Parece até que estamos nos repetindo, mas é fato que o segmento dos hot hatches tem sido um dos mais movimentados nos últimos anos. Poucos meses separam os lançamentos de diferentes modelos, eles estão cada vez mais potentes e a briga pelo recorde de Nürburgring Nordschleife nunca esteve tão feroz. E agora, a Hyundai quer entrar neste jogo.
O hatch i30 será o primeiro a receber tratamento especial da divisão N — submarca que não será tão diferente do que a divisão M é para a BMW. Aliás, em dezembro de 2014, o então vice-presidente de engenharia da BMW Motorsport deixou a marca alemã e foi trabalhar com os coreanos justamente para cuidar dos futuros esportivos da Hyundai N.
O que isto significa? Que a Hyundai está seriamente disposta a se tornar uma das grandes. Tanto que uma das futuras etapas do desenvolvimento do Hyundai i30 N será levá-lo para correr nas 24 Horas de Nürburgring — sim, uma das corridas de longa duração mais competitivas do planeta, em um dos circuitos mais desafiadores e impiedosos que existem.
Na verdade, a Hyundai vai levar três carros para a prova: um Veloster, um i30 1.6 turbo (cuja versão de rua, comercializada lá fora, tem 183 cv) e um i30 experimental com motor turbo de dois litros — este último, para testar a durabilidade e o desempenho do conjunto mecânico de seu futuro hot hatch.
A marca descreve o carro como uma “plataforma de desenvolvimento” cuja principal missão é ajudar a Hyundai a “entender melhor as tecnologias de alto desempenho”. Eles também dizem que pelo menos 40% dos componentes do carro são inéditos, incluindo motor, transmissão, suspensão, rodas, sistema de direção e componentes da carroceria. Além, é claro, dos equipamentos de segurança exigidos pelo regulamento.
Se fosse qualquer outra fabricante, talvez a gente não estivesse fazendo um post inteiro só para isto. Mas, no caso da Hyundai, achamos que o assunto merece um pouco mais de atenção. E já vamos explicar o porquê.
A divisão N foi lançada oficialmente no Salão de Frankfurt do ano passado, com a revelação do conceito N Vision Gran Turismo 2025, feito para Gran Turismo 6. O carro, claramente inspirado nos protótipos Le Mans, tem nada menos que 884 cv — resultado da soma dos 679 cv do motor movido a célula de combustível, posicionado atrás do cockpit; mais 205 cv entregues por dois motores elétricos nas rodas dianteiras. Estes são alimentados por um sistema de recuperação de energia cinética (KERS). Tudo virtual, claro, mas o conceito estático mostrado em Frankfurt era nada menos que impressionante.
A criação de uma nova divisão de desempenho, uma submarca, é mais um passo (o maior deles, talvez) na crescente evolução da Hyundai. Você lembra do Accent e do Atos Prime, vendidos no Brasil nas décadas de 1990 e 2000? Eles não eram exatamente confiáveis e não fizeram sucesso mais ou menos pelos mesmos motivos que levam muita gente a encarar os carros chineses com reserva: falta de tradição e construção ruim. Claro, talvez a gente esteja simplificando um pouco as coisas ao fazer esta comparação direta, mas você deve estar acompanhando nosso raciocínio.
A grande reviravolta aconteceu com o lançamento do Hyundai i30 de primeira geração — um carro totalmente diferente do que a Hyundai havia feito até então: desenvolvido na Alemanha, o hatch tinha design que podia ser levado a sério, os materiais eram mesmo bons, a qualidade de construção e acabamento era inédita em um carro feito pelos coreanos, e finalmente a marca conseguiu um espaço ao lado das grandes fabricantes. Um espaço pequeno, no início, mas que cresceu rapidamente. Tanto que muita gente que jamais considerou comprar um Hyundai se rendeu ao i30 (e também ao Tucson, Santa Fe, Vera Cruz e ao Azera)
Um episódio que ficou marcado e deixou claro o salto evolutivo da marca aconteceu no Salão de Frankfurt em setembro de 2011. O então CEO do Grupo Volkswagen, Martin Winterkorn, foi conferir de perto a segunda geração do Hyundai i30, que acabava de ser revelada, e ficou revoltado ao sentar ao volante e notar que a qualidade de construção e acabamento do hatch era, em certos aspectos, superior à dos alemães.
Ao mexer na coluna de direção, Winterkorn viu que ela não fazia barulho algum. “A BMW não consegue fazer isso, nós não conseguimos fazer isso… não tem barulho nenhum!”. Um dos cavalheiros que o acompanhavam, então, diz algo como “nós até tínhamos uma solução, mas era cara demais”. Ou seja: a Hyundai conseguiu fazer algo melhor que os alemães e provavelmente não gastou rios de dinheiro com isto.
Outro exemplo: o Hyundai HB20. O compacto desenvolvido especialmente para mercados em desenvolvimento representa um salto ainda maior no quesito qualidade — em termos de acabamento, ele supera vários rivais de marcas tradicionais e mais estabelecidas, e colocou de vez a Hyundai entre as campeãs de vendas no Brasil. Agora, ele recebeu um motor 1.0 três-cilindros turbo, mostrando que a fabricante reagiu rápido à tendência do downsizing.
Parece que estamos nos desviando do ponto, mas o que queremos dizer é que, depois de conseguir conquistar o público e incomodar os alemães, não surpreende que o próximo passo da Hyundai seja criar uma divisão de alto desempenho. Por mais que alguns entusiastas tenham alguma má-vontade com a Hyundai por causa de sua estratégia de marketing no Brasil (aquele papo de ter os melhores carros do mundo), é inegável que os coreanos têm ousadia e não estão brincando em serviço.
Claro que não vai ser fácil, afinal os desafios são gigantescos. Começando pelo fato do primeiro modelo ser um hot hatch. Estamos falando de um segmento absurdamente competitivo e dominado há 40 anos pela Volkswagen com seu Golf GTI, com algumas incursões da Peugeot, Renault, Honda e Ford. Além disso, há a briga constante entre os hot hatches de tração dianteira pelo recorde de Nürburgring Nordschleife, com Volkswagen Golf GTI Clubsport S, Seat León, Renault Mégane RS e Honda Civic Type R se esfaqueando por frações de segundo. Outros, como o Ford Focus RS e o VW Golf R, têm tração integral e estão ainda mais além. E nem mencionamos o trio de ferro alemão — Mercedes-AMG A45, BMW M140i e Audi RS3. Todos estão em um nível altíssimo, desenvolvidos por engenheiros que vêm desenvolvendo esse tipo de carro há décadas, com orçamentos generosos e programas de automobilismo para reforçar o desenvolvimento de tecnologias.
Será viagem demais imaginar um Hyundai no meio desses caras? Talvez não
A Hyundai vai mergulhar de cabeça neste território que, até agora, é desconhecido para a marca. Além de, evidentemente, ter menos recursos (o que, veja bem, não significa ter poucos recursos), a marca está lidando com rivais de know-how indiscutível. Mais do que isto: eles vão enfrentar carros que têm uma enorme cultura de entusiastas em volta de si. Além de construir um carro, eles precisarão construir toda uma comunidade — afinal, o i30 N será um esportivo, e todo esportivo precisa de fãs.
Talvez não dê certo. Talvez esta nova divisão N acabe sendo um tiro pela culatra, com muita grana investida para pouquíssimo retorno direto — o que, aliás, é até compreensível, pois hot hatches são carros de nicho que, por natureza, já vendem menos e são investimentos nem sempre se pagam. Por outro lado, se tudo correr bem, certamente o restante da linha da Hyundai será beneficiada pelo sucesso do i30 N e da nova divisão esportiva daqui a alguns anos. No fim das contas, esportivos são sempre bons para a imagem das fabricantes, e isto também é essencial.
Claro, isso não significa que daqui a cinco anos um Hyundai se tornará o novo recordista de tração dianteira em Nürburgring, ou que os coreanos serão a nova referência em hot hatches. Mas a iniciativa de disputar as 24 Horas de Nürburgring é digna de reverência, e subestimá-la é um grande erro considerando o histórico recente da marca. Além disso, se tudo der certo teremos mais um hot hatch — ou até uma linha de bons esportivos por aí. Isso não é bom?