Todo mundo conhece Ford vs. Ferrari — nós contamos a história real aqui, depois o filme mostrou uma ótima versão romantizada no cinema, mas o resumo é o seguinte: Henry Ford II tentou comprar a Ferrari em 1963, Enzo Ferrari chamou os carros da Ford de porcarias feitas em uma fábrica feia, e Henry ficou tão puto que gastou milhões de dólares para construir o GT40 e humilhar os italianos em Le Mans, uma vingança servida gelada, em quatro atos.
Mas essa história tem um prólogo que quase ninguém conhece. E ele quase mudou tudo.
Aquela certa obsessão de Henry Ford II por esportivos italianos não começou em 1963. Ela começou no início dos anos 1950, quando Ford percebeu que os esportivos europeus se tornaram um nicho popular nos EUA. Os soldados que voltavam da Europa depois da Segunda Guerra, vinham com o paladar viciado nos esportivos leves e ágeis do Velho Mundo, como os MG, os Jaguar e os Alfa Romeo.
Parecia uma moda passageira até que a Nash lançou, em 1950, o Nash-Healey, tornando-se a primeira fabricante americana a oferecer um “roadster europeu”. Henry Ford precisava de uma resposta — ele já tinha os hot rodders com seu flathead, mas aquilo não seria suficiente para este novo tipo de público. Felizmente, ele sabia onde encontrar a solução: na própria Europa.

Para entender esta solução, contudo, você precisa entender quem foi Edsel Ford, o pai de Henry II. Enquanto o velho Henry Ford era um puritano que achava que o Model T preto era tudo o que o mundo precisava, Edsel era um esteta. Ele amava o design europeu, a proporção, o equilíbrio. Não à toa ele tinha carros especiais, produzidos por encomenda para seu uso pessoal, como o Model 40 Roadster Special.

Edsel, contudo, nunca teve comando sobre a fábrica. Seu pai sempre o assombrou e o pressionou algo que, dizem, colaborou para que Edsel desenvolvesse um câncer estomacal que lhe tiraria a vida em 1943, aos 49 anos. Em vez de empossar Henry II como sucessor natural de Edsel, o velho Henry — já senil e paranóico — retomou o controle da empresa e quase a quebrou. Henry II só assumiu em 1945, dois anos depois, quando sua própria mãe, Eleanor, viúva de Edsel, ameaçou vender as ações da família. Henry II juntou seus amigos da força aérea e colocou cada um deles em cargos de liderança estratégica na empresa. Eram os Whiz Kids. Aos poucos, a Ford começou a escrever seus relatórios financeiros com tinta azul.
tiHenry II herdou o pulso firme do avô, mas o gosto refinado por carros de seu pai. Entre os vários carros que herdou e comprou para si, ele tinha um Cisitalia 202. O carro era um verdadeiro manifesto sobre rodas. Desenhado por Battista “Pinin” Farina, ele era tão revolucionário que o Museu de Arte Moderna de Nova York o chamou de “escultura em movimento” e o colocou em sua coleção permanente. Quando Ford entnedeu que precisaria de um esportivo europeu para aquele novo momento do mercado americano, ele sabia que encontraria o que precisava na Itália. Na Cisitalia.
Na época Cisitalia vivia o seu próprio drama operático. Piero Dusio era o típico industriário passional italiano: ex-jogador de futebol da Juventus, fez fortuna com tecidos na guerra e decidiu torrar cada centavo fazendo carros e disputando corridas. E ele não queria apenas ganhar as corridas: ele queria fazer isso reinventando o automóvel.
Foi por isso que ele contratou o escritório do Dr. Ing. Ferdinand Porsche para projetar o Tipo 360, um monoposto de Grand Prix com motor boxer central-traseiro, sobrealimentado, com tração nas quatro rodas. Nem a Auto Union havia feito algo parecido, na época.

Lógico que não foi barato e a conta desse tipo de excentricidade logo chegou para Dusio. Em 1950, com os credores loucos para pegá-lo, Dusio fugiu para a Argentina, deixando seu filho, Carlo Dusio, com o problema no colo para resolver. Carlo juntou o que sobrou da Cisitalia — uma boa reputação, engenheiros brilhantes como Giovanni Savonuzzi — e foi atrás do ingrediente principal para manter a marca viva, o dinheiro.
Ele encontrou logo no início do ano seguinte: Henry Ford II, precisando de um esportivo e entendendo que o Cisitalia 202 era o que havia de mais moderno em termos de automóvel esportivo, na época, foi até Paris negociar com Carlo o projeto de um GT italiano que usasse o máximo possível de componentes Ford. Nascia ali o projeto 808.



Aqui a gente entra na parte que a maioria dos historiadores ignora: a engenharia desse carro era primorosa. O engenheiro chefe, Giiovanni Savonuzzi não fez apenas um carro bonito. Ele projetou um chassi tubular em X com uma rigidez à torção que levaria décadas para ser vista em Detroit. Na traseira, em vez do eixo rígido típico dos carros americanos, o 808 recebeu um eixo De Dion — uma solução combinada ao diferencial da Lincoln para reduzir a massa não-suspensa e manter a geometria da suspensão em qualquer situação. Na frente. uma suspensão independente de braços assimétricos vinda da Mercury — de onde também veio o motor: um Flathead V8 de 4,2 litros com dois carburadores Holley e 120 cv. Para completar o conjunto e agradar o mercado americano, o câmbio era um Ford-O-Matic de três marchas.

O chassi em X e os componentes Ford, deram ao carro seu sobrenome: 808XF. Era o melhor dos dois mundos: um carro com o estilo e o comportamento de um esportivo italiano, com a facilidade de manutenção e confiabilidade da mecânica Ford, já muito popular entre preparadores e equipes de corrida.
O primeiro protótipo, construído pelo Studio Ghia e assinado por Aldo Brovarone, chegou aos EUA no final de 1952. Henry Ford II ficou estático. “É exatamente isso que eu quero”, ele disse. O carro era azul metálico, compacto e tinha uma elegância que faria o Corvette (que seria lançado em meses) parecer um brinquedo de fibra de vidro.

Mas a Ford não era gerida apenas por Henry II. Havia os “Whiz Kids” sua legião de contadores da escola de guerra. Eles não entendiam o lado passional da coisa. Eram pragmáticos ao extremo e, por isso, o 808XF soou a eles como um pesadelo logístico. Construção artesanal? Painéis de alumínio batidos à mão? Ajuste individual? Isso era exatamente o oposto do que tornara a Ford a segunda maior fabricante do planeta.
Por isso, o custo final estimado foi de US$ 7.500 (cerca de US$ 95.000 em valores atualizados), em um tempo no qual um Cadillac custava US$ 3.500 (US$ 45.000 em 2025). A Ford sequer tinha uma rede preparada para vender esse carro. O projeto morreu ali mesmo, quando a turma do departamento financeiro terminou a planilha. Foram feitos apenas dois exemplares: este cupê da Ghia, e um conversível feito pela Vignale.
A morte do 808XF criou um vácuo. A GM estava lançando o Corvette e a Ford precisava de um carro para conter a rival. A solução foi fazer um carro italiano à moda americana. Em 1953 a Ford promoveu um concurso de design que visava eleger seu roadster “europeu” feito nos EUA. O resultado foi o Ford Vega, que lembra muito um Jaguar XK120, e fez relativo sucesso com o público-alvo, mas acabou nunca produzido por ter um motor muito fraco — um Flathead 2.2 de apenas 60 cv.
Henry então olhou para sua Ferrari 212 Barchetta e decidiu que ela seria a inspiração para seu esportivo — aqui é claro que estou simplificando a história. Ele pediu aos designers da Ford que fizessem algo parecido, mas barato de fabricar nos EUA. Assim nasceu o Ford Thunderbird em 1955.
O carro foi um sucesso comercial, mas um fracasso conceitual. Ele era pesado, tinha rodagem macia e acerto de suspensão focada no conforto e não no comportamento dinâmico arisco. Vendeu muito, mas não supriu a necessidade da Ford em entregar um esportivo leve e ágil para concorrer com o Corvette e os europeus. O que nos leva de volta ao 808XF.
Se o 808XF tivesse sido aprovado em 1952, ela provavelmente não teria feito o T-Bird em 1955. E sem o T-Bird desviando do seu conceito inicial, talvez a Ford jamais fechasse um acordo com Carroll Shelby para fazer o Cobra. E certamente não procuraria a Ferrari em 1963 para tentar comprá-la, afinal, a Ford já teria a Cisitalia.

Quando 1963 chegou e Henry Ford II tentou comprar a Ferrari, ele o fez com um complexo de inferioridade. Ele queria comprar a “alma” que seus contadores o tinham proibido de construir em 1952. A fúria dele contra o Comendatore não foi apenas pelo negócio desfeito; foi também, de certa forma, um reconhecimento de que Enzo tinha tido a coragem de ser o que a Ford, por causa de seus números, não podia ser.
Todos os frutos desse período – o Cobra, o GT40, o Mustang e os Shelby — foram, de certa forma, uma espécie de exorcismo do fantasma do 808XF. Ou simplesmente foram Henry Ford II conformando-se com a sua realidade. A realidade na qual ele jamais poderia ser como aqueles italianos que admirava, e que teria que fazer aquele tipo de carro do jeito que sua realidade permitia. E olhando a história agora, depois de quase 80 anos, que bom que foi assim. O mundo ganhou carros incríveis e uma história fantástica, do tamanho da grandeza de seus protagonistas.

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