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Car Culture

Guy Ligier: do órfão açougueiro ao dono de equipe de Fórmula 1

Mais uma perda irreparável se abateu sobre o mundo do automobilismo: morreu ontem (23), aos 85 anos, Guy Ligier, que foi piloto e chefe-de-equipe de Fórmula 1, correu com o Ford GT40 nas 24 Horas de Le Mans e, antes de tudo isso, foi açougueiro, remador e jogador de rúgbi profissional. Sua equipe, a Ligier, foi uma das protagonistas nas pistas dos anos 1970 e 1980 na Fórmula 1. E uma prova de que nem só de triunfos se constrói uma história marcante nas pistas.

Guy Camille Ligier nasceu no dia 12 de julho de 1930 em Allier, na França, e ficou órfão muito cedo, logo aos sete anos de idade. Não demorou para que tivesse que começar a trabalhar para se virar. Seu primeiro, porém, não tinha nada a ver com o que o futuro lhe traria: ele era aprendiz de açougueiro. Nas horas vagas, praticava remo e rúgbi e, antes dos dezoito anos, já era excelente nos dois esportes.

Em 1947, Ligier foi campeão francês de remo e, perto da virada da década de 1950, integrou a seleção secundária de rúgbi da França. Paralelamente, Ligier economizou dinheiro para comprar uma escavadeira e, quando conseguiu, entrou no ramo de construção civil. A construtora que levava seu sobrenome fez muito sucesso e, com o tempo, tornou-se um verdadeiro império da construção civil — algo lhe rendeu amizades importantes no meio político. E entre seus contatos, Ligier tinha o ex-presidente François Mitterrand e o primeiro-ministro Pierre Bérégovoy.

Seu sucesso no empreendedorismo — que, por si só, já podia ser considerado uma conquista e tanto — deu-lhe recursos para entrar de cabeça em sua verdadeira paixão: o automobilismo.

 

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Não é nenhum exagero, e muito menos ofensa, dizer que a Fórmula 1 (na verdade, o automobilismo em geral) é um esporte caro. É um fato que faz de Ligier uma exceção dupla entre os nomes mais famosos da história do automobilismo: além de não ter condições de começar a pilotar carros de corrida ainda criança, ele começou tarde. Ligier já havia passado dos 30 anos de idade quando disputou suas primeiras corridas profissionais, em 1964.

Sua primeira corrida notável foi a 24 Horas de Le Mans daquele ano, quando terminou na sétima posição ao volante de um Porsche 904. Em retrospecto, é um grande resultado — especialmente considerando que o 904 era movido por um pequeno flat-4 de dois litros e os rivais eram as Ferrari 250 GTO, com seus motores V12, e os Shelby Cobra, com grandes motores V8 de sete litros. Entre 1965 e 1967, Ligier ainda correu em Le Mans ao volante do Ford GT40. Ele abandonou a prova nos três anos.

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O Ford GT40 usado por Ligier em 1965.

A experiência em Mans, contudo, deu a Ligier o impulso que faltava para migrar para a Fórmula 1. Sua carreira nos monopostos foi curta — ao menos ao volante. De maneira independente, Ligier pilotou um Cooper-Maserati na temporada de 1966 e em algumas corridas da temporada de 1967, quando também pilotou um  Brabham-Repco. No total, foram 12 GPs e apenas um ponto marcado — quando chegou em oitavo no GP da Alemanha, disputado no Nürburgring Nordschleife. Afinal, se é para fazer um único ponto na carreira, que seja na meca do automobilismo, não é mesmo?

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Guy Ligier com seu Cooper-Maserati com o azul da França em Spa-Francorchamps, 1967

Um dos grandes amigos de Ligier neste início de carreira oi o piloto de Fórmula 2 Joseph “Jo” Schlesser. Assim, em 1968, ambos formaram uma pareceria para comprar dois carros de Fórmula 2 da McLaren, e fundar sua própria equipe independente. Infelizmente, os planos foram tragicamente interrompidos pela morte de Schlesser, que naquele mesmo ano havia feito sua estreia na Fórmula 1 pela Honda.

Durante as primeiras voltas do GP da França de 1968, no circuito de Rouen Les Essarts, o Honda RA302 de Schlesser perdeu o controle da traseria e bateu no muro. Sua carroceria de magnésio, material altamente inflamável, pegou fogo instantaneamente e tornou impossível seu salvamento. John Surtees, seu colega de equipe, recusou-se a pilotar o carro pelo resto da temporada e a equipe japonesa abandonou a Fórmula 1 (leia mais neste post). Ligier também decidiu abandonar o volante e concentrar-se em projetar os carros.

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O primeiro carro projetado por Ligier, com a ajuda do designer Michel Tétu, foi o protótipo Ligier JS1, batizado com as iniciais de Jo Schlesser. Era um típico sportscar da época, com carroceria baixa, chassi do tipo “espinha dorsal” e motor central-traseiro — no caso, um V6 Ford de 2,5 litros com injeção mecânica Kugelfischer e 215 cv. O carro foi apresentado no Salão de Paris de 1969 e, no total, três unidades para as pistas foram fabricadas. No ano seguinte, uma evolução do JS1, o JS2, foi apresentado — visualmente semelhante e construído com técnicas similares, porém com mecânica Maserati.

O JS2 conseguiu relativo sucesso nas ruas e nas pistas, culminando com um segundo lugar nas 24 Horas de Le Mans de 1975. A partir daí, Guy Ligier decidiu que era hora de voltar a focar na Fórmula 1. Obviamente, não como piloto — afinal, ele já se aproximava dos 50 anos —, mas como chefe de equipe.

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Assim, em 1976, Ligier comprou os restos da equipe Matra, que havia abandonado a F1 cinco anos antes — incluindo equipamentos, componentes e, claro, motores. Quer dizer, um motor: um V12 de três litros, que foi usado no primeiro carro de Fórmula 1 da Ligier. O chamado JS5 recebeu o apelido de “bule de chá” por causa do formato inusitado de sua tomada de ar.

O piloto contratado foi Jacques Laffite, que havia acabado de deixar a recém-fundada Williams. Juntos, ambos comemoraram sua primeira vitória na Fórmula 1 quando Laffite venceu o GP da Suécia, em Anderstorp, naquela que também foi a primeira vitória de um piloto francês em um carro francês na categoria.

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Jacques Laffite e Guy Ligier

Depois de outras duas temporadas sem muitos resultados expressivos, o contrato com a Matra acabou e, para 1979, Ligier estava sozinho. Sem problemas: com a ajuda do designer Gérard Ducarouge, o chefe de equipe projetou o famoso JS11. Este foi seu primeiro carro a beneficiar-se do efeito solo, tendência introduzida pelos Lotus anos antes. Movido por um confiável V8 Cosworth DFV, o JS11 mostrou-se um carro muito competitivo em 1979 e 1980.

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Logo de cara, Laffite venceu duas corridas em sequência com o JS11 — os GPs da Argentina e do Brasil. Com um segundo lugar em Mônaco e subindo outras três vezes no pódio até o fim da temporada, a Ligier garantiu a terceira posição no fim do campeonato e, finalmente, tornou-se uma das grandes equipes da F1.

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No ano seguinte, os franceses consequiram o vice-campeonato, novamente com Lafitte ao volante. Entre 1977 e 1981, a Ligier conseguiu oito de suas nove vitórias na categoria.

Infelizmente a boa fase durou pouco: a partir de 1981 os resultados da Ligier começaram a decair, bem como a reputação da equipe. Depois de uma temporada desastrosa em 1983, quando raramente conseguiu completar uma prova, a equipe passou a usar motores Renault e mostrou uma breve reação. Contudo, em 1986 a Renault abandonou a Fórmula 1 e, consequentemente, a Ligier ficou sem uma fornecedora de motores.

Não era para ser. Entre 1987 e 1992, a Ligier não subiu ao pódio uma vez sequer, o que motivou a venda da equipe ao empresário Cyril de Rouvre. Para todos os efeitos, Guy Ligier decidiu que sua carreira na Fórmula 1 havia definitivamente acabado.

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Sob nova direção, a Ligier conseguiu outra breve guinada, culminando com a vitória de Olivier Panis venceu o GP de Mônaco de 1996 ao volante do JS43, que tinha um V10 Honda. Apesar da vitória inesperada, foi o fim da Ligier com seu nome original: no ano seguinte, Alain Prost comprou a equipe e a rebatizou como Prost Grand Prix.

Enquanto isso, Guy Ligier usou o dinheiro da venda de sua equipe para entrar no ramo de fertilizantes. Seu talento como empresário garantiu o sucesso da nova empreitada, e abriu caminho para que ele voltasse a ingressar no mercado automotivo. Desta vez, fabricando microcarros usando motores elétricos e a diesel.

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Guy Ligier morreu no último domingo, 23 de agosto, aos 85 anos. A causa da morte não foi divulgada.