Se você é fã dos filmes do diretor Quentin Tarantino, já deve ter notado as várias conexões entre personagens e tramas e referências a outros clássicos do cinema e a seus próprios filmes.
Essa relação foi muito bem explicada no curta-metragem brasileiro “O Código Tarantino”, no qual dois caras em um bar (interpretados por Selton Mello e Seu Jorge), engatam um diálogo típico dos filmes do diretor americano, enquanto um deles explica que decifrou o suposto código de Tarantino – uma série de pistas que interligam os filmes entre si, como se fosse um grande roteiro dividido em várias partes independentes.
Segundo a teoria (que não foi inventada pelo curta brasileiro, é bom deixar claro), os filmes de Tarantino não usam datas, nem seguem uma linearidade cronológica, o que pode significar que os fatos não ocorreram na ordem em que são apresentados — dificultando a percepção de ligações ao longo dos filmes e entre os filmes.
Com base nisso, a teoria sugere que a maleta roubada em “Cães de Aluguel” (Reservoir Dogs,1992) é a mesma maleta que Vincent Vega e Jules Winnfield vão buscar no início de Pulp Fiction (1994). A teoria também diz que o Mr. Blonde do primeiro filme, é o irmão de Vincent Vega, uma vez que se chamava Vic Vega, e que a espada Hanzo de Beatrix Kiddo/A Noiva em “Kill Bill” (2000) é a mesma que Butch pega na loja de penhores para salvar Marsellus Wallace em “Pulp Fiction”.
As relações e pistas vão bem além disso mas este não é o foco aqui. Como um bom gearhead e apreciador dos filmes do diretor americano, notei que os carros também estabelecem uma certa relação entre os filmes — mantendo inclusive a coerência cronológica da teoria — e incluindo Jackie Brown, que foi deixado de fora da teoria original por ser apenas a adaptação de um livro.
Diferentemente da teoria do curta, que inclui os filmes com roteiro e produção e Tarantino como “Amor à Queima-Roupa” e “Assassinos por Natureza”, minha teoria inclui apenas filmes dirigidos por ele – incluindo o segmento em “Grande Hotel” (Four Rooms, 1995), que é formado por quatro partes dirigidas por diferentes diretores.
Nos filmes de Tarantino, o carro que mais vezes aparece não é o Chevy Nova, nem os Chevrolet Caprice da polícia, mas um Honda Civic branco da virada dos anos 1970 para os anos 1980. É bem provável que você nem lembre dele, mas o compacto japonês aparece em nada menos do que quatro filmes do diretor: Pulp Fiction, Grande Hotel, Jackie Brown e Kill Bill 2. E foi justamente ele que despertou minha atenção para essa conexão entre os filmes pelos carros.
A peça fundamental para conectar o Honda Civic entre os filmes está escondida no esquecido segmento “The Man From Hollywood” do filme “Grande Hotel” (Four Rooms, 1995). Nesta curta história três amigos estão bêbados em uma festa na cobertura do hotel: o diretor de cinema Chester Rush (Tarantino), Norman (Paul Calderón) e Leo (Bruce Willis).
No alto da bebedeira do réveillon, Chester aposta que Norman não consegue acender um isqueiro dez vezes seguidas. Se vencer a aposta, Norman leva o Chevelle 64 de Chester — um “lindo carro vermelho” segundo Leo. Se perder, terá que arrancar seu dedo mindinho com um cutelo. Norman se vê tentado a faturar o belo clássico, pois dirige “um Honda Civic branco que sua irmã lhe vendeu“.
Seria uma informação corriqueira se não fosse o fato de que um Honda Civic branco é o carro de Jackie Brown (Pam Grier), a protagonista do filme de mesmo nome (Jackie Brown, 1997). Depois de faturar o Mercedes SL do traficante Ordell Robbie (Samuel L. Jackson) ela certamente não precisa mais de seu velho Honda e pode muito bem tê-lo vendido ao seu irmão.
Em Pulp Fiction o Civic branco 1980 volta a aparecer, agora pertencedo a Fabienne (Maria de Medeiros), namorada de Butch (Bruce Willis), um lutador que trapaceia para fugir com o dinheiro dos mafiosos no segmento “The Golden Watch”.
Segundo a teoria dos fãs de Tarantino sobre o universo de seus filmes, este segmento se passa em um momento posterior aos demais filmes. Ao entrar em uma loja de penhores para fugir de Marsellus Wallace (Ving Rhames), Butch encontra uma espada Hanzo — supostamente a mesma encomendada por Beatrix Kiddo (Uma Thurman) em “Kill Bill”. E vejam só: o Civic também aparece em “Kill Bill 2”, discretamente parado no estacionamento de uma boate, sem indícios de quem seja seu dono.
Em “Pulp Fiction” o carro é destruído por Butch, antes de usar a espada na loja de penhores. Parece um forte indício de que “Kill Bill” se passa antes de “Pulp Fiction”, não?
Sendo assim, a cronologia proposta pelos teóricos do “Código Tarantino” e corroborada pelo pequeno Civic branco coloca “Kill Bill” antes de “Jackie Brown”, que é seguido por “Grand Hotel” e “Pulp Fiction”. O carro pertence a um proprietário desconhecido no primeiro — que pode ou não ser Jackie Brown, que o vende para o irmão Norman, antes de passar a Fabienne e ser destruído por Butch. Faz sentido pra você?
E o tal Chevelle conversível 1964 da aposta no “Grand Hotel”? Bem, desculpem contar o final de “Grande Hotel”, mas Norman não ganhou a aposta e, de alguma forma, o Chevy vai parar nas mãos de Vincent Vega (John Travolta) em “Pulp Fiction”, que usa o carro para levar Mia Wallace (Uma Thurman) a um jantar no Jackrabbitt Slim’s e depois acaba destruindo o conversível ao bater contra a casa de seu fornecedor de drogas quando Mia tem uma overdose (deve ser por isso que não o vimos em nenhum outro filme). Essa cronologia também bate com a teoria de que “Grand Hotel” se passa antes de “Pulp Fiction”.
Embora o Civic e o Chevelle sejam os únicos modelos a fazer parte de mais de um filme, Tarantino também inseriu várias referências a outros clássicos protagonizados por carros em seus filmes.
À Prova de Morte
Uma verdadeira ode aos muscle cars e aos filmes de perseguições em forma de suspense/terror trash, “À Prova de Morte” (Death Proof, 2007) conta a história de Stuntman Mike (Kurt Russell), um piloto-dublê psicopata que tem um carro “à prova de morte” e o usa como arma para matar suas vítimas.
No começo do filme Mike tem um Chevy Nova 1971, equipado com gaiola de proteção, uma pintura suja digna de um grande vilão e aquele ronco ríspido que o V8 396 libera quando está produzindo . Seria apenas um carro assustador, se ele não tivesse sido escolhido e decorado por acaso. Ou você acha que Tarantino usaria um carro qualquer?
Primeiro: o próprio Chevy Nova é uma referência ao carro de Jules Winnfield (Samuel L. Jackson) em “Pulp Fiction”, um Chevrolet Nova 1974. Além disso há um pato de metal como ornamento. É exatamente o mesmo pato usado no caminhão de Mike “Rubber Duck” no clássico trash/cult/caminhoneiro “Comboio” (Convoy, 1978) do diretor Sam Peckinpah.
Há ainda uma terceira referência: a placa do Nova é JJZ-109, aparentemente um mero detalhe se esta não fosse a combinação alfanumérica da placa do Mustang de Frank Bullitt (Steve McQueen).
Depois de destruir seu Nova ao batê-lo de frente contra o pobre Honda Civic hatch 1996 para assassinar as gatas do bar (desculpem o spoiler!), Stuntman Mike volta para a segunda parte do filme com um Dodge Charger preto 1969. Sim, o carro que persegue McQueen em “Bullitt” (1968). E tem mais: a placa do carro faz uma homenagem ao Charger de Peter Fonda em “Fuga Alucinada” (Dirty Mary, Crazy Larry, 1974). Veja só os dois carros com a mesma placa 938-DAN.
As novas vítimas de Stuntman Mike nesse segundo ato são quatro garotas (Zöe Bell, Tracie Thoms, Mary Elizabeth Winstead e Rosario Dawson) viajando em um Mustang Mach 1 1972 preto e amarelo. Mike as encontra em uma loja de conveniências à beira da estrada e, discretamente, passa a observá-las.
Na descrição do carro já estão as duas próximas referências: o Eleanor da versão original de “60 Segundos” (Gone in 60 Seconds, 1974) era um Mustang Mach 1 do mesmo modelo usado pelas garotas. A pintura amarela com faixas pretas remete à roupa de Beatrix Kiddo em Kill Bill, de onde também veio a combinação com o interior vermelho — o Mach 1 é uma segunda versão do infame Pussy Wagon, com direito até ao adesivo na traseira. Quer provas?
Ao sair da conveniência o trio decide testar um Dodge Challenger branco 1970 que está a venda em uma loja nos arredores. Depois de convencer o vendedor a deixá-las fazer um test drive sozinhas elas saem com o Challenger pelas estradas desertas. É quando Mike decide atacá-las com seu Charger. Essa perseguição é o ponto alto do filme e das referências cinematográficas-automotivas, com menções a “Encurralado” (Duel, 1971), “Corrida Contra o Destino” (Vanishing Point, 1971) e novamente “Bullitt” (1968).
Um pouco de “Bullit” no contato entre os carros, um quê de “Corrida Contra o Destino” com o Challenger branco perseguido, e o ataque gratuito e psicopata de “Encurralado”.
À primeira vista Death Proof parece apenas um thriller retrô trash, com alguns carros dos anos setenta como mero elemento estético. Mas com todas essas referências e o envolvimento de Stuntman Mike com seus carros — a ponto de usá-los como armas — este é um verdadeiro filme sobre a cultura automotiva sem firulas e roteiros rasos como pretexto para o cheiro de gasolina no ar.
Kill Bill
Kill Bill é o tributo de Tarantino aos filmes de kung fu que fizeram sua cabeça quando moleque, mas na hora em que os carros aparecem ele novamente buscou referências nos clássicos e inseriu alguns easter eggs.
O carro de Elle Driver (Darryl Hannah), por exemplo, não é um Pontiac Trans Am por acaso. Ele é uma referência explícita ao Pontiac de Bandit (Burt Reynolds), em “Agarra-me se Puderes” (Smokey and the Bandit, 1977), ainda que seja um modelo 1980, e não 1977.
Depois, quando o filme apresenta a assassina Go Go Yubari, há uma cena em que a garota está bebendo com um garoto que pergunta se ela curte Ferrari. A resposta é uma fala de Ted Varrick (Charlie Sheen) em “Atraídos pelo Perigo” (No Man’s Land, 1987): “Ferrari é lixo italiano”.
Curiosamente, “Atraídos pelo Perigo” é o filme que inspirou o roteiro do primeiro “Velozes e Furiosos” (The Fast and The Furious, 2001). Na cena, Ted e Benji (D.B. Sweeney) escolhem um carro na rua para roubar, e Benji sugere uma Ferrari 512BB, perguntando se é um Chevy. Ted responde: “Não. Lixo italiano”.
Há ainda uma teoria de que em “Kill Bill 2” o carro de Bill (David Carradine) é um Mangusta como referência ao “Deadly Viper Assassination Squad” e sua submissão a Bill. O mangusto é um mamífero que vive na África subsaariana e é o predador natural das víboras (vipers) e outras serpentes peçonhentas por ser imune ao seu veneno. Contudo, o carro foi escolhido por uma questão puramente estética.
Carradine, que era um grande entusiasta, viu no personagem de Bill a oportunidade de dirigir o conceito Cadillac Cien, mas a General Motors recusou o empréstimo do carro por não querer vincular a marca ao teor do filme. Depois eles mudaram de ideia, mas exigiram uma quantia insana pelo aluguel do carro.
Por uma questão de prudência financeira, o produtor de design David Wasco sugeriu a Tarantino dois De Tomaso, e mostrou uma foto do Pantera e outra do Mangusta a Tarantino, porque os considerava artísticos. Tarantino escolheu o Mangusta e foi assim que o carro acabou no filme.