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Técnica

Motores GSE turbo da FCA (Fiat/Jeep) no Brasil podem ser a nova referência. Veja como

Se você segue o nosso perfil de Instagram, soube ontem em primeira mão: a FCA oficializou um investimento de 8,5 bilhões para os próximos cinco anos no Brasil, o que inclui não apenas 15 novos modelos futuros entre Fiat e Jeep, mas especialmente a chegada dos motores downsized turbinados, que serão fabricados na planta de Betim após a introdução desta linha de produção que substituirá a atual – um investimento de R$ 500 milhões apenas nesta frente.

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Os motores são os modulares GSE 1.0 três cilindros e 1.3 quatro cilindros turbinados, conhecidos pelos códigos de fábrica T3 e T4, respectivamente. Atualmente, os T3 e T4 são fabricados na planta de Bielsko-Biała (Polônia) e utilizam fornecedores da região (os turbos BorgWarner, por exemplo, vêm da Hungria), rendem entre 120 e 180 cv e estão presentes no Jeep Renegade europeu e norte-americano e no Fiat 500X. Com a produção nacional (lembrando que a BorgWarner possui uma fábrica em Itatiba, SP) que irá se iniciar no terceiro trimestre de 2020, o grupo terá mais um fornecedor global, com a expectativa de se exportar até 400 mil motores dentro dos próximos três anos.

Embora a FCA não tenha dado nenhuma informação sobre quais modelos utilizarão estes motores GSE turbo, é previsível que eles sejam inaugurados nos veículos de maior massa e valor, como a Fiat Toro e a dupla de SUVs Renegade e Compass – mas a relação de potência e torque torna uma aplicação futura na linha Argo e Cronos bastante provável nos modelos topo de linha.

Olhando por cima a notícia, o que temos é a Fiat entrando bem tarde na briga dos downsized. Num outro prisma, contudo, teremos provavelmente a nova referência em tecnologia de motores downsized. E aqui explicaremos os motivos para este palpite.

 

Uma pincelada nos motores FCA GSE Turbo

Vista no lado da transmissão do GSE 1.3. Note o watercooler na lateral do motor. No topo, é possível ver a flauta de combustível do sistema de injeção direta.

O Global Small Engine (GSE) é uma família de motores de arquitetura modular da FCA, filosofia de projeto já empregada em marcas como Volvo e BMW para o máximo ganho de escala. Os motores 1.0 três cilindros e 1.3 quatro cilindros compartilham as mesmas bielas e pistões (dentre outros componentes internos e acessórios externos) e apresentam o mesmo diâmetro e curso: 70 mm por 86,5 mm. O curso longo já deixa clara a proposta de um motor downsized: maximizar a pegada de torque em baixas rotações.

Os motores Firefly, que foram lançados no Uno em 2016 e que estão presentes também no Argo/Cronos e Mobi, são da mesma família GSE. Mas o Firefly trata-se de um projeto bem mais modesto. Seu cabeçote possui duas válvulas por cilindro, há apenas um comando de válvulas com variador de fase e a injeção é indireta, do tipo multiponto, feita no coletor de admissão.

Os GSE turbinados possuem um cabeçote com quatro válvulas por cilindro e duplo comando, com válvulas de admissão podendo variar continuamente em seus acionamentos graças ao sistema eletroidráulico Multiair de terceira geração, além da injeção direta de combustível operando a 200 bar, além é claro, do turbo de baixa inércia, com coletor de escape integrado ao cabeçote, watercooler integrado ao coletor de admissão e de válvula wastegate acionada eletronicamente.

Vista do outro lado. Ao centro da imagem, o turbo BorgWarner com válvula wastegate eletrônica. Abaixo da turbina, note o radiador de óleo integrado ao bloco.

A diferença fica clara nos números, especialmente no torque. No Firefly, utilizamos os números de gasolina para evitar distorções:

Firefly 1.0 aspirado: 72 cv a 6.000 rpm / 10,4 kgfm a 3.250 rpm
Firefly 1.3 aspirado: 101 a 6.000 rpm / 13,7 kgfm a 3.500 rpm
GSE 1.0 turbo: 120 cv a 5.750 rpm / 19,3 kgfm a 1.750 rpm
GSE 1.3 turbo: 180 cv a ??? rpm / 29 kgfm a 2.500 rpm

O GSE 1.0 turbo gera 83,3% a mais de potência e 85,5% a mais de torque a versão aspirada Firefly. E o GSE 1.3 turbo gera 78,2% a mais de potência e 111,6% a mais de torque que o Firefly 1.3. Outro ponto importante é que o torque máximo surge numa rotação muito mais baixa, como em todo motor downsized.

Vale também compararmos com a referência nacional de hoje em dia, os motores TSi da Volskwagen. Aqui usamos a versão dos TSi empregada no T-Cross, com gasolina para manter o mesmo parâmetro:

1.0 TSi: 116 cv a 5.500 rpm / 20,4 kgfm a 2.000 rpm
1.4 TSi: 150 cv a 4.500 rpm / 25,5 kgfm a 1.500 rpm

O Firefly e o GSE turbo compartilham o mesmo projeto de bloco de alumínio com camisas de ferro de 1,8 mm, contudo o bloco dos GSE turbinados utiliza outra liga para uma maior rigidez à torção estrutural. Componentes como virabrequim, bielas e pistões seguramente não são os mesmos devido à diferença de torque.

Contudo, estes números são do GSE turbinado norte-americano e europeu, movidos apenas a gasolina. O nosso GSE será flex – e com isso, além do provável ganho adicional de potência, surgem vantagens que o sistema Multiair III aproveitará e provavelmente colocarão estes motores como a grande referência a ser batida, acima inclusive do TSi da Volkswagen.

 

O pulo do gato do FCA GSE Turbo

A grande vantagem dos turbos com válvulas wastegate acionadas eletronicamente é o controle da razão de compressão dinâmica (saiba mais nesta reportagem técnica sobre taxa de compressão). Com a válvula wastegate eletrônica, a ECU pode moderar a pressão da turbina para obter o máximo de indução forçada com o menor risco de pré-detonação. No Brasil, um aliado particularmente importante para este controle está no sensor na linha de combustível (antes, portanto, de a mistura chegar à câmara de combustão), que não apenas afere a temperatura do combustível mas também identifica o teor de etanol por condutividade elétrica (sinal de capacitância). Este recurso é fundamental para o flex funcionar com precisão e agilidade, visto que a clássica sonda lambda só processa aquilo que aconteceu após a queima. Com este sensor, a ECU consegue interpretar que mistura de etanol e gasolina ele irá queimar antes de ele chegar à câmara de combustão, permitindo mapas de ponto de ignição, de injeção (a injeção direta, ágil e com amplo poder de troca de calor, é outro recurso fundamental) e de pressão de turbina mais arrojados, menos conservadores.

Detalhe do turbo “Mopar” (da BorgWarner) do GSE 1.3. A integração do coletor de escape ao cabeçote reduz o lag, mas entre o compressor e a câmara de combustão, há um caminho significativo e inevitável.

Só que a válvula wastegate eletrônica controla uma porteira bem distante. Entre a turbina e a câmara de combustão do cabeçote há o compressor, a pressurização, o intercooler e os dutos de admissão. O ar é um fluido, possui massa, e tendo massa, possui inércia. Há um hiato reativo entre a abertura ou fechamento da wastegate e a admissão desse novo fluxo na câmara de combustão, e quanto menor a pressão na admissão, maior este hiato.

Agora, imagine que haja uma porteira adicional para se controlar de forma ainda mais imediata a razão de compressão dinâmica. Além da válvula wastegate, imagine que na outra ponta as válvulas de admissão do cabeçote pudessem ajudar a controlar essa carga atrasando ou adiantando a sua abertura de forma continuamente variável. Isso é uma das coisas que o sistema MultiAir III permite: adiciona mais um recurso de controle da razão de compressão dinâmica, permitindo que o motor explore ainda mais os mapas de injeção, ignição e pressão de turbina com menor risco de pré-detonação. Num país com tanto combustível ruim e bom em cada posto de gasolina, isso faz uma grande diferença no rendimento. E sem dúvida, custará muitas noites mal dormidas à equipe de engenharia responsável pelos mapas.

Mas estamos olhando apenas uma ponta do fluxo, a rota do ar admitido até chegar à câmara de combustão. Quando olhamos para o que acontece dentro do cilindro, o sistema MultiAir traz vantagens ainda maiores. Permite a redução das perdas energéticas por bombeamento, especialmente em rotações baixas e em baixa carga, como na marcha lenta ou com pouca abertura de borboleta. Neste cenário, o MultiAir deixa o ciclo de expansão mais longo: a abertura das válvulas de admissão é adiantada para aproveitar os gases recirculantes refrigerados pelo intercooler (C-EGR) e o seu fechamento é atrasado para reduzir a resistência à compressão no início do ciclo, duas fontes típicas de perdas de bombeamento em baixa carga. Na prática, o motor trabalha num ciclo Miller (saiba mais nesta reportagem) temporário, induzido pela alteração da rotina das válvulas de admissão. No cenário oposto, em carga plena de acelerador, as válvulas de admissão são fechadas tardiamente, aumentando o tempo de cruzamento (o overlap, entenda mais nesta reportagem técnica) como um motor mais bravo, aprimorando o escoamento para as válvulas de escape, buscando máximo rendimento de potência.

Como o sistema MultiAir funciona? Em vez de uma interação 100% mecânica entre o comando e as válvulas, no MultiAir os cames do comando de válvulas de admissão (1) interagem com um sistema eletrohidráulico – basicamente uma câmara (2) que pode aumentar ou reduzir a sua pressão por meio de uma solenoide (3) e, com isso, variar o levante e a duração das válvulas de admissão (4) de forma quase infinita. Esse controle acontece a cada ciclo de combustão, então é algo muito veloz e preciso. É como se fosse um VTEC com muitos esteroides.

De todos os motores downsized disponíveis na indústria brasileira hoje, é bem possível que a FCA chegue ao melhor controle da razão de compressão dinâmica e que tenha o motor a combustão com a maior quantidade de recursos para se explorar ao máximo o etanol. É um fato que eles serão os últimos a chegar na festa, especialmente no Brasil. E outro fato é que a concorrência não está parada: lá fora, a Volkswagen já utiliza a nova geração dos motores TSi e é bastante plausível que ela chegue por aqui. Trata-se do 1.5 TSi Evo, que incorpora turbina de geometria variável, desativação temporária de cilindros – mas que opera em ciclo Miller de forma permanente por não ter sistema similar ao Multiair no acionamento das válvulas, o que é uma desvantagem em regimes de carga média e plena. E esta tecnologia é patenteada e a Fiat Powertrain Technologies não exatamente está a distribuindo por aí como canapés: a única empresa fora do grupo que utiliza este recurso é o motor Ingenium 4 cilindros, da Jaguar-Land Rover.

Obviamente é cedo para dizer que o TSi foi derrotado: apenas os testes empíricos e questões de custo de manutenção e durabilidade irão poder apontar. A única certeza: a briga vai ser muito boa e é bacana ver a Fiat de volta aos dias dos motores turbinados, como a tradição manda.