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História

O gênio da aerodinâmica que projetou os maiores clássicos da Jaguar – e nem era designer

A pergunta “qual é o carro mais bonito do mundo” é extremamente subjetiva, mas já tentaram respondê-la muitas vezes. Talvez você já tenha ouvido falar que o Lamborghini Miura é o carro mais bonito do mundo. A belíssima Ferrari 250 GTO é outra que frequentemente recebe este título – bem como sua quase-xará, a 288 GTO. Porsche 911 (o clássico), Citroën DS e Mercedes-Benz 300SL também costumam ser citados.

Mas pergunte a qualquer inglês qual é o carro mais bonito do mundo, e a resposta quase com certeza será sempre a mesma: o Jaguar E-Type. Até mesmo Enzo Ferrari, que nem era inglês, disse que o E-Type era o carro mais bonito já feito quando ele foi lançado, em 1961.

Dá para ver de onde vem esta ideia. As linhas do Jaguar E-Type eram tão cuidadosamente esculpidas, tão bem-proporcionadas, que é fácil esquecer que ele também é um dos melhores esportivos para se curtir do lado de dentro, ao volante, ouvindo o ronco do seis-em-linha XK debaixo do longo capô (os conhecedores do E-Type sabem que a versão com seis cilindros é a versão correta para se ter).

Mas quem foi que desenhou uma carroceria tão bela?

Seu nome era Malcolm Sayer. E, diferentemente do que poderia se imaginar, ele não era um designer, mas um aerodinamicista. Ele nasceu em 21 de maio de 1916, trabalhou na Jaguar até os últimos dias de sua vida e morreu em 1970, aos 53 anos de idade. E não teve tempo de ser reconhecido como merecia.

Malcolm Sayer nasceu em Norfolk, no leste da Inglaterra, e tinha tudo para ser um grande projetista. Seu pai era professor de artes e matemática na Great Yarmouth Grammar School, onde Sayer estudou durante a infância e adolescência. Aos 17 anos ele foi aprovado com louvor para a Universidade de Loughborough, onde estudou no Departamento de Engenharia Automotiva e Aeronáutica.

Depois de formado, Sayer foi contratado pela Bristol, tradicional fabricante de aeronaves britânica. Foi um timing excelente: quando teve início a Segunda Guerra Mundial, em 1939, a Bristol foi convocada pelo governo do Reino Unido para fornecer equipamentos – o que garantia a seus funcionários isenção do serviço militar. Afinal, tecnicamente, eles já estavam trabalhando para o exército. Sayer aproveitou para estudar e aperfeiçoar sua técnica como projetista durante o conflito, estudando as propriedades aerodinâmicas dos aviões.

Bristol Beaufighter AL-61A

Antes de trabalhar na Bristol, Sayer havia tentado um emprego na Jaguar, sendo entrevistado em 1935 por William Heynes, engenheiro-chefe da companhia britânica na época. Ele não conseguiu o emprego, e talvez a Bristol fosse seu plano reserva.

Pois em 1946, logo após o fim da Guerra, Sayer procurou a Jaguar novamente – e novamente foi entrevistado por Heyenes, que àquela altura havia assumido o cargo de diretor técnico. E, naquela segunda entrevista, as coisas foram diferentes.

Heynes também tinha se envolvido na construção de fuselagens para aviões. Ele e Sayer compartilhavam um interesse em comum, e ambos viram naquela coincidência uma boa oportunidade de aplicar a ciência do ar na fabricação de automóveis. Antes de começar a trabalhar para a Jaguar, porém, Sayer viajou para o Iraque, onde ficou por dois anos.

No Iraque, Sayer deu aulas de engenharia na Universidade de Bagdá, onde conheceu um professor alemão que também lecionava lá. Este é um dos elementos misteriosos da vida de Malcolm Sayer. Segundo o historiador britânico Philip Porter, autor do livro Jaguar E-Type: The Definitive History, sem edição em português, foi este professor quem apresentou a Sayer um método para desenhar formas usando cálculos matemáticos – os mesmos que, hoje, são realizados por sistemas de AutoCAD, por exemplo.

Sayer retornou ao Reino Unido em 1950, cheio de ideias e louco para testá-las. William Heynes ficou interessadíssimo na abordagem de Sayer, que começou a trabalhar na Jaguar em 1951.

Sob a direção de Heynes, Sayer envolveu-se logo de cara no projeto mais importante para a Jaguar nas décadas seguintes: o C-Type, versão aerodinâmica do roadster XK120. Em mecânica, os dois carros eram muito parecidos, com o mesmo motor seis-em-linha de 3,4 litros. A construção do Jaguar C-Type, porém, era revolucionária: em vez de um pesado chassi do tipo escada, como era no XK120, o C-Type apostava em uma estrutura tubular muito mais leve, que era abrigada sob uma carroceria baixa, sinuosa e quase toda desprovida de vincos. Os faróis, em vez de abrigados em pods destacados, eram protegidos por lentes de acrílico rentes aos painéis de metal.

E a elegância das linhas era proporcional a sua eficiência aerodinâmica: o C-Type venceu as 24 Horas de Le Mans em 1951 (quando era chamado Jaguar XK120C) e 1953.

Pelo sucesso do C-Type, o envolvimento de Sayer com os projetos da Jaguar aumentou. O sucessor do C-Type, apropriadamente batizado D-Type, teve praticamente todo o projeto aerodinâmico assinado por Sayer.

Seu método de trabalho impressionava os colegas. Sayer usava réguas especiais e tabelas matemáticas para criar fórmulas específicas, que o ajudavam a definir o formato de cada linha e cada curva. Depois que a silhueta geral do carro estava definida, o designer fazia novos cálculos para incorporar elementos estéticos que não intereferissem na eficiência aerodinâmica da carroceria e, ao mesmo tempo, agradassem profundamente aos olhos.

O Jaguar D-Type era inovador na construção do tipo monocoque, trazendo a carroceria como parte da estrutura, e esta parte ficou a cargo de Heynes. Mas quem definiu as formas e os elementos aerodinâmicos do carro foi Sayer, que inicialmente buscou a menor área frontal possível – o que resultou na hoje icônica entrada de ar oval na dianteira – e, através de uma “barbatana” vertical atrás do motorista, conseguiu aumentar a estabilidade aerodinâmica em alta velocidade.

Com o Jaguar D-Type, a fabricante conquistou três vitórias consecutivas em Le Mans, entre 1955 e 1957 – e certamente a aerodinâmica avançada de Malcolm Sayer teve sua parcela de “culpa” nisso. Ele não era do tipo que se acomodava e era conhecido por ser extremamente perfeccionista. Sayer achava que era sempre possível extrair um pouco mais de eficiência em qualquer projeto, mas tinha a certeza de que somente ele saberia como fazer isto.

E ele também acreditava que as formas de um automóvel deveriam respeitar a função – e detestava quando referiam-se a ele como um “estilista” automotivo. “Não sou um cabeleireiro”, ele respondia. Sayer encarava seu trabalho como uma ciência, e não menos que isto.

Depois das vitórias do D-Type, a Jaguar decidiu dar um tempo das corridas, em um hiato que durou até o fim da década de 1980. Mas, enquanto fabricante de esportivos de rua, a companhia seguiu firme. E foi de Malcolm Sayer que partiram as primeiras propostas para a carroceria do E-Type, o mais famoso dos esportivos de rua da Jaguar.

Criado como uma alternativa mais acessível às Ferrari e Maserati da época, o Jaguar E-Type causou uma sensação quando foi lançado. Algumas das maiores celebridades do mundo na época, como Steve McQueen e Frank Sinatra, tiveram os seus – e ele também tornou-se extremamente popular entre pilotos independentes em eventos de pista. O E-Type transmitia perfeitamente a identidade visual dos Jaguar de competição que vieram antes, e não precisava de muitas modificações para andar como um deles. E o grande responsável por isto era Malcolm Sayer.

O Jaguar E-Type era um carro tão fantástico, apesar de todos os problemas elétricos e de confiabilidade que a indústria automotiva britânica enfrentava, que foi produzido por 14 anos, entre 1961 e 1975. Mas Sayer não esteve presente para ver seu fim, e muito menos seu sucessor – o último carro no qual trabalhou.

Em 1965, Sayer começou a trabalhar na criação do projeto XJ13 (acima), um protótipo de motor central-traseiro com o qual a Jaguar planejava retornar a Le Mans. Paralelamente, porém, a disputa entre a Ford e a Ferrari no circuito de La Sarthe estava pegando fogo – a Ford acabava de introduzir o GT40 com motor V8 big block de sete litros e quase 500 cv, e os britânicos perceberam que o XJ13 já estava obsoleto antes mesmo de ficar pronto.

Sayer, então, voltou-se para outro projeto: uma proposta de substituto para o E-Type. Inicialmente chamado XJ27, o carro deveria usar um motor V12 de 5,3 litros na dianteira, e ter uma carroceria cupê maior, mais espaçosa e mais moderna. Em 1967 designer foi responsável pelos primeiros esboços e proporções gerais do conceito que daria origem ao grand tourer XJS. Pelos três anos seguintes, Sayer trabalhou no refinamento do projeto – só em 1970 chegou-se à fase de produção dos primeiros protótipos.

E foi naquele ano, em 22 de abril de 1970, que Malcolm Sayer morreu, vítima de um ataque cardíaco fulminante – um mês antes de completar 54 anos de idade. Com sua morte, o desenvolvimento do Jaguar XJS levou ainda mais tempo, e o carro só começou a ser fabricado em 1975.

Sayer ficaria satisfeito em saber que o XJS permaneceu em linha até 1996. E que, na década de 1980, foi protagonista de uma excelente campanha da Jaguar em competições de turismo na Europa e na Austrália, em parceria com a Tom Walkinshaw Racing. E que foi graças ao XJS que a TWR ficou encarregada de levar a Jaguar de volta a Le Mans poucos anos depois, conquistando vitórias com seus protótipos em 1988 e 1990.

É uma pena que o nome de Sayer não seja tão lembrado como o de outros projetistas, considerando a importância de seu trabalho para criar a imagem da Jaguar aos olhos do mundo – literalmente.