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Car Culture

Na pista com o Sandero RS em um projeto secreto da Renaultsport

No início de 2019 o Renault Sandero RS ainda nem havia reestilizado o modelo, e tinha planos para o seu futuro. Dizem que até mesmo uma versão de alto desempenho foi cogitada nos corredores da Renaultsport, mas acabou cancelada antes mesmo de sair do papel.

Nessa época, um time de engenharia da própria Renaultsport, na França, começou um outro projeto paralelo que consistiu na aquisição de dados do Sandero RS sob uso severo em pista.

O projeto acabou envolvendo um outro grupo de entusiastas, agora na Renault do Brasil, que teve a árdua missão de usar e abusar de um pobre Sandero RS Racing Spirit em track days — três em Interlagos, um no extinto AIC e outro no Circuito dos Cristais, em Curvelo/MG – para colaborar no projeto dos franceses. O processo teve até mesmo a ajuda de ninguém menos que Maurizio Sandro Sala, piloto brasileiro que guiou praticamente todos os carros mais importantes do Grupo C (Porsche 962C, Mazda 787B, Nissan R89C) e do GT (McLaren F1 GTR) em suas seis participações nas 24 horas de Le Mans. 

Infelizmente, jamais saberemos para qual finalidade estes dados seriam usados, mas veremos como este projeto secreto aconteceu a seguir, narrado pelos brasileiros que participaram dela, por meio das palavras do Max Loeffler, o responsável por executar o projeto no Brasil. – Leo Contesini


 

O projeto secreto da Renaultsport

Por Max Loeffler

Era janeiro de 2019 quando recebi um e-mail do chefe de engenharia do Sandero RS da Renault Sport França. O e-mail falava da necessidade de aquisitar (coletar) dados de usuários comuns do Sandero RS nos autódromos de Interlagos e do extinto AIC e me pedia ajuda com informações sobre datas de track day nestes dois circuitos.

Eu, na época, tinha acabado de me mudar pra São Paulo e trabalhava no Departamento de Design da Renault. Mas por que diabos a Renault Sport me procuraria com um pedido destes? Com tantos engenheiros na Renault pode parecer curioso este pedido a alguém do Design. Para explicar isso, vou retornar ao ano de 2014.

Antes do lançamento do Sandero RS, lá no longínquo 2014, fiz meu primeiro contato com uma parte da equipe da Renault Sport, o chefe de engenharia Herve Maillet e o engenheiro de equipamentos Eric Sueur. Durante as fases de desenvolvimento, todas as peças exclusivas do Sandero RS passaram pelas validações industriais Design, atestando conformidade de shape, de cor, de textura e de harmonia. Por conta disso, nasceu este primeiro contato com pessoas da Renault Sport que vieram ao Brasil para, entre outras coisas, conseguir estas validações Design.

Alguns anos depois, por ocasião da série limitada Racing Spirit, fui procurado novamente pela equipe RS para organizarmos uma nova sessão de validações Design. Foi quando recebemos novamente o time da Renault Sport no Brasil. Nesta segunda vez, porém, tomei a iniciativa de propor um happy-hour a eles, caso tivessem alguma noite disponível na agenda, e comentei que gostaria de mostrar alguns Renault de amigos, vários Clio com swap F4R, alguns um verdadeiro tributo aos Clio Sport europeus. Para minha sorte, eles aceitaram o convite!

Fizemos então um happy-hour na lanchonete Kharina do Capanema (em Curitiba/PR), um lugar com boas opções de cardápio e um estacionamento aberto e visível de dentro da lanchonete. Um lugar para entusiastas.

Contei com a presença de vários amigos, Purim, Medvid, Edu, Maia, Marchiori, Preiss e até a presença ilustre do meu amigo internacional José Mendes, vulgo Juzekinha, que era Chefe de Projeto Design do Sandero RS e veio de São Paulo para estreitar laços com o time da Renault Sport, Eric e Herve.

Da esquerda para a direita: Bruno Purim, eu Max, Eric Sueur, Jose Mendes, Thiago Medvid, Marcio Maia, Marcelo Marchiori, Herve Maillet, Eduardo Siqueira e Marcelo Preiss

No estacionamento, vários Clio F4R além do meu patinho feio no encontro, o Gol 1000 “meio besta”, the half devil, o PC#333 aqui do Flatout. Todos os carros foram apresentados à dupla, sem exceção, com direito à abertura de capô e um resumo do que eram os carros. Neste dia, dentre as perguntas, descobriram que nós gostávamos e participávamos de track days por aqui.

Foto meramente ilustrativa

Em 2017, em uma ida para a França a trabalho, por conta de um seminário, entrei em contato com o Herve e consegui uma visita ao Atelier da Renault Sport em um dia de agenda livre. Fomos muito bem recepcionados pelo time, visitamos todo o departamento de engenharia, almoçamos juntos e, de sobremesa, andamos no Megane RS 280 que recém havia sido lançado!

Nesta visita ficou claro que os caras têm gasolina nas veias, são entusiastas, adoram o que fazem! E ficou bem claro também que são apaixonados pelo Sandero RS! O setup dinâmico do Sandero RS foi realizado foi lá, pela mesma equipe que desenvolveu o Megane RS. Pude também conhecer pessoalmente o Laurent, piloto que bateu o recorde em Nurburgring.

E foi esta proximidade, então, o provável motivo de eu ter sido procurado para fornecer as informações sobre os próximos trackdays que ocorreriam em Interlagos e no AIC no primeiro semestre de 2019.

Voltando a 2019, respondi ao e-mail com as datas dos track days mais próximos, tanto em Interlagos como no AIC, pois o objetivo era adquirir o máximo possível de dados no primeiro semestre. Pronto, tinha feito o dever de casa. Ao menos é o que eu pensava.

Veio então um segundo e-mail e, desta vez, com algumas pessoas em cópia e com um convite pra uma reunião online. Na reunião entendi que o pedido tinha virado um projeto com reuniões semanais de seguimento.

Já no primeiro contato me explicaram a idéia da aquisição. Seriam aquisições em uso diário, trânsito pesado, se possível, e o máximo de aquisições possíveis em track day em Interlagos e no AIC, circuitos de referência no desenvolvimento do RS.

 

Jeitinho brasileiro

A estratégia inicial seria o envio da França de três ou quatro data-loggers com os softwares de aquisição configurados, mas já neste pedido inicial surgiu o primeiro problema: o track day mais próximo já seria no início de fevereiro e nós estávamos praticamente no meio de janeiro. Existia o risco de atraso, extravio e mesmo bloqueio dos equipamentos na aduana, o que comprometeria todo o planejamento.

Com base nisso, pedi uma semana para a equipe, enquanto procurei o que seria possível agilizar pelo Brasil mesmo. Entrei em contato, mais uma vez, com meu querido amigo e comparsa Márcio Maia, expliquei sobre o projeto e perguntei se eles não teriam disponíveis os data-loggers dos modelos usados pela Renault. Pronto, o Maia já estava também embarcado no projeto.

Na reunião seguinte, confrontamos nossos data-loggers com os deles, através do modelo e de fotos e constatamos que tínhamos os mesmos equipamentos. Em seguida fizemos um teste de aquisição com a “dona” dos data-loggers usando o software que a França forneceu e, voilà: tínhamos três data-loggers aptos para coletar os dados já aqui no Brasil. Apareceu, então, um pedido da Renault Sport para que as sessões de aquisição tivessem ao menos 20 minutos cada uma e em uso severo. Isto me deixou com uma pulga atrás da orelha.

Pedir para usuários comuns para adquirir os dados, talvez fosse fácil. Pedir para usuários para coletar dados em sessões de 20 minutos de uso severo, por outro lado, era arriscado. Poderíamos ter alguma resistência dos proprietários. Com isso em mente, procurei o departamento de comunicação da Renault para viabilizar o empréstimo de algum RS da frota. Expliquei o intuito do projeto e para minha sorte, a Renault tinha acabado de descontinuar a série Racing Spirit, o que os impossibilitava de emprestar estes carros para jornalistas.

Sendo assim, consegui um Sandero RS Racing Spirit por um período de três meses com seus pouco mais de 4.000km no hodômetro, uma semana antes do primeiro Track Day. Neste tempo, passei a usar o carro para aquisição cotidiana e tinha um carro para garantir que teríamos ao menos sessões de 20 minutos em uso severo!

Mas aí surgiram outras dúvidas. Eu era totalmente inexperiente em Interlagos. Apesar de conhecer o traçado pelos video-games, nunca tinha andado lá e a realidade tende a ser bem diferente com todo o relevo da pista. Além disso, o Sandero RS era um carro novo pra mim. Uma semana no trânsito do dia-a-dia em São Paulo não era tempo nem local para me aclimatar aos limites do carro.

Pedi ajuda então ao meu irmão Gus Loeffler (que vocês conhecem do Mothafocus e do Passat GTS), que teve a idéia de convidar ninguém menos do que Maurizio Sandro Sala para pilotar nosso Sandero! Maurizio Sala não só aceitou o convite como também se dispôs a me dar uma aula grátis sobre Interlagos! Uma sorte para poucos.

Maurizio Sala e Gus Loeffler

Com isso, partimos para o primeiro track day de aquisições no dia 24 de fevereiro de 2019, organizado pela TRS Racing Team. Nossa bateria seria de duas horas, uma das últimas do dia, logo depois dos Opalas.

Acontece que era um dia de pista cheia, com carros de várias categorias, Opalas, acidente na pista, óleo na pista, tudo atrasou. E nossa bateria não poderia acompanhar o atraso por conta do horário limite do autódromo. Resumo: nossa bateria de duas horas foi reduzida para uma hora.

Então dividimos nossa hora de bateria em seis partes. A primeira e maior parte, tocada pelo Maurizio Sala; a segunda ainda tocada pelo Sala mas comigo de carona; a terceira invertida, comigo dirigindo e com o Sala de carona me dando tapa na mão; a quarta comigo sozinho, a quinta com o Gus sozinho e a sexta com o Maia sozinho. Em resumo, o Maia praticamente não andou, fechou acho que duas voltas somente. E de certa forma, eu também não. No trecho em que fui sozinho eu errei marcha já na segunda volta na hora de colocar sexta. O carro entrou em modo de segurança e fui até os boxes, depois seguiu com o Gus.

Em ordem de altura: Marcio Maia, Gus “Augusto” Loeffler, Maurizio Sala e Max Loeffler

Apesar de um dia um pouco frustrante, conseguimos adquirir não só os dados do nosso carro, como também do carro de mais duas pessoas. E nenhum dono de RS se recusou a fazer sessões de 20 minutos!

No fim do dia, o uso mais severo constatado entre nosso carro, com vários pilotos, e os outros carros envolvidos, acabou sendo na sessão com Maurizio Sala. Descobrimos ao final de todas as aquisições (3x em Interlagos, 1x no AIC e 1x em Curvelo) que foi a tocada “suave” do mestre Sala que mais exigiu do carro em térmica. Apesar disso e de ter dado somente duas voltas completas, o melhor tempo do carro neste dia ficou com o mestre Maia em 2:15:562.

Veio então o segundo track-day, desta vez um endurance de quatro horas de pista e 74 voltas em Interlagos, numa quarta-feira de cinzas em 6 de março de 2019! Desta vez organizado pela Crazy for Auto, nosso Sandero foi simplesmente o carro que mais voltas fez neste track day!

Pra quem duvidava da capacidade deste carro, eu confirmo: é um monstro! Em nenhum momento o carro arregou, não superaqueceu, os freios não apresentaram fading em nenhum momento, mesmo considerando as freadas de final de reta “um pouquinho pra lá” da placa dos 50 metros, vindo lacrando de quinta a 180 km/h!

Em relação a consumo, cada tanque durou em média, 25 voltas. Lembro que o carro foi pra pista 100% stock, nada de mapa modificado nem geometria realizada, rodamos com o carro exatamente como recebido pela Renault.

Nesta bateria de quatro horas, desta vez só comigo e com o Gus, nos organizamos da seguinte forma: eu entrava em pista de tanque cheio e entregava o carro para o Gus com meio tanque para que ele o finalizasse.

Reabastecíamos, sempre com álcool, e voltávamos para um novo ciclo. Em quatro horas de endurance, consumimos três tanques cheios de álcool. Só não andamos mais pois o reabastecimento, feito por gravidade e fora dos boxes, tomava bons quinze ou vinte minutos em cada parada. O melhor tempo do carro ficou com o Gus, na volta 48/74 do carro, de 2:11:979! Minha melhor volta ficou em 2:12:036 na volta 10/74 do carro! Isso mostra como é rápido ganhar confiança no RS, tal o carro é na mão!

Partimos então para o terceiro track day, em Curitiba, no hoje extinto AIC, organizado pelo Friends Track Day. Antes da viagem, uma revisão nos freios e uma necessária troca de pastilhas, para aguentar um novo track-day. Afinal, as pastilhas originais duraram quase 100 voltas em Interlagos e mais o que já havia rodado (e continuava rodando) em circuito urbano.

Logo saindo de São Paulo, com o Gus ao volante, percebemos o quanto o carro estava “solto”, reativo ao pedal do acelerador! Em marchas mais pesadas, quarta e quinta, a sensação era de que estávamos em uma marcha mais baixa, tal a força com que o carro respondia. Certamente as duas sessões em Interlagos deram uma boa descarbonizada no coração do Sandero!

Chegamos então ao AIC para mais uma sessão de tortura ao RS, desta vez no dia 14 de abril de 2019. Nos organizamos inicialmente da mesma forma que fizemos em Interlagos; eu entrava em pista com o tanque cheio e largava o carro com meio tanque que era finalizado com o Gus. Acabamos não seguindo com o endurance pois choveu e não faria mais sentido a aquisição que era de “uso severo” além do risco maior de algum acidente.

Apesar de já conhecer o AIC, era hora de tentar entender os limites do carro naquela pista. Uma das curvas mais críticas no AIC sempre foi o S de alta. Nas primeiras voltas estava entrando de quarta marcha quase em limite de giro e isto deixava o carro um pouco arisco, ainda tentando me entender com ele. Passei a tentar então de quinta com meio acelerador mas já na volta seguinte estava fazendo de quinta com cano cheio!

Nesta primeira sessão e com a calibragem que estávamos usando, consegui andar melhor que o Gus. Finda a primeira sessão, tanque cheio novamente, a situação se inverteu com o Gus fazendo a melhor volta em 1:47:518. Foi o melhor tempo entre os Sandero RS original e outros nem tanto, e o terceiro melhor Sandero RS na pista! Os dois primeiros, nada inocentes!

No AIC, assim como em Interlagos, o carro fechava a reta cortando de quinta marcha! Isso faz muito sentido quando se sabe que estes dois autódromos foram referência para o desenvolvimento desta versão.

O retorno para São Paulo foi feito pelo Gus sozinho, eu acabei passando mais uns dias em Curitiba. Logo que retornou, ele partiu para o quarto e último track day com o RS, já no dia 19 de abril de 2019, na terceira etapa do Campeonato Paulista de Automobilismo! O Gus ainda não sabia, mas ele já estava sofrendo com sintomas da dengue no dia do track day. Apesar da condição adversa de saúde, Gus ainda conseguiu baixar mais um pouco a melhor volta dele (e do carro) em Interlagos para 2:11:874. Nada mau para um carro stock!

Em paralelo a estas aquisições, fizemos outra especial em Curvelo/MG com o mestre Marcio Maia na pilotagem, mas com outro RS! Infelizmente não tenho os dados de pista para compartilhar.

Ao fim de toda essa aventura, a sensação de dever cumprido. Todas as aquisições feitas, não só pelo “nosso” RS mas por tantos outros que colaboraram permitindo que instalássemos os data loggers em seus carros.

Aqui, um agradecimento especial a: Fabio Souza (SP), Rafael Rabitz (CWB), Luis Afonso Sequinel (CWB), Leonardo Barreto (CWB), por colaborarem com as aquisições, além obviamente do mestre Maurizio Sala, Marcio Maia, Gus o galã e à Glenda e ao Caique da comunicação da Renault pelo empréstimo do carro.

O que posso dizer sobre o carro? Que sentiremos saudades do último esportivo “pequeno” de motor grande atmosférico e manual. Provavelmente o último no mundo, o fim de uma espécie. Um carro valente que serve perfeitamente para o uso cotidiano e te permite ir para um track day, onde quer que ele seja, se divertir e voltar rodando. Ainda não sabemos apreciar corretamente este carro, desdenhado por muitos e amado pelos poucos sortudos que o conseguiram comprar. O time de desenvolvimento da Renault Sport na França é apaixonada pelo carro! O tempo ainda há de colocá-lo no lugar certo da história…