le Mans hoje é ofuscada pela de Ken Miles e pela vitória seguinte, de Dan Gurney e AJ Foyt. Shelby é creditado como o cara que fez a Ford vencer em Le Mans.
Ford vs. Ferrari: o indomável Ken Miles e sua vida dedicada à missão “impossível”
Sua equipe, a McLaren, se tornou uma instituição maior que o homem. Ela não tem uma cara, mas várias caras. Pense na Wiliams e você chegará a Frank Wiliams. Pense na Lotus e o nome de Colin Chapman não demora a vir à mente. Enzo Ferrari até hoje deve vagar pelos arredores de Maranello, observando tudo de outra dimensão.
Mas pense na McLaren e o que você vê? Um carro vermelho e branco com uma marca de cigarros? Ayrton Senna e Alain Prost? Ron Dennis? Gordon Murray e seu F1? Lewis Hamilton e seu macacão branco? James Hunt, talvez? Pode ser qualquer um destes, pode ter todos estes. O que eu tenho certeza é que a cara ou o nome completo “Bruce McLaren” não são a primeira imagem projetada pela imaginação ao se ouvir “McLaren”. A página “Heritage” no site oficial da McLaren, por exemplo, dá mais destaque a Senna do que a Bruce McLaren.
Talvez por isso sua grandeza tenha passado despercebida pelas gerações mais recentes. Qualquer pessoa que tenha menos de 60 anos, talvez. Bruce McLaren partiu há tanto tempo que, para mim e para você, ele é tão distante quanto Juan Manuel Fangio ou Bernd Rosemeyer. Não fez parte do nosso mundo porque, de fato, não viveu no mesmo mundo que eu e você.
Bruce McLaren foi um prodígio. Nascido em Auckland, na Nova Zelândia, era filho de Les e Ruth McLaren. O casal tinha um posto de combustível e uma oficina em Remuera, um subúrbio de Auckland, onde o jovem Bruce passava seu tempo livre aprendendo a trabalhar nos carros com seu pai. Les McLaren era um piloto de moto que trocou as duas rodas pelas quatro depois de um grave acidente nos anos 1930, e estava sempre disputando corridas de automobilismo locais.
Em 1952, antes de fazer 15 anos, Bruce ganhou de seu pai um velho Austin 7 Ulster. O velho Les era um grande incentivador da paixão do filho por carros, pois viu talento no garoto e acreditava que Bruce iria superá-lo nas pistas. Depois de correr uma subida de montanha com o Austin 7 Ulster, Bruce continuou aprendendo tudo o que precisava sobre a preparação e construção de carros até que, dois anos mais tarde, em 1954, ele participou de sua primeira corrida oficial com apenas 16 anos e comprovou seu talento para o automobilismo.
Bruce trocou o Austin por um Ford 10, depois o Ford 10 por um Austin Healey e, finalmente, comprou um Cooper de Fórmula 2 preparado por ele próprio. Em 1958, aos 21 anos, ele já se destacava no campeonato nacional quando disputou a sexta edição do GP da Nova Zelândia. Ele começou a corrida com problemas no câmbio, quase um minuto e meio depois da largada, mas seguiu em frente até que o câmbio quebrou de vez a quatro voltas do final.
O desempenho de Bruce chamou a atenção de Jack Brabham, que convenceu os organizadores do GP a concederem uma “bolsa” para que McLaren fosse à Inglaterra aprender a pilotar e, quem sabe, iniciar uma carreira internacional.
Naquele mesmo ano, 1958, McLaren subiu num avião com seu amigo Colin Beanland em Auckland e desembarcou em Londres. Ele passaria um ano com a Cooper não apenas pilotando, mas também construindo seu próprio carro. Competindo na Fórmula 2 naquele ano, ele foi ao GP da Alemanha, onde os carros de F1 e F2 corriam juntos.
Em um grid com nomes como Stirling Moss, Mike Hawthorn, Tony Brooks, Jack Brabham, Phil Hill e Wolfgang von Trips, Bruce McLaren venceu a prova em sua classe (F2) e chegou em quinto lugar, apenas 10 segundos atrás de von Trips e sua Ferrari. O desempenho lhe rendeu uma promoção para a Fórmula 1 no ano seguinte, como segundo piloto ao lado de Jack Brabham.
Na Fórmula 1, com um dos carros mais importantes da história da categoria, o Cooper T43, o primeiro a vencer um GP com motor central-traseiro, Bruce McLaren venceu o GP dos EUA de 1959 e se tornou o mais jovem vencedor de um Grande Prêmio, aos 22 anos e 104 dias — uma marca que seria superada somente 44 anos depois, quando Fernando Alonso venceu o GP da Hungria de 2003, aos 22 anos e 26 dias. Ainda hoje, Bruce McLaren ocupa a 5ª posição na lista de pilotos mais jovens a vencer um GP.
A vitória de McLaren nos EUA ainda ajudou Jack Brabham a conquistar seu primeiro título mundial. No ano seguinte, na prova inaugural da temporada de 1960, o GP da Argentina, Bruce McLaren voltou a vencer, iniciando no topo aquela que seria sua melhor temporada na F1 — ele ainda chegaria em segundo lugar no GP de Mônaco, no GP da Bélgica e de Portugal, além de conquistar o terceiro lugar no GP da França e dos EUA, e um quarto lugar no GP da Grã-Bretanha, pontuando em todas as corridas que disputou.
Apesar do desempenho, ele ficou em segundo lugar no mundial, atrás de seu mentor Jack Brabham, que conquistava o bicampeonato.
A Bruce McLaren Motor Racing
Brabham deixou a Cooper em 1962 para pilotar pela sua própria equipe. McLaren, percebendo que a Cooper já não estava mais na vanguarda da Fórmula 1, começou a planejar sua própria equipe. Ainda pilotando pela Cooper, ele fundou em 1963 a Bruce McLaren Motor Racing.
Só havia um problema: ele não tinha dinheiro para bancar o desenvolvimento do seu primeiro carro. E é aqui que a Ford entra na história.
Quando decidiu pegar os italianos em Le Mans, Henry Ford II foi atrás da Lola, comprou o projeto do Lola Mk6, criou uma divisão interna para desenvolver o carro, formou a equipe, destinou os recursos e estava procurando um piloto que pudesse avaliar e ajudar no desenvolvimento do carro. Eles precisavam de um piloto que conhecesse suficientemente bem o processo de construção de um carro, que tivesse domínio da engenharia e da mecânica por trás de um carro de corridas e que, ao mesmo tempo, fosse talentoso o bastante para pilotá-lo em alto nível.
Este piloto, não por acaso, era Bruce McLaren.
Lembre-se: em 1963 Carroll Shelby não era mais piloto. Ele estava começando sua Shelby American, ocupado demais com o Daytona Coupé. Jack Brabham estava no Reino Unido fazendo seus carros. Dan Gurney, o outro piloto-construtor da época, estava esperando Carroll Shelby para fazer a All-American Racers. Bruce McLaren era o único nome disponível.
Ele foi contratado em agosto de 1963 para avaliar o protótipo e topou o projeto. Aos poucos, o GT40 começou a ser desenvolvido e melhorado por McLaren. Foram oito meses de trabalho, aperfeiçoando nas pistas o que os precários computadores de 1963 tentavam projetar para a suspensão e para a aerodinâmica.
O acerto do primeiro carro foi todo feito por McLaren, que foi o responsável pela inclusão do spoiler traseiro que o GT40 ostentou por toda a sua existência — o original tinha a traseira plana. Durante os testes para Le Mans em 1964, contudo, ficou claro que o carro tinha problemas de aerodinâmica, pois ele ganhava sustentação em altas velocidades.
Durante a corrida os problemas de confiabilidade começaram a aparecer. Bruce McLaren, que dividiu o carro com Phil Hill, abandonou a prova com problemas no câmbio Colotti depois de 14 horas. Os três carros inscritos pela Ford abandonaram a prova.
Até então o GT40 estava sendo desenvolvido no Reino Unido pela divisão que a Ford criara por lá devido à proximidade com a Lola. Depois do fiasco de Le Mans, Henry Ford II decidiu que o desenvolvimento do carro continuaria nos EUA. E para completar a mudança na estratégia, chamou Carroll Shelby — que acabara de vencer a Ferrari na classe GT 5.0 — para participar do projeto.
Foi ali que Ken Miles se envolveu no desenvolvimento do Ford GT40 juntamente de Bruce McLaren — Miles com Shelby, e McLaren com sua própria equipe.
O McLaren GT40
Tal como os demais envolvidos no projeto do GT40, Bruce McLaren era um construtor. E na divisão de trabalhos feita pela Ford em 1965, McLaren recebeu a tarefa de finalizar um dos dois chassi de alumínio feitos pela Abbey Panels, na Inglaterra, sob encomenda da Ford.
Os primeiros GT40 tinham chassi de aço, eram velozes, mas muito pesados com seus 1.315 kg. Para resolver o problema, a Ford considerou substituir o chassi do carro por uma versão de alumínio. Foram feitos dois carros. Um deles foi para a Kar Kraft, nos EUA, e outro ficou com Bruce McLaren na Inglaterra. O carro da Kar Kraft jamais foi usado. Mas o de Bruce McLaren seria finalizado e preparado para disputar as 24 Horas de Le Mans daquele ano. A Ford entregou o chassi e uma meta: deixar o carro 450 kg mais leve.
Sob o comando de Howden Ganley, a McLaren revisou todos os componentes do carro e avaliou cada opção disponível para atingir a meta de 865 kg. Mesmo com o motor 427, Ganley e o pessoal da McLaren conseguiram terminar o carro com 861 kg ao deixá-lo sem teto e adotando uma transmissão Hewland LG500.
O carro disputou quatro provas em 1965, todas com Chris Amon, neozelandês parceiro de Bruce McLaren, mas não terminou nenhuma delas. No final de 1965 o carro foi enviado para Carroll Shelby que o modificou para ser usado como carro de testes. Com coletores mais pesados e um novo câmbio T44, também mais pesado que o Hewland, o carro perdeu sua distribuição de peso ideal, mas acabou servindo como base para fazer o J Car da Ford.
O “McLaren GT40” correu pela última vez nas 12 Horas de Sebring de 1966 com Ken Miles e Lloyd Ruby e venceu a corrida — foi aquela prova em que Ken Miles ignorou as ordens da Ford e disputou a liderança com Dan Gurney, que acabou estourando o motor do seu GT40, abrindo espaço para Miles ganhar a prova.
Depois da corrida, o carro seria reconstruído em sua forma original, mas acabou sucateado e destruído porque era inglês e Henry Ford se recusou a pagar os impostos de importação para que o carro permanecesse nos EUA. Assim acabou a história do McLaren GT40.
A história de McLaren com o GT40, contudo, continuou ao longo de 1965 e 1966.
McLaren/Miles
Enquanto Howden Ganley desenvolvia o GT40 X1 na Inglaterra, Bruce McLaren se juntou a Ken Miles para continuar o desenvolvimento do GT40 X, o protótipo que McLaren havia começado a desenvolver em 1963. A dupla seguiu em testes e dividiu o carro na 12 Horas de Sebring de 1965, onde ficaram em segundo lugar, e depois nas 24 Horas de Le Mans, quando abandonaram após 4 horas de prova com problemas no câmbio.
Em 1966 a McLaren já não estava mais envolvida com o desenvolvimento do carro. O dinheiro da Ford foi suficiente para que eles pudessem investir em seu primeiro carro de Fórmula 1, que se tornaria o M2A, concebido em 1965 e concluído em 1966. Apesar disso, Bruce McLaren continuou atuando como piloto para a Shelby. Foi assim que ele e seu amigo Chris Amon acabaram no GT40 preto e prata (as cores da Nova Zelândia) que alinhou em La Sarthe em 1966.
Ken Miles, por sua vez, sendo o braço direito de Shelby e o único piloto dedicado integralmente ao projeto do GT40, assumiu a liderança do desenvolvimento nas pistas. Ele formaria dupla com Lloyd Ruby, vencendo a 24 Horas de Daytona e as 12 Horas de Sebring daquele ano (com o GT40 X1), mas Ruby sofreu um acidente aéreo e não pôde disputar a 24 Horas de Le Mans, então Miles dividiu a direção com outro neozelandês, Denny Hulme, que também havia ganhado a “bolsa-piloto” da Nova Zelândia como McLaren e Amon.
O que aconteceu na corrida é uma história conhecida: os Ford de Shelby estavam bem-acertados e confiáveis. Os três GT40 lideravam a prova na hora final e Henry Ford II teve a “brilhante” ideia de empatar a corrida. Os amigos de McLaren não sabem se Amon acelerou ou se Ken Miles tirou o pé. Ninguém, de nenhum dos lados, sabe exatamente o que aconteceu.
O que se sabe é que McLaren passou à frente de Miles e, por ter largado atrás no grid, percorreu maior distância. Por isso, McLaren e Amon foram declarados os vencedores. Miles e Hulme ficaram em segundo. Sobre a vitória, McLaren disse ainda no circuito: “Eu não achava que 10 minutos de política pudessem vencer uma corrida de 24 Horas, mas aí está…”
A McLaren depois do GT40
Bruce McLaren conseguiu o dinheiro e seu carro de Fórmula 1, o M2A/B/C. De quebra, entrou para a história de Le Mans. Em 1966 seu carro estreou na Fórmula 1 com motores problemáticos — o Ford 406 e o Serenissima M166 —, mas Bruce conseguiu pontuar no GP da Grã-Bretanha e no GP dos EUA, os únicos dois que terminou.
Em 1967 ele tentou novamente com o M4B equipado com um BRM V8, e o M5A, que usava um BRM V12, mas os dois carros eram pouco confiáveis e pouco competitivos, apesar de McLaren ter conseguido pontuar no GP de Mônaco de 1967, e Denny Hulme no GP da África do Sul de 1968.
Em 1968 ficou pronto o McLaren M7A, que passou a usar o motor DFV da Cosworth, agora liberado para os concorrentes da Lotus. O carro foi muito bem-sucedido, começando a temporada com um segundo lugar de Denny Hulme na Espanha, seguido por um quinto lugar em Mônaco, e pela vitória de McLaren no GP da Bélgica.
Foi a terceira vez que um piloto vencia um GP com um carro feito por ele próprio, depois de Jack Brabham e Dan Gurney. Desde então, isso nunca mais aconteceu — o que também significa que Bruce McLaren não voltou a vencer na Fórmula 1. Seus carros eram competitivos, mas ele não conseguia acompanhar o ritmo da Ferrari e da Lotus.
O problema, novamente, era o orçamento. Ferrari e Lotus eram fabricantes de carros. A McLaren até planejava fazer isso, mas precisava de dinheiro. E Bruce McLaren decidiu correr atrás da grana mais uma vez: foi para os EUA onde se envolveu com a Can-Am e produziu um dos esporte-protótipos mais bem-sucedidos da história. Mas esse é um assunto para outra hora. Por enquanto, ficamos com o capítulo em que a Ford e o GT40 ajudaram o nascimento da McLaren.