FlatOut!
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Papo de Garagem Técnica

Lost feeling: como os carros esportivos atuais ficaram mais velozes e mais sedados

Os tempos em Nürburgring Nordschleife vão abaixo. Muitos dos esportivos de rua atuais deixariam para trás carros de competição de turismo de não muito tempo atrás. Ao mesmo tempo, parece que a cada nova geração destes automóveis, menos intensa e mais sedada fica a experiência ao volante. Entre o seu corpo e a máquina há um filtro cada vez mais espesso, uma luva cada vez mais grossa que amortiza a sua conexão sensorial com o veículo.

O caminho mais fácil dos discípulos de Dom Toretto é bater com caps lock ligado na iminente morte do câmbio manual e na presença massiva dos assistentes eletrônicos. De fato há alguma razão nisso, tanto que este será o assunto da segunda parte desta minissérie. Mas fossem estas as únicas razões, por que um BMW M3 E92 manual com controle de estabilidade desligado, mesmo mais veloz em retas e curvas, parece sedado em feeling se comparado ao seu irmão mais velho M3 E46 – e mais em relação ao E36 Euro e mais ainda em relação ao E30? O Camaro Z/28 é um dos muscle cars mais incríveis e velozes em circuito da atualidade – mas embora sua dinâmica seja afiada e precisa, exige uma sensibilidade profissional para se captar os limites de aderência.

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Estamos começando a chegar ao ponto: it’s evolution, baby. Não o LanEvo, mas sim frutos diretos não apenas de imposições mercadológicas vindas das demandas dos próprios clientes (máximo de prazer, mínimo de inconvenientes – sendo que muitos destes últimos são fontes de prazer rudimentar aos puristas), mas sim da evolução da engenharia em si, inclusive na área de performance. Sim, como veremos mais abaixo, nós entusiastas também temos culpa nesta perda das conexões sensoriais dos novos esportivos.

 

A evolução do NVH – Noise, Vibration & Harshness

Quando você acelera um esportivo antigo – entenda antigo como qualquer coisa dos anos 90 para trás –, a diferença é clara: o veículo se comunica contigo não apenas pelo ronco e pela dinâmica, mas por uma série de ruídos e, acima de tudo, vibrações. Estas chegam ao seu corpo por todas as extremidades: pela palma das mãos, pela sola dos pés, pelas costas e pelo seu traseiro. No caso de preparados, tudo isso fica ainda mais intenso.

Então, quando você está de pé cravado na saída daquela curva – ou mesmo numa estrada –, era possível de se saber a hora certa de trocar a marcha não apenas pelo ronco (que era muito mais comunicativo graças à presença massiva das incômodas ondas estacionárias) e pelo conta-giros, mas também pela vibração que o powertrain transmitia ao seu corpo. Pedais, manopla de câmbio, tudo vibrava com uma frequência similar à do vibracall de um smartphone, mas com frequência que variava de acordo com a rotação. Pela mesma fonte era possível sentir quando se estava para passar do giro, se a mistura estava inadequada ou quando havia algo de errado no motor ou no câmbio.

Não era algo de piloto sobrenatural: uma pessoa comum com vivência e entrosamento com determinada máquina sentia algo estranho ou fora do normal acontecendo com o motor ou o câmbio, mesmo que não soubesse dizer o quê, pois o organismo se acostumava com determinado padrão de sinal. Sendo tão claro e costumeiro, uma mudança era facilmente detectável.

As mãos também recebiam muito mais feedback do asfalto: texturas mais ou menos rugosas ou a perda de aderência também eram transmitidas por vibrações, reverberações que começam na banda de rodagem dos pneus, são transmitidas às rodas, aos cubos, ao conjunto de direção, subiam a caixa, a coluna e chegavam até a palma de suas mãos. Até mesmo o bloqueio dos pneus numa frenagem de emergência eram transmitidos de forma clara ao motorista.

É este tipo de comunicabilidade que deixava a conexão entre o motorista e sua máquina mais íntima. Só que nisso entra a questão principal: nem tudo o que é bom para o entusiasta purista é bom para o cliente, pois raramente os dois não são o mesmo. É infantil pensar que todo comprador de Porsche 911 e BMW M3 são da família Alzen, Schmitz ou Rorhl: pra esmagadora maioria, vibrações e ruídos incomodam e dão a sensação de produto tosco, frágil, barato. Quer uma fonte inesgotável de comunicação por vibrações? Dirija um Fusca. É envolvente, mas chega a ser cansativo para quem não tem gasolina nas veias.

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Há dezenas de fontes de ruído e de vibrações num automóvel, e é tarefa do departamento de NVH (ruído, vibração e rispidez) cuidar de tudo. Fora o que já mencionamos, componentes como freios, vento, ventoinhas, sistema de ventilação e ar-condicionado, sistema de som e alternador são analisados exaustivamente como fontes de emissão, cruzados com todos os outros componentes do veículo que podem agir como fontes de reverberação passiva. O que separa um carro de luxo de um popular não é apenas acabamentos e design: o NVH é a força invisível do bem-estar. E um esportivo é um produto de luxo.

É uma mistura de trabalho técnico com subjetivo de extrema qualificação, misturando microfones, acelerômetros, vibrômetros a laser (para leitura de vibrações de componentes e estruturas sem contato e consequente influência no corpo) e outros equipamentos – incluindo bons bundômetros e ouvidômetros –, que levarão ao possível uso de amortecedores de massa, diversos tipos de isolamentos acústicos, diversos tipos de buchas e coxins (incluindo sistemas hidráulicos ativos), balanceamentos e até alterações materiais e estruturais em componentes. O estudo de ruídos e vibrações existe há décadas, mas só de 20 anos pra cá que realmente decolou.

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O resultado de tanta evolução nesta área? Nada de vibrações nos pés que fazem a sola formigar. Nada de ver a manopla do câmbio tremendo feito vara verde em altas rotações. Volante vibrando? Ora, já basta o smartphone. Som de vento, reverberação dos pneus? Tudo isso atrapalha o sistema de som e o conforto a bordo. O único ruído deve vir do motor, e que seja um ronco intenso, mas gostoso, que permita que todos conversem na cabine, sem ondas estacionárias. Nada daquele “uuuuuu” ensurdecedor dos dias de rolê de Opalão ou de Maveco com escape terminando antes do diferencial.

Não há ironia no parágrafo acima. Automóveis esportivos são produtos extremamente caros que precisam entregar experiências sem inconvenientes. De forma geral, um comprador de um esportivo zero quilômetro quer uma experiência de esportividade, mas sem as chatices de um carro de corrida – que muitos sequer imaginam que existam. Cuidado com conclusões nostálgicas demais: se toda essa tecnologia estivesse disponível nos anos 1960 e 1970, tenha a certeza de que seria usada. Boa parte da diferença do “feeling” entre os carros das décadas de 80, 90 e 2000 está na evolução do NVH. O resto? Está nesta série de posts sobre o assunto.

O preço a se pagar com o refinamento do produto é uma certa pasteurização do mesmo. Sem as impurezas, você perde comunicação, como se entre você e a máquina houvesse um filtro que seda as nuances. E na prática é isso mesmo.

Quando você pega um carro de corrida moderno, no qual a engenharia de competição joga fora o NVH em nome do conforto para usá-lo apenas para que o carro não se destrua, voltamos ao começo deste capítulo: um automóvel moderno, mas com toda a comunicabilidade de vibrações e ruídos como nos tempos de antigamente (ou quase isso: veja o tópico dos pneus, mais abaixo). Isso na rua? Geralmente fica reservado para versões ultraespeciais para milionários compradores de encrencas, como o Mercedes-Benz SLS AMG Black Series e o Porsche 911 GT3 RS – e mesmo eles possuem lá um toque significativo de NVH para não enlouquecer os seus abonados clientes.

 

Ganho de dimensões e de massa

Em algum momento do fim dos anos 80, começou um estranho movimento de inchaço dos automóveis – em todas as dimensões (largura, comprimento, altura, entre-eixos, bitolas) e em todas as categorias, incluindo os esportivos. É como os filmes de hollywood: cada sequência precisa ser mais bombada de ação, efeitos e grandiosidade.

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Usando a BMW como exemplo – uma marca com pilares fundados no cruzamento entre esportividade e sofisticação –, o M3 (hoje, renomeado para M4) inchou tanto que faz o tataravô de primeira geração, E30, parecer um minicarro frangote, mesmo com seus para-lamas alargados. Mesmo em comparações não tão distantes, o recente M2 tem dimensões similares às de um M3 E46, bem como o Série 3 atual tem o tamanho de um Série 5 de alguns anos atrás.

A culpa disso é toda nossa. Somos nós, clientes, que respondemos positivamente a cada evolução bombada, a cada stance poderoso, que exigimos um ponto H (cruzamento entre o assento e o encosto, ou basicamente onde fica o seu traseiro) cada vez mais alto, que aprovamos carrocerias mais musculosas, rodas e pneus maiores e mais potência – que exige bitolas e entre-eixos maiores para manter a mesma controlabilidade. Em paralelo a isso, a evolução do NVH trouxe cada vez mais material fonoabsorvente e a presença de mais e mais tecnologia de conveniência e segurança embarcada incorpora quilômetros de fios e dezenas de quilos de equipamentos.

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Como cereja do bolo, um veículo mais pesado precisa de radiadores maiores, freios maiores, amortecedores e braços de suspensão mais parrudos, monobloco reforçado. Enfim, a bola de neve está feita: um BMW M3 E30 pesava algo na casa dos 1.150 e 1.200 kg – um M4 2016, mesmo com uso extensivo de alumínio e de aços de ultra-alta resistência, passa dos 1.600 kg. É mais de 100 kg mais pesado que um Dodge Charger 1975. O Porsche 911, ao longo de suas sete gerações, ganhou bastante massa e cresceu substancialmente em bitolas e no entre-eixos, mas talvez seja o carro que mais buscou preservar sua essência em feeling – não à toa, é a referência absoluta em dinâmica e comunicabilidade.

Com mais massa suspensa e dimensões maiores, temos a certeza de ao menos duas coisas: maior inércia, ou seja, perda de vivacidade e de agilidade nas reações, e menor influência da massa não-suspensa sobre a suspensa, ou seja, menos comunicabilidade do conjunto de pneus, rodas e suspensão para o conjunto. De forma geral, o passeio fica mais confortável, mas mais sedado.

 

A evolução dos pneus

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Se os puristas podem pendurar a dívida da evolução do conforto do NVH e o inchaço dos esportivos na conta dos compradores de esportivos mais interessados em projeção social na porta do restaurante que na proposta verdadeira destes veículos, bem, neste trecho é hora de engolirmos o remédio amargo. A culpa da menor comunicabilidade dos esportivos atuais também é nossa, entusiastas ávidos por performance: foi pela demanda de tempos cada vez mais baixos em Nürburgring, premiações tipo “Performance/Sports Car of the Year” de publicações especializadas feitas com hot laps em autódromos norte-americanos e coisas do gênero que levamos o desenvolvimento dos pneus esportivos ao nível em que eles estão hoje.

Nunca se chegou tão próximo dos slicks, tanto na baixa longevidade – pneus extreme performance podem pedir substituição com oito mil quilômetros – quanto na alta performance e… baixíssima comunicabilidade. Digamos que há uma curva longa, mas relativamente fechada, cujo limite de velocidade de contorno esteja na casa dos 80 km/h com determinado hatch calçando pneus radiais canelinha, bem convencionais.

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Na hora em que você entrar na curva, você sentirá uma resistência elástica no volante – e quanto mais próximo do limite de aderência você estiver, maior será esta resistência ao esterçamento. Quando você começar a passar do ponto e a escorregar com a dianteira, esta resistência diminui, o volante fica mais molinho. É uma mensagem clara, direta, instintiva. Esta resistência elástica que você sente nas mãos é uma consequência direta da flexão da carcaça (a lateral do pneu dobra por baixo da roda) e da banda de rodagem do pneu (torce em forma de “S”): esta última adere ao piso, mas as forças de aceleração lateral fazem a estrutura do pisante se torcer inteira.

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Se essa deformação em grande escala deixa o pneu mais comunicativo, por outro lado gera muito mais calor, deixa suas reações mais lentas (o pneu primeiro dobra antes de agarrar de vez) e deixa muito grande a diferença entre o plano de rotação do pneu e sua trajetória efetiva – esta diferença é conhecida como ângulo de deriva. O vídeo abaixo explica o fenômeno de forma bastante didática:

Quanto maior a capacidade do pneu gerar aderência lateral, mais rígida deve ser a sua estrutura para evitar os problemas citados no parágrafo acima. O resultado é simples: um pneu slick ou de alta performance gera mais aderência com menos ângulo de deriva, ou seja, sua carcaça dobra menos. A consequência disso? São duas: com menos deformação, aquela resistência elástica que se apresentava ao volante fica proporcionalmente menor (ou seja, os limites de aderência do pneu ficam menos comunicativos às mãos), e o pico de aderência, embora seja mais intenso, fica também mais estreito. Ou seja, se manter no limite é mais difícil – e mais do que isso: se passar do ponto, o decaimento de aderência é mais agressivo também.

Acompanhe os gráficos conceituais abaixo. O eixo vertical é a capacidade do pneu de gerar aderência lateral, o horizontal é o ângulo de deriva. O primeiro gráfico serve para você entender como encontrar o limite. O segundo gráfico, mais abaixo, mostra as diferenças entre três pneus hipotéticos: um slick de corridas, um pneu de extrema performance e um pneu de rua convencional. Gaste alguns minutos lendo estes gráficos com calma.

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Trocando em miúdos, nunca os pneus esportivos foram tão velozes. E necessariamente isso significa que nunca eles foram tão pouco comunicativos ao motorista. Neste sentido, a evolução do NVH foi ruim para os carros esportivos, pois eles terminaram de filtrar os poucos sinais vibracionais que seriam transmitidos ao volante. Marcas extremamente apaixonadas, como a Porsche, procuram preservar ao máximo estes sinais, mas é preciso lembrar que há uma briga de foice interminável entre engenheiros gearheads e a turma de produto preocupada com a opinião da maioria de seus compradores. Lembre-se: a carta de clientes de uma marca como a Porsche pode ter centenas de pilotos e puristas, mas os milhares são compostos por gente que acha vibrações e enrijecimento do volante coisas desagradáveis.

 

A evolução das servo-assistências

Se você está acostumado a dirigir somente carros modernos e um dia tiver a sorte de acelerar um ícone esportivo – que nem precisa ser muito antigo, pode ser um BMW M3 E36 –, provavelmente vai tomar um susto na primeira freada, que nem precisa ser intensa. Que pedal duro, não? Pois é. Hoje os carros possuem acionamentos extremamente macios, a ponto inclusive de dificultar técnicas de pilotagem como o punta-tacco.

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Na média, esta maciez beneficia os motoristas de forma geral. Primeiro porque reduz a fadiga, mas especialmente no quesito dos freios, muita gente não usava o potencial completo dos freios numa situação de emergência, resultando em atropelamentos ou batidas que seriam completamente evitáveis. Como todos os carros de hoje possuem freios ABS, não há mais a necessidade de se preocupar se as rodas irão travar. Como modular frenagem virou coisa de dinossauro, o freio pode ser molinho e super sensível. Esportivos atuais podem até ter pedais mais firmes, mas muito menos do que já foram.

A servo-assistência do pedal de embreagem hoje em dia é tão poderosa que você não sente mais conexão alguma com a transmissão. Nisso também entrou a evolução do NVH, pois você não sente mais aquelas trepidações no pedal quando o acoplamento está se iniciando. A direção, seja hidráulica ou elétrica, passa por situação parecida: em nome do conforto e da sofisticação, suas vibrações, tranquinhos e ganho de resistência vindo dos pneus foram reduzidos a quase nada, mesmo no mundo dos esportivos. Apenas carros muito ardidos, como séries especiais de homologação, ou produtos focados para o público purista, foram preservados em algum grau.