Já falei aqui no FlatOut sobre como, curiosamente, o Audi TT de primeira geração foi o carro que me fez gostar de carros. Sobre como seu design diferente de qualquer outro carro da época me fez enxergar os automóveis de outra forma – ver que, além de meios de transporte e máquinas, eles também podem ser ícones por seu aspecto mais fundamental: o design. As outras gerações mantiveram as qualidades da primeira, adicionaram potência e recursos, mas não conseguiram repetir o mesmo impacto da primeira no que diz respeito ao visual.
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Mas há outra coisa que faz do primeiro Audi TT um carro especial: ele foi o único que recebeu um motor V8 de 4,2 litros atrás dos bancos, em posição central-traseira – o que, de certa forma, faz dele um precursor do Audi R8.
O Audi TT original se valia de uma receita simples e eficaz: pegava a plataforma de um hatchback familiar e a transformava na base de algo mais exclusivo, de nicho. Assim, apesar das formas inovadoras, o layout mecânico não trazia revoluções: motor dianteiro, 1.8 turbo ou VR6 aspirado, e tração dianteira ou integral com Haldex. Qualquer coisa mais radical que isso, mais que deixá-lo mais caro e complexo, faria do TT um automóvel completamente diferente.
Mas, ao que parece, em 1998 a Audi estava mesmo disposta a usar o TT como base para um esportivo mais especializado – incluindo aí um motor V8 central-traseiro. Afinal, as proporções da bela carroceria criada pelo projetista Peter Schreyer já meio que sugeriam o motor atrás dos bancos. Capô curto, balanços quase inexistentes, entre-eixos longo em relação ao comprimento… não parece mesmo um mini supercarro?
Pois em 1998, quando o Audi TT foi lançado, o plano era ter três variantes – e não apenas o cupê e o roadster, como acabou sendo. A terceira seria justamente uma versão de motor central-traseiro, com produção limitada, criada como especial de homologação para as 24 Horas de Le Mans.
Parece viagem, mas é real. A ideia partiu de ninguém menos que o chefe de desenvolvimento da Audi na época, Ulrich Hackenberg. O projeto foi todo executado em segredo, e envolveu não apenas os engenheiros da Audi, mas também a Italdesign Giugiaro, que ficou responsável pelo desenho e pela construção do protótipo; e o piloto de testes Richard Lloyd, que atuou como consultor técnico para garantir a excelência dinâmica do projeto.
Detalhes técnicos sobre a transformação do Audi TT para esportivo de motor central-traseiro são poucos. Em essência, tudo o que se sabe sobre ele vem de uma matéria no site francês 4Legend, especializado na Audi e em outras marcas do grupo VW. Em uma das fotos, é possível ver o o conjunto mecânico sobre cavaletes:
Na dianteira, um radiador, o tanque de combustível e a suspensão, com direito a strut bar entre as torres dos amortecedores. Em frente ao eixo traseiro – que exibe orgulhosamente o sistema de suspensão por braços triangulares sobrepostos, o motor V8 de 4,2 litros e 32 válvulas, maior propulsor de que a Audi dispunha na época, usado em modelos como o o S4, o S6 e o A8. Segundo o 4Legend, o motor era acertado para render 300 cv a 6.000 rpm e 40,8 kgfm de torque. Para colocar em perspectiva, o Audi TT de primeira geração mais potente de todos era a versão com motor VR6 de 3,2 litros e 225 cv.
O mais intrigante: o motor era acoplado a uma caixa manual de seis marchas, e a tração era traseira – em um Audi dos anos 90!
A Italdesign Giugiaro ficou responsável pelo estilo do protótipo – que, apesar das entranhas de carro de competição e do caráter experimental, foi tratado como um carro completo desde o início, com acabamento caprichado, emblemas, pintura prata e todos os elementos necessários para rodar nas ruas: faróis, setas, lanternas e espaço para a placa. Mesmo que jamais tenha sido emplacado.
O que entregava a verdadeira natureza do carro eram as entradas de ar que alimentavam o coletor de admissão, uma em cada para-lama traseiro, logo à frente das caixas de roda. Mas olhos mais atentos também perceberiam que as janelas laterais traseiras davam lugar a outras duas entradas de ar, e que o capô abrigava uma saída logo acima do radiador, ajudando a extrair o ar aquecido da região.
Alguns elementos eram típicos de um carro de corrida, como os freios com discos de carbono-cerâmica, o próprio tanque de combustível selado e a strut bar na frente. E as imagens não mostram, mas o interior contava com dois bancos concha e cintos de competição.
O aspecto finalizado do protótipo indica que, em algum momento, a Audi planejava uma revelação à altura para o protótipo. Isso porque a ideia era utilizá-lo como especial de homologação para inscrever o TT na categoria GT2 das 24 Horas de Le Mans – um degrau abaixo da classe principal, onde corriam os herdeiros do Grupo C (como o Porsche 911 GT1, cuja origem remonta ao Porsche 962C) e superesportivos ultra-especializados, como o McLaren F1.
E por que não aconteceu? Ao que parece, nada teve a ver com a viabilidade de um Audi TT de motor central-traseiro, que teria ao menos 25 exemplares produzidos, mas sim com as próprias regras das 24 Horas de Le Mans. A partir de 1999, as categorias GT1 e GT2 deram lugar à LMGTP (Le Mans Grand Touring Prototype), que dispensava a necessidade de especiais de homologação e, consequentemente, dava às fabricantes e equipes mais liberdade na hora de desenvolver os carros de competição.
Resultado: sem a obrigatoriedade de vender carros para poder correr, a Audi cancelou sem cerimônia o TT de motor central-traseiro. Em seu lugar, a equipe liderada por Ulrich Hackenberg deu início à criação do Audi R8R, primeiro protótipo Le Mans moderno da marca das quatro argolas. Segundo fontes envolvidas no projeto e ouvidas pelo 4Legend, foi a melhor escolha – até por que, de acordo com o único teste em pista realizado pela Audi com o TT V8, ainda seria preciso melhorar bastante o projeto, especialmente a questão do arrefecimento do motor.
A história também se encarrega de mostrar que foi uma decisão acertada: já em 1999, o Audi R8R – cujo desenho, aliás, não esconde a influência do Audi TT – fez sua estreia nas 12 Horas de Sebring. No ano seguinte, além de vencer em Sebring, o R8R também conseguiu a primeira vitória da Audi em Le Mans. Vitória essa que foi seguida de outras dez, sendo oito delas em sequência (2000-2007).
Enquanto o Audi TT com motor V8 central traseiro foi levado ao depósito secreto da Audi em Ingolstadt, as vitórias da marca no circuito de La Sarthe ajudaram a amadurecer a ideia de um supercarro de motor central-traseiro: o Audi R8, que foi lançado em 2006 com duas opções de motor – um V10 de 5,2 litros emprestado da Lamborghini, e um V8 de 4,2 litros. Então, sim: o Audi TT com motor V8 que foi feito em 1998 pode ser encarado como precursor do R8.
Fotos: 4legend.com