O lançamento hoje do A390, um imenso SUV-coupé elétrico de duas toneladas da Alpine, não deveria ser surpresa: já era esperado há tempos, e todo mundo está fazendo coisas assim, então a Alpine acha que pode também.
Mas será? A Alpine como marca significa muito pouco. É na verdade um carro somente: o A110. Não o atual; o versão corrente hoje é uma reinterpretação muito bem-feita do original, que é o que define a marca. O A110 original de 1963-1977 é o carro que sempre foi o alfa e o ômega da empresa.

Tem como escapar dele? É possível para ele criar, por exemplo, carros de quatro lugares ou mais para a família? Com o lançamento do R-290 derivado do novo Renault 5 elétrico, e o A390, vamos em breve saber. Se derem certo, a resposta é sim.
Mas vamos por um momento lembrar de como o fundador, Jean Rédélé, resolveu essa equação de Alpine para família. Claro que quando o fez, criou a mais desconhecida variação do A110 original: o GT4. E esta é a sua história.
Origens no A108/Interlagos
O primeiro Alpine, chamado A106, ainda era baseado no Renault 4cv. Foi lançado em 1955, e muito poucos deles foram feitos: o objetivo principal era ainda competição apenas. Debaixo da carroceria em fibra de vidro, um parrudo chassi tipo espinha dorsal e duplo Y, em aço: seria uma tradição da Alpine. O A106 sempre era equipado com versões preparadas a mão do motor de quatro cilindros em linha OHV e 750cm3 do 4cv: a básica vinha com 21cv, mas versões de 30 e 46cv eram opcionais, esta última um motor praticamente de corrida, com marcha-lenta alta e embaralhante, e dois carburadores duplos. Em 1960 e 1961, seus últimos anos, receberia uma versão de 59cv do motor do Dauphine, com 904 cm3.

Em 1957, um grande esforço para aumentar as vendas leva a Alpine a lançar um novo carro, desenhado por Michelotti: o A108. Agora usava a mecânica do mais moderno Dauphine: um motor maior, que partia de 850 cm3. O carro também era lindíssimo: um daqueles desenhos atemporais, que se fosse lançado hoje, ainda faria queixos caírem. Pesando 600 kg, o A108 era minúsculo, porém: ainda menor e mais leve que o já pequeno Dauphine/Gordini.
Foi este carro que recebemos aqui no Brasil, licenciado pela Willys como era o Renault Dauphine/Gordini. Aqui recebeu o nome de Willys Interlagos, e nas pistas brasileiras se tornou uma lenda. Era vendido em versões coupé, conversível e berlinetta, e 822 deles foram fabricados pela Willys de 1962 até 1966.

Pois bem. Além das versões berlineta, coupé e conversível de dois lugares, se imaginou um 2=2 também. Naquela época, compradores de carros esporte os usavam no dia-a-dia, o conceito de “carro de fim de semana” ainda largamente desconhecido. Esses compradores tinham que abandonar seus amados Alpine assim que se reproduziam (algo que era inevitável então). Algo tinha que ser feito; e a Porsche já mostrava como com seus 356, todos 2+2. Dava mais 10 anos de uso ao carro esporte, uma vez começada a prole e mantida a quantidade total de rebentos de no máximo 2.
A Alpine recorre para isso à ajuda externa: a Carrosserie Chappe Frères et Gessalin, uma pioneira da fibra de vidro na França, e fornecedora também da DB-Panhard, depois Matra. Um novo chassi espinha dorsal foi criado para este cupê 2+2, com distância entre eixos alongada em 7 cm. Os elementos mecânicos eram os mesmos de antes. Quando a produção do 108 chegou ao fim em 1965, menos de 100 dessas versões alongadas haviam sido produzidas.
Na verdade, a história de como a carroceria surgiu é controversa. Uma história conta que a Chappe et Gessalin, com medo de que a Alpine pegasse para si a fabricação do novo 4 lugares, criou o carro sem cobrar nada. Outra versão diz que o coupe foi criado por Rédélé e sua equipe e depois passado para Chappe para fabricação.
De qualquer forma, está longe de ser bonito como os Alpine normais. Parece feito meio nas coxas em algumas partes, como a incorporação do vidro traseiro de um Renault 8. Rédélé tinha apurado senso de estilo; ou não ligou muito para esta versão, ou foi mesmo outra pessoa que fez e lhe deu de graça.
Interessante notar que o coupé de Chappe et Gessalin, além de estilisticamente bem diverso dos Alpine normais, receberam chassi além de mais longo, mais reforçado; o que significa que foi a base para o aparecimento do A110, que usou esta arquitetura até 1977!
O A110
Em 1962, com o simples expediente de melhorar o A108 / interlagos acaba com um carro profundamente alterado. O chassi mais parrudo do coupé 2+2, para-lamas alargados, além da mecânica do maior e mais potente Renault 8. O resultante A110 seria um verdadeiro marco na história da marca; tanto que, ao revivê-la em 2018, a Renault escolheu este carro como tema para o novo Alpine.
Não é à toa: equipado com motores preparados por Gordini, os A110 se tornaram exímios vencedores de rali por quase dez anos. Uma imensa quantidade de motores Renault foi montada em sua traseira, e o carrinho se mostrou um matador de gigantes da melhor espécie: seus motores foram de um R8 1,1 litro e 55cv ao lançamento, até versões realmente nervosas do motor de alumínio OHV Hemi do R17 TS, com 1,6 litros e mais de 140 cv, a partir de 1974.
Continuava um carro pequeno: 3850 mm de comprimento num entre eixos de 2100mm, e um peso, mesmo nas mais potentes versões 1600 cm³, de apenas 770 kg (o mais leve deles pesava apenas 700 kg). Não era um carro de qualidade alemã, claro: era feito em pequenas quantidades, artesanalmente, um carro para quem queria realmente ganhar corridas, ou andar muito rápido em estradas truncadas, sem muita consideração com luxo.
Mas isso não se impediu de imaginar uma versão mais sofisticada, e maior, para um pai de família. Justamente o carro que conhecemos hoje como GT4, com 2180 mm de entre-eixos e agora 4 lugares de verdade. Ou pelo menos, era o pretendido.
O mesmo fornecedor do A108 2+2 foi escolhido: a Chappe et Gessalin. Administrada pelos irmãos Chappe — Albert, Abel e Louis — e pelo cunhado Amédée Gessalin, a empresa familiar sediada nos arredores de Paris criou mais uma variação de carroceria para a Alpine.
Vendido apenas como A110, o GT4 era sempre equipado com o motor Renault 8 de cinco mancais principais, em oposição à unidade Dauphine de três mancais principal usada nos A108. Inicialmente, este motor era de 956 cm³ e entregava 51 cv, contra 55 cv do Berlinette, mais esportivo. Em 1964, uma versão de 66 cv do motor de 1108 cm³ do R8 tornou-se opcional, com a unidade de 956 cm³ deixando de ser listada após o ano-modelo de 1965.
Para aqueles que queriam assutar os filhos pequenos a velocidades dignas do campeão de rali que era o a110, o motor R8 Gordini, com cabeçote hemi, tornou-se disponível em 1966, na configuração inicial de 95 cv e 1108 cm³. Um ano depois, surgiram as opções de motor Gordini Hemi de 1255 cm³ ou 1296 cm³, cada um desenvolvendo, respectivamente, 105 cv e 120 cv. Com peso ao redor dos 800 kg, era um carro familiar rápido de verdade.
Para a temporada final de 1969, o carro estava disponível apenas com o motor 1108 c³ de 70 cv ou com uma versão preparada do R8 Gordini de 1255 cm³.
Na verdade, é um carro familiar do jeito que não se vê mais. Disse a Classic & Sportscar: “Não há comparação em termos de comportamento em estrada com carros da época. É extraordinário para um carro com motor traseiro, graças à cambagem negativa traseira e aos pneus Michelin XAS assimétricos. A condução é firme, e nas montanhas é uma delícia. A direção de pinhão e cremalheira sem assistência é rápida e informativa, com a quantidade certa de peso, e um volante delicado com aro de madeira contribui para o prazer. Com os eixos oscilantes do A110 contidos por braços de raio diagonais, o carro faz curvas sem rolar quase, toralmente controlável, e como é estrito, sobra espaço mesmo em estradinhas apertadas.”
É um carro interessantíssimo visto de hoje, mas na época, nunca recebeu esforço de promoção e vendas de verdade; Rédélé e sua Alpine só tinham esforços para os Berlinettes A110, e suas épicas campanhas de competição. Uma pena: um carro esporte de motor traseiro merece ser no mínimo 2+2; não parece mas isso faz uma diferença danada. A Porsche que o diga.
Mas nada disso realmente importa. Nos dias de hoje, vale mais criar um enorme SUV da mesma marca para o dono usar com a família, e boa; o caminho, de novo, da Porsche, que todo mundo parece querer seguir. Daí, bem-vindos ao mundo do A 390. Um Alpine que vale por 3 Alpines antigos. Pelo menos, em peso.