Enzo Ferrari e Ferruccio Lamborghini protagonizaram um dos diálogos (ou quase isso) mais famosos da indústria automotiva em todos os tempos — ou ao menos é o que o imaginário popular conta: Ferruccio, dono de uma grande fábrica de tratores que levava seu sobrenome, foi reclamar pessoalmente com Enzo Ferrari a respeito de um defeito na embreagem de sua 250 GT. Enzo teria dito que “não tinha tempo para um fabricante de tratores” e dispensou Lamborghini.
O desenrolar da história é folclórico: Ferruccio decidiu que não havia nada que a Ferrari fizesse que a Lamborghini não pudesse fazer melhor — e isto incluía, claro, superesportivos. A Lamborghini iria fabricar automóveis.
Mas esta decisão repentina e certeira só foi possível porque Lamborghini havia constituído um pequeno império dos tratores ao longo da década de 1950, e isto não é exatamente surpreendente: ele cresceu em uma fazenda e, muito jovem, viu que poderia transformar em dinheiro os restos dos veículos militares que haviam sobrado da Segunda Guerra. Como? Os usando para construir tratores.
A região noroeste da Itália estava se recuperando dos impactos da guerra com base na agricultura — e tratores eram fundamentais. Os tratores de Ferruccio Lamborghini venderam tanto que deixaram de ser feitos em um celeiro na fazenda e foram para uma fábrica nova. Foi fundada a Lamborghini Trattori SpA, em 1949. Ao longo de nove anos, a produção passou de um trator por dia em 1949 a 1.500 tratores por ano em 1958.
A esta altura, os tratores Lamborghini eram considerados os melhores — a ponto de Ferruccio organizar torneios de tratores que envolviam corridas e outras provas, só para mostrar que seus tratores eram os mais potentes. O sucesso continuou e, em 1969, a produção de tratores Lamborghini passava de 5.000 unidades por ano e a companhia era a terceira no ranking de vendas de tratores. Contudo, em 1972 um cliente cancelou um pedido gigantesco — o que destruiu a auto-estima de Ferruccio e o fez vender a empresa. Contudo, os novos donos continuaram usando o nome Lamborghini Trattori.
O grupo italiano Same Co. foi quem comprou a Lamborghini Trattori — hoje seu nome é Same Deutz-Fahr, mas a produção de tratores Lamborghini continua — e você pode até olhar a linha 2014 aqui.
Mas, como o título deste post já deixa bem claro, a Lamborghini não foi a única fabricante de automóveis que já produziu tratores. Outras companhias, muitas delas responsáveis por carros que habitam nossos sonhos, também se envolveram com máquinas agrícolas. Vamos falar de algumas delas a seguir.
Alfa Romeo
Você e eu — todos nós, na verdade — enxergamos a Alfa Romeo como a mais pura expressão do espírito entusiasta italiano, cuore sportivo e tudo o mais. Mas o pouca gente sabe é que a Alfa Romeo também tem seu nome estampado em tratores. Tudo começou em 1918 — fazia três anos que Nicola Romeo havia assumido a direção da Anonima Lombarda Fabbrica Automobili, ou simplesmente A.L.F.A., e ele viu na mecanização da agricultura que seguiu o fim da Primeira Guerra uma oportunidade de expandir sua atuação entrando em um mercado em plena expansão: o dos tratores.
Sentimos que esta foto vai gerar algumas piadas infames… só não sabemos direito o porquê (mentira, sabemos sim)
A maioria das fabricantes de tratores italianas usava projetos estrangeiros sob licença e com a Alfa Romeo não foi diferente: seu trator era uma cópia licenciada do trator Titan, da americana International Harvester. A companhia ainda não se chamava Alfa Romeo — a mudança de nome só aconteceu em 1920 —, mas o trator A.L.F.A. Romeo está perto o bastante, não?
Fiat
A Fiat, que já tem uma tradição em esportivos turbinados no Brasil — Uno, Tempra e Marea Turbo e, atualmente, a linha T-Jet — também apostou nos tratores em 1918, lançando o Fiat 702 com seu motor de 30 cv. As boas vendas estimularam a marca a criar a divisão Fiat Trattori SpA em 1919 que, dez anos depois, já fabricava 2.000 tratores por ano.
Em 1932 foi lançado o Fiat 700C, primeiro trator com lagartas comercializado na Europa. Na década de 70, o número de tratores Fiat produzidos chegou a 100.000, e a produção seguiu até 1993.
Ford
Acredite: a Ford foi uma das primeiras marcas de automóveis do mundo a fabricar tratores, começando em 1907 com o primeiro protótipo de um trator movido a gasolina produzido em massa. Ele se tornou realidade dez anos depois, produzido pela então recém criada divisão agrícola Henry Ford & Son Company e rebatizado de Fordson Model F. Com o passar das décadas a Ford se tornou uma força dominante entre as fabricantes de tratores e, na década de 1980, já havia introduzido diversas inovações às máquinas agrícolas nos EUA, como motores a diesel, pneus de borracha e sistemas hidráulicos nos freios e direção.
Na verdade a linhagem de tratores Ford continua — em 1986, a divisão de tratores incorporou a tradicional fabricante de tratores New Holland, fundada em 1895, tornando-se Ford New Holland que, em 1991, foi adquirida pela Fiat. Dois anos depois, a Fiat deixou de usar seu nome na divisão de tratores, que voltou a ser apenas New Holland — como é até hoje.
Mitsubishi
A Mitsubishi atua em vários segmentos da indústria desde que foi fundada, em 1870, como uma transportadora marítima. Nos anos seguintes alguns ramos explorados foram a fabricação de papel, mineração, bancos, energia nuclear, imóveis, eletrônicos e, claro, automóveis.
Em 1970 a divisão automotiva tornou-se uma companhia independente, a Mitsubishi Motors e, em 1980, a Mitsubishi Agricultural Machinery Co., Ltd. nasceu da fusão da Mitsubishi Machinery Co., Ltd. e da Satoh Agricultural Machinery Mfg. Co., Ltd., fundada em 1914. Há uma razão para você nunca ter visto um trator Mitsubishi aqui no Brasil: eles são distribuídos para a Ásia, Europa, Austrália e EUA — basicamente no mundo todo, menos na América do Sul.
O que nos faz crer que a probabilidade de vermos um trator com motor de Lancer Evo X seja ainda menor por aqui…
Porsche
O Dr. Ferdinand Porsche é o pai do Fusca, avô do 356 e bisavô do 911, e disso quase todo entusiasta sabe. Contudo, o que poucos sabem é que, paralelamente ao desenvolvimento do primeiro Volkswagen, o “carro do povo”, Porsche também trabalhou no “trator do povo” nos anos 30, e tinha três protótipos prontos em 1934. Todos eles tinham motores a gasolinas, mas quase imediatamente o Dr. Ferdinand começou a testar motores a diesel.
Durante a Segunda Guerra o projeto, quase pronto, foi engavetado. Só saiu do papel em 1950, quando a Porsche decidiu que seria lucrativo entrar no ramo de tratores — mais ou menos como aconteceu no fim da Primeira Guerra. Mas, em vez de começar a fabricar máquinas agrícolas, a Porsche licenciou a produção a duas empresas: a alemã Allgaier GmbH e a austríaca Hofherr. Ambas venderam tratores chamados Allgaier System Porsche e Hofherr System Porsche, respectivamente, equipados com motores a diesel de um a quatro cilindros.
A Hofherr não durou muito tempo, mas a Allgaier passou para as mãos da Mannesmann AG em 1956 — empresa que passou a usar o nome Porsche-Diesel para comercializar os tratores. O resultado foi um bom aumento nas vendas e na popularidade dos tratores, que foram produzidos até 1963, com mais de 30 mil tratores fabricados.