Gasolina. Uma das boas lembranças da minha infância é a minha mãe brigando comigo porque eu abaixava os vidros do carro no posto pra deixar o cheiro de gasolina entrar, ou quando andava de Fuscão com meu tio, depois de contornamos curvas mais ousadas. Gostava e gosto deste cheiro. Adorava também o assovio aerodinâmico que o Comodoro Coupé deste mesmo tio (não sei o ano, mas é aquele com a frente quadrada que começou em 1980) fazia a partir dos 60 ou 70 km/h. Carros, carros, carros.
A verdade é que sempre gostei desse universo. Fui criança nos anos 80, uma época na qual a presença dos carros era mais marcante. Eles tinham personalidade mesmo, você reconhecia um automóvel pelo seu ronco de longe. Lembro que brincávamos de sentar de costas pra rua e ficar adivinhando qual carro passava. Claro que a variedade era menor, mas hoje a brincadeira seria muito mais difícil, mesmo porque a maioria dos carros sequer faz barulho…
Aos 10 anos, pedi de aniversário a assinatura da Quatro Rodas, e as devorava de capa a capa quando chegavam. Meu quarto era decorado com os pôsteres de Bugatti EB110 azul, Porsche 911 Carrera 4 vermelho, McLaren F1, Jaguar XJ220 e afins. Mas a edição de outubro de 1992 (veja o acervo digital da QR clicando aqui) trouxe algo pelo qual me apaixonei instantaneamente.
Era um tempo no qual eu nem sonhava com o que seria um sleeper, mas sem saber do conceito moderno, na verdade era tudo o que eu queria de um carro. Carroceria coupé (de verdade, sem coluna B) suspensão independente nas quatro rodas, 231 cv em um seis-em-linha com quatro válvulas por cilindro e duplo comando de válvulas no cabeçote, 27,2 mkgf de torque despejados nas rodas traseiras de um carro com 1.400kg, em uma relação peso/potência de 6,06 kg/cv. Havia encontrado a minha carta no Super Trunfo!
A vida passou, faculdade, filhos, casa, a luta diária pelo metal… por muito tempo cheguei a esquecer o dito cujo, mas nunca esqueci minha paixão imensa por carros. Tive vários, uns legais e outros nem tanto, mas sempre fui do tipo que tira o sábado ou domingo para lavar o carro, encerar, aspirar e claro, rodar por rodar pelo simples prazer de dirigir.
Não gosto de carros muito modificados, com estética acima da função como rodas enormes e discos de freio pequenos, rebaixados ao extremo e afins. Também não creio que para ser gearhead tenha que gostar somente de carro manual com 1000 cv. Sou viciado em carros e prefiro os automáticos, admiro carros quietos e confortáveis no uso civil, mas que têm chão e que respondam à altura quando chamados.
Penso que ser gearhead mesmo é amar e respeitar desde aquele 147 com câmbio maluco até a deusa do Braulio, pois com certeza em ambos há horas de projeto, trabalho e sacrifício de pessoas exatamente como eu e você, apaixonados por carros e pela liberdade que eles representam.
Quando a vida permitiu, a primeira coisa que comecei a fazer foi procurar um antigo pra chamar de meu. Queria um carro que pudesse eventualmente ser usado no dia a dia, mas também que me desse muito prazer ao volante, um carro daqueles onde quem manda na relação homem-máquina ainda é o ser humano. Vasculhei a internet por anos a fio procurando por Opalas, Chargers, Darts, testemunhando o preço deles chegar aonde estão hoje… e nada de encontrar o meu.
Sim, sou embaixador do reino do frisinho, grão-mestre da ordem dos devotos do selinho de fábrica e fico maluco se descubro alguma gambiarra em carro meu. Mas que fique claro, isso é comigo e com os meus carros, pois respeito todas as formas de uso destas máquinas maravilhosas – mas não sou obrigado a concordar com elas. E é aí que a coisa complicou na minha busca.
É muito difícil encontrar um clássico nacional dos anos 70 que não tenha sido repintado, modificado de alguma forma ou customizado ao gosto do dono. E quando aparece, o preço é surreal. Resolvi mudar o foco. Já que não podia ter um antigo em condições excepcionais então eu pegaria um carro com vinte e tantos anos pra criar, aproveitando a melhor oferta de peças originais para deixá-lo em condições de, um dia, receber a placa preta.
Aumentei o leque das buscas e foi aí que reencontrei aquele amor platônico da minha adolescência. A primeira 300CE que vi me chamou atenção pelo excelente custo-benefício, embora eu suspeitasse de que a manutenção devesse ser das mais caras. Me inscrevi em fóruns especializados, estudei tudo o que tive alcance, pesquisei preços de pacotes de peças de uso frequente, até ter certeza que poderia realizar o sonho sem viver um pesadelo.
Neste momento aquela primeira CE tinha sumido dos anúncios, e por ser um carro relativamente raro fiquei muito decepcionado com minha hesitação. Mas quando é pra ser, acontece! Menos de uma semana depois, esta estrela que ilustra este post surgiu na rede – a mais de 1.000 km de distância! Sem titubear, fiz um primeiro contato telefônico e me animei com a descrição do carro feita pelo antigo dono. Conversa com a patroa daqui, quebra cofrinho dali, consegui a outorga uxória e uma boa negociação no valor do carro.
Quando a emoção fala muito alto é difícil ser racional. Quando vi o carro pela primeira vez ao vivo não fiquei procurando defeitos. Fiquei admirando embasbacado suas proporções, seu teto baixo, suas linhas aerodinâmicas que me remetem a como exatamente deve ser um carro para devorar estradas, seu cinto de segurança com um braço telescópico que o coloca na sua frente quando fecha a porta, o interior azul, aquele ronco rouco dos seis cilindros…
Como os apaixonados são amigos da sorte, o carro estava em condições melhores do que eu esperava: interior em excelentes condições, motor e câmbio com tudo em ordem, lataria, suspensão idem, mimos como bancos elétricos, teto solar, o sistema do cinto e vácuo das portas todos operando. Burocracia atendida, parti com meu sonho sobre rodas para uma viagem de 1.000 km de apresentação e interação.
Logo de cara chamou a atenção aquela estrela espetada no capô enorme, a maciez, o silêncio quase absoluto a bordo, o charme de não ter a coluna B e o ronco, que ronco! O carro veio com um furo minúsculo no escapamento intermediário, mas só se ouvia o ronco abrindo o vidro. A cada saída de pedágio eu deixava o vidro abaixado pra ouvir aquilo. Me arrepiava! Esse carro é um até os 3.500-4.000 rpm e outro bem diferente depois disso: o ronco afina e vira um urro baixo, completamente hipnotizante e viciante.
Já substituí o escape defeituoso, mas estes 1.000 km com ele aberto foram uma baita lua de mel. Estou com o carro há sete meses e já fiz muita coisa nele. O objetivo é deixa-lo o mais original possível e rodar com ele sempre que puder, pois carros foram feitos para andar, não para enfeitar garagens escuras.
É um Project Car de placa preta, sem pretensões de mais potência ou melhorias dinâmicas. O objetivo é apenas manter a história viva para ser contada daqui algumas décadas exatamente como ela foi escrita em 1990. Vou dividir aqui todas as experiências boas e ruins em se ter uma alemã de meia idade na garagem, neste caminho árduo e prazeroso que é realizar um sonho “cabeça de engrenagem” no Brasil. Grande abraço.
Por Alexandre Anziliero, Project Cars #59