Fazia tempo que eu tinha vontade de visitar o Canadá. Tudo o que eu lia sobre o país e amigos que moram lá me falavam me deixava mais encantado. Como tinha férias marcadas para outubro, pensei comigo mesmo “de repente eu acho umas passagens na promoção e ficando em hostel acho que vira de ir de boa!”.
Como mesmo em promoção as passagens para vôos intercontinentais são muito caras, sempre que faço uma viagem dessas prefiro ficar um pouco mais de tempo e aproveitar melhor os lugares que visito. Foi assim naquela viagem ano passado pela Alemanha e seria assim dessa vez.
Encontrei vôo para Toronto num preço razoável, apesar de acima do que eu pretendia pagar inicialmente. Passagens compradas, fiquei pensando o que faria nessas duas semanas. Ficar em um só lugar todo esse tempo também está fora de cogitação, tenho que arrumar o que fazer.
Comecei a pesquisar e vi que Detroit ficava a mais ou menos 400 km de distância, e que Chicago, outra cidade que eu sempre quis conhecer, ficava a 600 km de Detroit. Pronto, os lugares estavam decididos, daí foi só esquematizar a quantidade de dias em cada cidade, ver se o trajeto seria feito de avião ou carro, reservar a estadia nos hostels e cair no mundo!
Dessa vez chamei um casal de amigos (Wanessa e Daniel) para me fazer companhia. Nós três nos conhecemos nos bancos da faculdade. Fomos da mesma turma de engenharia. Acabou a faculdade, eles se casaram e a amizade entre nós continuou. Como eles aceitaram o convite, esta foi a quarta vez que viajamos juntos. Coincidentemente, todas as vezes que fui para os EUA eles estavam presentes. E naquela viagem da Alemanha, descobrimos, numa dessas noites tomando cerveja e falando besteira, que estaríamos em Berlim no mesmo período. E em todas as oportunidades as viagens foram ótimas, então não teria porquê dessa vez ser diferente.
Viagem organizada, passagens e estadia reservadas, fomos embora! Toronto confirmou tudo aquilo que havíamos lido. Cidade linda, povo super educado, muitas mulheres bonitas, motores V8 e sistema métrico! No penúltimo dia de estadia lá, alugamos um carro para fazer um bate-volta em Niagara Falls e no dia seguinte esse mesmo carro nos levou para Detroit. Aqui a viagem começou bem. A locadora me entregou um Dodge Charger SXT AWD Redline Red. Baita carro legal.
V6 Pentastar (292hp) com caixa Torqueflite 8 marchas (provavelmente uma unidade ZF renomeada e com relações escalonadas pela Dodge) com possibilidade de trocas manuais por alavanca e tração AWD sob demanda (traseira em condições normais), fora outras coisas, como o sistema de som multimídia UConnect, que, além do som, controla praticamente tudo dentro do carro, dentre eles as configurações dos mostradores do computador de bordo do painel, ar condicionado dual zone, modos de funcionamento do botão de partida e destravamento de portas, acendimento de luzes e faróis, etc.
No dia seguinte, com o mesmo Dodge, partimos para Detroit. Chegar na Motor Town com um Mopar, how cool is that? A viagem foi muito agradável! Daniel, que também gosta de carros, motos e estrada, foi revezando o volante comigo. O feeling de ambos a respeito do Dodge foi dos melhores. Mesmo com três pessoas e topado de bagagem, passava uma baita segurança na estrada. Fazíamos curvas na casa de 140 km/h e o carro parecia em trilhos!
Nota: quem gosta de Fords vai reconhecer alguns dos nomes aqui. Ford utilizou bastante o nome de ruas e cidades americanas e canadenses para batizar seus carros e motores.
Chegando em Windsor, cidade canadense do outro lado do Rio Detroit, conseguimos ver o complexo de prédios da GM a 10 milhas de distância! Eu pensei comigo mesmo “Caramba, que prédio lindo! Espero que o museu seja bem maneiro!”. Paramos ainda no Canadá para termos nossa última refeição naquele país, e também porque já passava das 20h e estávamos com fome.
No dia seguinte à chegada em Detroit, fomos devolver o carro e visitar uma cidadezinha a aproximadamente 20 km dali chamada Dearborn. Sim, naquele dia iríamos visitar…
The Henry Ford Museum!
Estava garoando e ventando bastante, o que nos fazia sentir um frio ainda maior do que o normal. Mesmo assim, chegando lá, ficamos maravilhados com a beleza do prédio que abriga o museu. Mal sabíamos que aquilo era apenas o cartão de visitas de um dos museus mais legais mantidos por um fabricante de automóveis! E certamente a experiência seria fantástica.
Ao entrarmos, tínhamos quatro opções de passeio: museu, Greenfield Village, Visita à planta Rouge da fábrica do oval azul e um cinema onde passavam filmes longa-metragem e documentários relacionados à carro.
Descartamos o cinema de cara. Com certeza, em um lugar tão grande e tão legal, não iríamos desprender de nosso escasso e precioso tempo sentados mais de uma hora assistindo um filme, mesmo que relacionado ao tema.
Greenfield Village também foi descartado por dois motivos: tempo. O tempo não estava bom para caminhadas ao ar livre (vento e garoa o dia inteiro) e o nosso tempo estava escasso para andar por cerca de 32 hectares de ruas cheias de casas maneiras e importantes para a história Americana e mundial.
Sendo assim, fomos primeiro para a fábrica. Chegando lá, vimos dois curta-metragens: um deles contava a história do senhor Henry Ford e o outro falava sobre a última geração da F150, caminhonete ao qual veríamos a linha final de montagem. Filmes vistos, subimos para o terraço do prédio, onde um senhor bem simpático nos mostrava a grandeza da fábrica. Chamar aquilo de “montadora” é praticamente uma ofensa! São vários prédios e galpões que ocupam hoje um terreno de nada menos que 1 milha de comprimento e 1,5 milha de largura ao longo do rio Rouge. Ali se faz projetos de design, análise de materiais, estamparia, pintura, fundição, usinagem, manufatura de peças plásticas, construção de motores e montagem de vários carros. Montar é somente a parte final de tudo, e nós vimos como a mágica final acontece logo em seguida.
Amigos, quem tiver oportunidade de visitar uma fábrica, não deixe passar, por favor! É absolutamente impressionante a sincronia dos movimentos daquelas pessoas e peças que vão sendo unidas enquanto correm em uma esteira rolante. Nós passamos por um conjunto de passarelas no alto, e lá em cima ficam algumas pessoas posicionadas para explicar todo o processo. São várias estações, e cada uma delas possui precisamente 53 segundos para concluir o trabalho. Cada estação possui ferramentas e um computador próprio, onde chegam as informações do que deverá equipar o carro que está ali e alguns semáforos, onde o operário facilmente visualiza quanto tempo lhe falta para concluir a tarefa de sua respectiva estação. Caso alguma estação estoure o tempo, toda a linha para e espera a conclusão da tarefa.
A planta Rouge foi a primeira construída por Henry Ford após adquirir o terreno que margeia o rio de mesmo nome. Em 1915 o terreno foi comprado, dois anos após fazer alguns experimentos e estabelecer as regras do modelo que depois mundialmente ficou conhecido como fordismo, transformando um conceito que ele viu em um frigorífico em Chicago (cada açougueiro executa uma tarefa pequena e específica na carcaça do boi abatido, que anda pelo frigorífico suspenso por um gancho) com outros experimentados por ele. Em 1917 a fábrica ficou pronta, ele colocou o conceito em prática e o resto é história. Atualmente, a fábrica segue os modelos do toyotismo, trabalhando com conceitos de estoque mínimo, ergonomia, melhoria contínua e sinais luminosos para controlar a montagem final e toda a cadeia produtiva.
Só a explicação mais detalhada isso já renderia uma postagem inteira com facilmente mais de 2500 palavras!
Desde 1924, Henry Ford recebe visitantes do mundo inteiro interessados em ver o funcionamento da linha de produção. Isso incutiu nele esse espírito de preservar a história e mostrar para o mundo como uma idéia relativamente simples, retirada de um frigorífico, transformou a história do automóvel e, porque não, do mundo.
Nessa parte, infelizmente as fotos são poucas, pois é terminantemente proibido fotografar a produção. As mesmas pessoas que simpaticamente tiram suas dúvidas também ficam de olho para evitar que você tire fotos. E pode ter certeza que eles vão te expulsar dali caso descumpra as regras.
Acabado o passeio, voltamos ao museu. E que museu! Ano passado eu fiquei encantado com o museu da Mercedes-Benz. Pois o Museu Ford é tão legal, se não for melhor que àquele de Stuttgart. Ele é um museu de carros que é ocupado por menos de 1/3 com essa montoeira de metais e materiais inflamáveis suspenso sobre quatro rodas ladeadas por pneus. Na verdade, nós viríamos a descobrir depois que ele é mais um museu sobre a revolução industrial, e sobre o papel das máquinas como um todo nessa revolução, do que um museu de carros!
Primeira coisas legal: Os carros não são maioria. Sequer são a metade da amostra! E mesmo assim, os Fords não dominam o salão! Um fabricante que expõe carros, motos e caminhões de outros fabricantes, quando esses são históricos ou trouxeram inovações importantes merece muito respeito! Lá eu pude ver desde um fusca Split Window a um dos seis Bugatti typ 41 Royale, chassi 41121, conhecido também pelo seu nome próprio: Weinberger Cabriolet. De um Mazda com motor rotativo ao lado de uma CB 750 Four a um caminhão-tanque Chrysler streamliner.
Nessa parte dos carros, tem uma seção bem legal dedicada aos anos 50, onde tem exposto um Chevrolet Bel Air, uma bomba de combustível da Texaco, um dos primeiros letreiros em neon do McDonalds (antes sequer da famosa logo com o M estilizado ser criada) e um típico Diner dos anos 50. O mais legal disso é que o Diner funciona e está aberto ao público, ou seja, você pode almoçar dentro do museu, em parte do acervo dele! Eu acho que já disse isso, mas how cool is that?
Andando um pouco mais você se depara com uma das locomotivas a vapor mais potentes do mundo, classe Allegheny! Um colosso capaz de rebocar vagões de passageiros a 60 milhas por hora, ou tracionar, sozinha, 160 vagões carregadas com 60 toneladas de carvão cada.
Outra seção bem legal é a que conta dos primórdios da aviação. Nessa parte, há um Ford 4-AT-B Trimotor, considerado o primeiro avião de passageiros bem sucedido comercialmente, um Douglas DC3, o primeiro avião a sobrevoar o Ártico (um Fokker F. VII) e o helicóptero VS-300A, criado pelo senhor Igor Sikorsky e doado pessoalmente por ele ao museu. Consta que ele era um fã do senhor Ford, assim como ele era fã do Sikorsky. Charles Lindberg, um dos ilustres cidadãos nascidos em Detroit e primeiro homem a cruzar o Atlântico num vôo sem escalas, era muito amigo de ambos e, sabendo disso, promoveu o encontro. Da admiração mútua nasceu a amizade e Sikorsky – o primeiro a conseguir construir uma máquina com asas rotativas que fosse estável e provar que o conceito era viável – doou pessoalmente o aparelho para o museu em 1941.
Tem uma seção do museu dedicada à relojoaria, outra às limusines presidenciais (a maior parte delas saiu do grupo Ford), mais uma para armas de fogo, marcenaria e design de móveis, implementos agrícolas, geradores de energia elétrica, veículos históricos (como, por exemplo o ônibus onde uma certa senhora negra chamada Rosa Parks se recusou a ceder seu lugar a um branco, em Montgomery, Alabama, em meados dos anos 50 e que foi o estopim pela luta de igualdade de diretos raciais nos EUA), telefones, violinos (Henry Ford os colecionava).
Era tanta coisa pra ver, tanta história legal sendo contada ali, tantas peças representativas para a história humana desde a revolução industrial, que nós nos perdemos no tempo e talvez não tenhamos conseguido ver metade do acervo! Mesmo Wanessa, que não é tão entusiasta de carros, ficou maravilhada. Conversando durante o jantar ela contou que não esperava que aquele dia seria tão legal! Ela achou que ficaria entediada rapidamente com os carros, sentaria em algum sofá para nos esperar e pronto. No entanto, em diversos momentos, nos desencontramos, pois cada um ia para um lugar ver algo diferente. E quando nos encontrávamos era sempre com dicas do tipo “já foi na seção X? Não? Pois vá! Lá tem uma peça Y que foi pioneira em tal setor da história recente!” ou algo assim. Três engenheiros nerds em um museu de máquinas. Tentem imaginar o êxtase que vivíamos ali. Então, era muito maior!
Antes de ir embora, aquela passada obrigatória na loja de souvenir. Trouxe camiseta, boné, imã de geladeira, caneca e um modelo do Ford T para ser montado em casa. Ficamos Daniel e eu mais ou menos assim:
No fim, a sensação foi a de que poderíamos voltar lá no dia seguinte que não repetiríamos uma única atração sequer. Além da felicidade de ter visitado uma fábrica e museus absolutamente incríveis! Apenas aquele dia já havia justificado toda a estadia em Detroit, mas ainda veríamos muito mais coisas legais por lá!
Motor+Town=Motown
No segundo dia na cidade, dedicamos parte deles à musica. Afinal de contas, estávamos no local onde nasceu uma das gravadoras mais influentes da história da música moderna: a Motown! Visitamos as duas primeiras das oito casas que foram compradas por eles na vizinhança e que fizeram parte da gravadora. Naqueles dois sobrados saíram hits de artistas do quilate de Jackson 5, Marvin Gaye, The Commodores, The Supremes, Diana Ross, Steve Wonder, Smokey Robinson, etc. Se você gosta de música, por pouco que seja, a visita é obrigatória, já que estamos falando de uma das gravadoras mais influentes da história do Século XX!
Apesar de ter sido uma visita guiada pelos cômodos dos dois sobrados conhecidos como Hitsville, foi muito legal conhecer, mesmo que rapidamente, a história de como Berry Gordy Jr. conseguiu transformar seu sonho de viver de música e estourar com algum sucesso nas rádios em uma fábrica de hits e artistas importantes para a história musical.
Novamente, não pudemos tirar fotografias dento do recinto, mas uma coisa eu posso dizer: pisar no Studio A e percorrer aqueles cômodos e corredores tão importantes fizeram valer o dia!
Aproveitamos o restante desse dia, e o seguinte, para terminar de conhecer a cidade, pegar outro carro e seguir rumo à Chicago. Aqui, a grande decepção fica por conta da dona GM. À despeito de terem o prédio mais alto da cidade e de ser um complexo enorme, lá não tem absolutamente nada para ver, nem um showroom, nem um museu, muito menos uma loja de souvenir. O complexo de prédios conhecidos como “GM Renaissance Center” é apenas um conjunto de prédios com salas comerciais, parte da sede da GM e um hotel. A única coisa que valeu a visita foi o restaurante que há num dos andares mais altos do prédio central, pela vista que se tem da cidade, do rio Detroit e de Windsor.
Alugamos um carro para seguirmos viagem, mas antes de apontarmos rumo à Chicago, precisávamos passar por uma outra cidade chamada Auburn Hills, a aproximadamente 75 km do centro de Detroit, para visitarmos o último dos três grandes fabricantes ianques de carros.
Mopar!
Aqui, um clássico museu de automóveis. Ele é pequeno e possui três andares, porém, para quem gosta da marca (eu sou um fã declarado dos Mopars) a visita é um prato cheio!
Na minha opinião, o Grupo Chrysler é, dentre os três grandes, o que faz os carros mais malucos e sem sentido de todos. Por isso mesmo, de lá saíram e até hoje saem alguns dos carros mais desnecessariamente legais de todos os tempos.
No museu tem partes dedicadas ao início da marca, aos carros de outras empresas que foram sendo absorvidas pela Chrysler, caminhões e caminhonetes, inovação (lá tem até um exemplar do Chrysler Turbine Car, o único carro de linha de produção a turbina do mundo), etc.
Para o Daniel e eu, a parte mais legal do museu fica em seu porão. Lá é a parte dedicada aos carros de corrida e séries esportivas especiais do grupo. Ao entrar nessa parte, damos de cara com um V10 preparado pelo Team Oreca para o Viper ganhador das 24 horas de Le Mans em sua classe. E assim a visita segue, com Dodge Charger, Plymouth Hemi Cuda, Dodge Lil Red Express (a primeira picape esportiva da história), Plymouth Prowler (o único carro do acervo onde os visitantes podem entrar e tirar fotos), a bancada do dinamômetro do infame Room 13, onde foram testados os motores de corrida do grupo nos anos 60, nasceu o motor Hemi e a famosa equipe de arrancada The Ramchargers. Nesse museu infelizmente não havia loja de souvenir, então nada de torrar Obamas por ali.
Assim, terminamos a visita a essa cidade meio renegada por seu funesto passado recente. Apesar de quase ter morrido quando do pedido de concordata, ela está se reerguendo aos poucos. Se alguém tiver passeando pela região dos Grandes Lagos e possa interessar, recomendo muito a visita. O The Henry Ford Museum por si só já vale a pena, mas a cidade como um todo é histórica e muito interessante.