Era pouco antes das seis da tarde quando passei pelos portões da Adler, principal casa de shows de Vinhedo. Durante o dia todo estava fotografando os carros expostos no XXII Encontro Paulista de Autos Antigos, criado e mantido pelo casal Nilson e Edenise Carratu, cuja cobertura veremos nos próximos dias. Mas agora era hora para uma atração pouco vista por estas terras: o Grande Leilão de Veículos Antigos, organizado pela Talladega Motors, do antigomobilista José Paulo Parra, e que fez parte da programação do Encontro.
Se lá fora leilões são tradição representadas por nomes como Bonhams, Mecum, RM Sotheby’s, Gooding & Co e, claro, o mundialmente famoso Barrett-Jackson – que está cada vez mais conhecido por aqui pela exibição no canal de TV fechada Discovery Turbo –, a verdade é que eventos de leilões de clássicos no Brasil ainda são raros, como o de Araxá ou aquele que nossos camaradas do Box54 organizaram no fim do ano passado. Como há um certo ar de novidade ainda, achamos bacana explicar um pouco sobre como funciona a coisa antes de entrarmos na galeria das jóias – lembrando que, para ampliar as fotos em alta, é só clicar nas imagens!
Parra (foto acima) tem bastante vivência no mundo dos antigos e exclusivos, mas este seria o seu primeiro leilão, o que trouxe uma série de desafios: “algumas coisas foram muito boas, em outras tivemos um aprendizado, mas no geral foi extremamente positivo: foram 27 carros negociados, sendo sete arrematados no ato”, afirmou. O primeiro desafio foi encontrar uma empresa idônea para administrar o leilão e as transações: após muito pesquisar, José Paulo decidiu pela Sumaré Leilões, empresa bastante conhecida na área, embora sem vivência com o mundo dos antigos.
Na sequência, partiu para o levantamento dos lotes (como são chamados os bens leiloados, no caso, os carros), entre amigos colecionadores, outros proprietários de raridades sem necessariamente serem colecionadores, conhecidos com clientes em comum e colegas do ramo, abrindo na sequência para os demais interessados em potencial pela abertura de inscrição. Cerca de 50% dos lotes eram de particulares e outros 50% vieram de profissionais da área, como a própria Talladega, L’Art de L’Automobile, Gustavo Brasil, Berek, RR Antigos, Paulo Automóveis e Jardineira Veículos.
Todos passaram por vistoria cautelar e estavam disponíveis para inspeção desde a manhã anterior, no próprio Encontro Paulista de Autos Antigos, numa área específica. Os automóveis leiloados são sempre no estado, sem garantia exceto a de documentação. Por isso, embora seja uma atração muito interessante em termos de entretenimento, comprar um carro antigo desta forma não é algo para iniciantes: leilões são para iniciados no mundo do antigomobilismo – tanto para ter o olhar clínico de visualizar o estado do veículo (ou o potencial dele, no caso de um a restaurar) quanto para saber a partir de qual momento da disputa a oportunidade começa a ficar extravagante.
Como podemos ver nas fotos abaixo, a casa encheu bem: “foi bastante surpreendente, nós não esperávamos tanto público. Claro, nem todos eram compradores, havia uma boa parte de espectadores para ver o show, mas é isso que faz a coisa ser interessante e amigável”, afirmou Parra. No fim da noite (o leilão levou cerca de quatro horas), o público mais curioso já tinha saído em sua maioria, mas quem estava lá para fazer negócios ficou até o último lote – um furgão Chevrolet Stylemaster (foto acima).
E como é a mecânica para você participar de um leilão? Ao chegar no local, você assina um termo de adesão, na qual constam os compromissos de compra no caso de você arrematar um lote, bem como uma multa (geralmente na casa de 20%) no caso de desistência de honrá-lo – documento similar assinalado por quem dispõe os veículos para o leilão, onde também constam obrigações referentes à documentação do veículo.
Os carros entram no palco, enquanto José Paulo Parra descreve o veículo: eram comentados o estado geral, a raridade e várias características daquela unidade (muitos carros tinham quilometragem baixa, pintura de fábrica, de único dono, etc), enquanto membros da equipe do evento filmavam o veículo ao vivo, cujas imagens eram transmitidas para o telão. Feita essa apresentação, que costumava levar pouco mais de um minuto (as imagens continuavam a ser transmitidas durante todo o tempo de presença do automóvel no palco), o leiloeiro abria para os lances, feitos pelos participantes levantando a sua plaquinha e confirmando o valor ao leiloeiro. No caso do carro não receber nenhum lance após cerca de um minuto de respiro, passava-se ao próximo lote.
Na prática, cada carro possui o seu valor de reserva – ou seja, o preço mínimo a partir do qual o proprietário se compromete a vendê-lo ao participante do leilão (se você já comprou algo pelo eBay, sabe bem da mecânica) –, mas o que dá graça à coisa é justamente o fato de este preço de reserva ser desconhecido do público. A única premissa que há é que os veículos participantes do leilão ou são muito raros (o modelo em si ou sua quilometragem) ou ficam numa faixa de preço inferior ao do mercado: alguns muito abaixo, outros um pouco abaixo. Caso contrário, o leilão perde o sentido de ser. Por outro lado, uma disputa fervorosa entre entusiastas pelo mesmo carro pode até mesmo elevá-lo para acima do valor médio, ainda que isso seja raro. Neste evento em específico, não aconteceu.
Se, no momento em que o leiloeiro bater o martelo pela terceira vez, o valor de reserva já tiver sido atingido, o participante arremata o carro na hora. Um membro da equipe do leilão vai até o participante e pega um cheque-caução, uma nota promissória ou mesmo um sinal via cartão de crédito. Ele pode também declinar a compra, mediante o pagamento de uma multa. Contudo, se no momento da última batida do martelo o valor não tiver sido atingido, entra-se no chamado lance condicional: confirma-se com o participante a intenção de compra, posteriormente o leiloeiro contata o proprietário e tenta-se chegar num valor conciliado, negociado dentro da estrutura do leilão, ainda que possa ser feito no dia seguinte. Isso acaba criando uma baita oportunidade de negócio.
Explicado isso, vamos conhecer os sete carros que foram arrematados no ato, começando por este belo Gol GTS 1.8 a etanol, 1989, “survivor”, com 71 mil km originais, pintura original, acabamentos todos de fábrica (incluindo os belos bancos Recaro e a forração preta e vermelha) e papelada de época, com histórico de manutenção. Tanto o Gol GT quanto a dupla GTS/GTI estão dentro da transição de carros “street” para colecionáveis, como já aconteceu com todos os V8 nacionais na década passada e logo depois com os Opala da década de 70. O lance que o arrematou foi de R$ 34.500.
Esta Alfa Romeo GTV – equipado com o raro opcional de ar-condicionado – foi um dos carros que mais recebeu lances. Não à toa, pois as GTV estão subindo de valor em uma razão parecida com a dos 911 a ar lá fora. É um modelo com muita história no automobilismo, dinâmica espetacular e um baita de um motor sofisticado, dois litros todo de alumínio, com duplo comando e câmaras hemisféricas de combustão. O lance vencedor foi de R$ 135.000.
Esta bela Ford Model A pick-up 1929 – uma configuração de carroceria muito pouco vista por aqui e numa combinação de cores extremamente feliz – também foi arrematada no ato, por R$ 60.000. O nome “Model A” foi usado pela Ford em dois momentos de sua história: em um modelo fabricado entre 1903 e 1904, e numa imensa família de veículos feita entre 1927 e 1931 que substituiu o clássico Model T, com quase 40 (!) variações de carroceria possíveis, entre diversos tipos de sedã Fordor, roadster, cabriolet, taxi, town car, etc. Em todos, o motor quatro-em-linha com 3,3 litros de deslocamento e 41 cv brutos declarados, com exceção dos veículos comercializados na Europa, que para evitar uma taxação maior (cobrada sobre o deslocamento), empregaram uma versão com curso reduzido, resultando em cerca de 2 litros e quase a metade da potência.
Este belo Impala 1964 (modelo 65) de quarta geração, quatro portas sem coluna, precisava apenas de outras rodas e um pouco de “TLC” (tender loving care, ou carinho e cuidado) pra voltar a brilhar. Foi arrematado por R$ 50.000. O Impala acabou tendo enorme popularidade no universo dos low riders não só por uma questão de estilo, mas também estrutural: o seu chassi em forma de “X” é particularmente resistente às flexões e cargas cruzadas que as suspensões pressurizadas acabam submetendo em saltos e levantes.
Esta Kombi 1985 com 72.600 km originais de fábrica foi originalmente usada como perua escolar, recebendo apenas um banho de tinta desde então. O lance vencedor foi de R$ 22.000. Falar sobre o valor da Kombi no mundo do antigomobilismo hoje é chover no molhado: está acontecendo um grande êxodo destas senhoras rumo aos EUA e Europa, facilitado pela desvalorização de nossa moeda, a quantidade de jóias perdidas no interior do País e um certo retardo no processo de valorização deste veículo por aqui – claro, hoje tudo isso é sabido. Não há cinco anos, algo que podemos chamar de “ontem” no mundo dos clássicos.
O último dos sete veículos arrematados foi este 280 S 1977, geração W123, um dos grandes ícones dos anos de over-engineering, construção sólida e, claro, aquele clássico perfume do interior dos Mercedes-Benz clássicos. É um dos modelos mais bem sucedidos da história da marca, com mais de 2,6 milhões de unidades vendidas em suas diversas carrocerias e motorizações entre 1976 e 1985. O lance vencedor foi de R$ 26.000.
Um Corvette C3 laranja placa preta por R$ 80.000 – menos que o mercado anda pedindo por Maverick GT 302 V8? É este tipo de grata surpresa que acontece no leilão.
Além destes sete veículos arrematados na hora, outros 20 foram vendidos no lance condicional, que explicamos anteriormente. Mas além destes, houve uma série de clássicos que receberam o lance condicional, mas o negócio não se concretizou. Por isso, é muito difícil sabermos quais deles foram vendidos e a qual valor – caso queira, por curiosidade, você pode consultar o catálogo que foi disponibilizado aos participantes do leilão. Lá há uma estimativa de valores na página de cada carro, mas na real, sempre há uma série de lotes que são vendidos por bem menos que a expectativa: este é o grande barato do leilão!
E, claro, houve um bom volume de veículos que não receberam lance nenhum, particularmente os caminhões. Este é um dos aprendizados aos quais Parra se referiu. Outras evoluções que deverão vir nos próximos leilões: uma vistoria técnica, feita com cerca de uma semana de antecedência, o que permitiria qualificar até por notas cada item do veículo; validação de matching numbers (código do motor bater com o código de chassi, acabamentos e equipamentos do veículo) e ter um leiloeiro com mais vivência com o antigomobilismo, permitindo maior entrosamento com o público. Em relação ao formato, Parra deverá organizar leilões em eventos à parte, se aproximando mais do modelo norte-americano, mas também seguirá com leilões no modelo deste de Vinhedo, fazendo parte de um encontro de clássicos.
Alguns dos destaques (para o FlatOut!)
Com pra lá de 80 veículos antigos de todo tipo, fica difícil fazer uma categorização de destaques de maneira universal. Portanto, aqui separamos alguns dos carros que roubaram o nosso olhar com mais intensidade durante a noite. Começando por este Graham Hollywood 1941, seis cilindros supercharger de cerca de 125 cv. Um carro com muitos traços (e ferramental) em comum com o Cord da mesma época, mas com tração traseira!
Provavelmente o Mercedes-Benz favorito deste que vos fala: 280 SL “Pagoda”, aqui um modelo 1971 com transmissão automática, todo restaurado.
Esta Kombi Standard 1968 foi um verdadeiro soco na cara: 28 mil km originais, pintura e todos os acabamentos como saíram de fábrica. Uma cápsula do tempo, quase como uma projeção do passado ao vivo. Note o interior das caixas de roda! Pertenceu ao convento Instituto Santo Antônio de Pádua, de MG. Clique nas imagens e dê um zoom nas fotos.
Em 1969 o Mustang ganhou corpo e motores bem maiores, mirando inclusive nas arrancadas da NHRA. É o caso do 428 Super Cobra Jet deste Mustang Mach I com pacote Drag Pack: único no Brasil, apenas 142 produzidos, com todas as peças necesssárias para a montagem, motor retificado. Sua potência declarada era de 335 cv, mas testes sugerem uma potência superior a 400 cv – artimanha muito utilizada na época pelas fabricantes para obter valores menores de seguro. O pacote Drag Pack incluía diferencial autoblocante com relação curtíssima de 3,91:1 ou 4,30:1, radiador de óleo do motor, parafusos de biela de maior especificação, virabrequim, volante e damper do motor retrabalhados.
1957 foi o último ano da primeira geração do Ford Thunderbird, aqui um monocromático azul, com V8 292 com câmbio automático e restaurado ao nível concours. Difícil decidir entre este carro e o Corvette da mesma época. Amplie a foto do interior e aprecie sem moderação.
Com todo o respeito aos demais, mas esta Brasília 1974 foi um dos carros que mais babamos: motor stroker 1.8, sistema de escape do SP2, teto solar Webasto, volante Nardi e instrumentação Porsche, espelhos e rodas de BMW 2002 Tii (bastante parecidas com a Scorro Dragster, mas com algumas diferenças). Este carro transpirava o espírito do que os playboys da década de 70 faziam, revirando catálogos, modificando os carros dentro das possibilidades e acelerando nos pegas da cidade.
A finesse dessa Caravan 2.5 1978 com interior chateau, de um único dono até 2014, recebendo apenas um banho de tinta, foi de parar o evento. Por algum motivo, quase todas as fabricantes no Brasil começaram a fazer juntas carros com interior opcional bordô no fim da década de 1970: cores mais sóbrias por fora, mais vivas por dentro, exatamente o contrário do começo dos 70s!
Essa dupla também parou a noite: Yamaha RD 350 dois tempos 1986/7, toda restaurada e Honda CB400 II 1982 com 13.950 km originais!
Fiat Vignale 800 Spider 1967, derivação feita para o mercado argentino (na Europa, o responsável pelas suas linhas e construção era o Studio Bertone) e o único conversível fabricado por lá até hoje. Baseado no Fiat 600, tração traseira, motor traseiro, entre-eixos curto. Será que é divertido de pendurar em curvas?
Lá em cima falamos que o Ford Model A teve quase 40 variações de carroceria: esta charmosa perua “woodie” 1929 talvez seja uma das variantes mais belas.
Os brasileiros estão valorizando cada vez mais o SP2 – algo que os gringos já fazem há muito tempo. Este modelo castanho metálico tinha apenas 28 mil km originais, único dono. Um verdadeiro barn find!
Os Rolls Royce da década de 80 e 90 dividem os nossos sentimentos. É um carro claramente datado e sem o mesmo charme dos sedãs de duas décadas anteriores (ou mais), mas a aura e sofisticação são irrefutáveis – ainda mais este Silver Spur 1981 com interior bordô. É o tipo de automóvel que você saboreia de dentro pra fora. Seu V8 de 6,7 litros apenas sussurra. Sua suspensão traseira contava com um sistema de nivelamento automático.
Galaxie ambulância 1969, fabricado pela própria Ford para provas de esporte a motor. Dá até pra imaginar uma destas paradas enquanto Emerson Fittipaldi gravava sua épica volta no antigo autódromo de Interlagos com um Maverick norte-americano, poucos meses antes do lançamento do modelo no Brasil.
Picapes em condição “survivor” são muito raras de existirem, pois são veículos de serviço. Esta C10 parece ter fugido à regra: tem 92.700 km originais e sofreu apenas um banho de tinta.
Romi Isetta 1957. Se há um carro que temos enorme curiosidade técnica e histórica de guiar, é este aqui.
Em 1983, surgiu a versão GTS do Passat – e até junho de 1984, ele era impulsionado pelo motor 1.6. Este modelo estava uma verdadeira cápsula do tempo!
Da mesma forma que a Caravan, este Opala Comodoro monocromático estava de se comer com uma colher: veja este interior monocromático bege! 82 mil km originais, teto “Las Vegas” (conheça a história deste teto e o carro que o originou clicando aqui).
O famoso 1303, evolução do Fusca que introduziu suspensão do tipo McPherson, para-brisa mais envolvente, painel mais recuado e moderno e porta-malas mais espaçoso.
Este Maverick norte-americano 1974 (note os para-choques de impacto – conheça esta história clicando aqui) foi todo caracterizado de versão Grabber. O único Maverick que tivemos no Brasil com interior bege foi o modelo LDO, mas o acabamento era diferente – note os painéis de porta e apoios de braço! Por aqui, o banco inteiriço era algo reservado aos sedãs e não havia encostos de cabeça.