Se você tem entre 25 e 30 anos de idade, era criança ou adolescente na década de 1990 e é bem provável que seu gosto por carros tenha se moldado naquela época. Se você é mais velho, lembra dos automóveis e conceitos que começaram a ser lançados nos anos 90 como prenúncios de um futuro mais eletrônico, automático, eletrificado e híbrido –mas também lembra que eles eram bem diferentes do que temos hoje. Quer ver só?
Por sorte, na década de 1990 muitas famílias brasileiras compraram videocassetes (eu era muito pequeno para lembrar, mas meu pai conta que fez um consórcio para comprar o videocassete Sharp) e aproveitaram para gravar muita coisa. Assim, qualquer sapeada no YouTube rende uma trip de nostalgia das boas. Você vai achar comerciais antigos, programas de TV dos quais só tinha uma vaga lembrança e clipes musicais do Nirvana, do No Doubt e do Faith no More gravados da MTV. Para os entusiastas, há outra coisa bacana: vídeos de edições passadas do Salão do Automóvel de São Paulo.
Separamos alguns deles neste post – mais especificamente, do Salão do Automóvel de 1994. Foi a 18ª edição, que reuniu 360 expositores no Pavilhão do Anhembi, entre importadores de automóveis (28 empresas diferentes) e fabricantes instaladas por aqui (12, no total). Ao todo, quase 600 mil pessoas forma conferir as novidades. E havia muito o que ver: cerca de 50% da área do Pavilhão do Anhembi foi tomado por carros importados.
Não era para menos: realizado em outubro e novembro daquele ano, o Salão de 1994 foi o primeiro realizado após a implementação do Plano Real, que previa um controle cambial que tornou a nova moeda ligeiramente mais valorizada que o dólar — sim, o dólar em 1994 custava R$ 0,83, o que significa que um carro de US$ 100.000 saía por R$ 83.000. Não era um cenário realista, mas foi a verdadeira abertura das fronteiras brasileiras para os importados (e não apenas os carros, mas também computadores e outros produtos eletrônicos e até roupas).
A edição de 1994 do “quarto maior evento automotivo do mundo depois de Frankfurt, Paris e Tóquio”, de acordo com esta reportagem da Band (que ignorou Detroit e Genebra…), por exemplo, trouxe o conceito Ford Mustang Mach III, que dava uma das primeiras pistas sobre como seria o Mustang de quarta geração, direto do Salão de Los Angeles do ano anterior.
Aliás, foi naquele ano que a quarta geração do Mustang apareceu pela primeira vez no Brasil:
O Salão de 1994 também contou com a presença do Mercedes-Benz Studie A, conceito que deu origem à primeira geração do Classe A, mas ainda trazia linhas bem diferentes das que estrearam em 1997.
Naquele ano, também foi apresentado o Corsa GSi, com motor 1.6 16v vindo da Hungria, que completava a linha do “Kinder Ovo” da Chevrolet. Aliás, 1994 foi o ano que o famoso ovinho de chocolate chegou ao Brasil, daí a associação entre ambos.
Lembre-se que quando o Corsa chegou, seus rivais eram o Gol “quadrado” (ou “caixa”) e o Fiat Uno. O GSi era uma resposta da Chevrolet ao Gol GTi e ao Fiat Uno Turbo, lançado naquele ano, e completava a linha GSi, formada pelo Vectra GSi no topo e pelo Kadett GSi na intermediária.
No mesmo Salão, o conceito Audi Avus era um prenúncio do que viriam a se tornar o Audi R8 e o Bugatti Veyron dez anos depois, como comentamos neste post:
A Bugatti, por sua vez, ainda não tinha nada a ver com o grupo Volkskwagen, e trouxe ao Brasil o antecessor do Veyron, o EB110, que acabou arrematado por Alcides Diniz e hoje foi transformado em um modelo SS com pintura azul.
Em outro canto do Salão, a Jaguar mostrava seu superesportivo para brigar com o McLaren F1: o XJ220 e seu motor V6 biturbo emprestado do Grupo B de rali. Na época, além de ser o carro mais caro da exposição, ele também era o carro produzido em série mais veloz do mundo, com direito a certificação do Guinness Book daquele ano.
Este outro vídeo mostra que a Ferrari ainda estava atualizando a Testarossa (a Ferrari 512 M é uma reestilização da Testarossa, lançada dez anos antes, em 1984), e também o Jaguar XJ220. A 512M custava R$ 300.000, que equivalem a mais ou menos R$ 1.500.000 em dinheiro de hoje.
No entanto, a parte mais bacana é o registro da chegada dos primeiros importados mais acessíveis, como o Lada Laika (que foi um dos primeiros carros importados para o Brasil depois de 1990 e aparece aqui com um curioso para-choques mais envolvente), o Ford Fiesta Mk3 vindo da Espanha; o Ford Mondeo e Chevrolet Astra trazidos da Bélgica, e o italiano Fiat Coupé.
Abaixo, outra reportagem mostra como a percepção que as pessoas tinham dos automóveis, especialmente os importados, era um tanto diferente do que se vê hoje. Em uma época com poucos computadores nas casas, quando não havia celulares, computadores e nem mesmo internet comercial (que só chegaria ao Brasil dali a seis meses), os carros recebiam uma atenção maior do grande público. Hoje em dia, há muito mais coisas com as quais os carros dividem o interesse das pessoas – especialmente gadgetes e tecnologia. Naquele tempo, os carros meio que eram os gadgets.
O cenário da época também permitia algumas ousadias locais, como demonstra o protótipo Nishimura Mariella, criado no Centro Universitário FEI, em São Bernardo do Campo. Ele tinha carroceria de Kevlar sobre uma estrutura de alumínio, silhueta de Dodge Viper, faróis e lanternas de Chevrolet Corsa e mecânica de Fiat Tempra Turbo, com direito ao painel de instrumentos do sedã.
O chassi de alumínio recebia o motor atrás do eixo dianteiro, em posição longitudinal, o que abria espaço para amortecedores dianteiros inboard para a suspensão independente, enquanto o câmbio era um transeixo, conectado por um tubo de torque ao motor. O Mariella, porém, jamais foi levado adiante justamente devido ao cenário que permitiu sua construção: o “barateamento” dos importados já havia inviabilizado a produção de carros brasileiros “fora de série”.
Nos anos seguintes o Brasil veria pela primeira vez seu mercado interno atualizado em relação ao mercado europeu e americano. Uma evolução muito bem-vinda depois de anos de atraso, e que começou pra valer naquele distante 1994. Mas isso é papo para outro post.