Em 1972, quando Emerson Fittipaldi já era o principal piloto da Lotus e uma das grandes promessas da Fórmula 1, o Brasil recebeu pela primeira vez um Grande Prêmio de Fórmula 1. Foi uma corrida experimental, uma prova fora do calendário oficial, mas que serviu para que o Grande Prêmio do Brasil passasse a integrar o calendário da Fórmula 1 a partir do ano seguinte.
Desde então, o Brasil está na lista dos 10 países que mais receberam corridas de Fórmula 1 em toda a história, e Interlagos é o sétimo autódromo que mais recebeu provas da Fórmula 1 — isso, claro, sem mencionar que, neste mesmo período o Brasil se tornou uma verdadeira fábrica de pilotos de diversas categorias.
A história do GP do Brasil, vista de hoje, é realmente gloriosa e um bom exemplo do que somos capazes quando há um mínimo de unidade em prol de algo. Agora, depois de 51 anos desde aquela primeira edição, quem não conhece os detalhes dessa longa história, mal poderia imaginar que estivemos muito perto de perder a Fórmula 1 no Brasil.
Esse ponto crítico aconteceu em 1989, quando Bernie Ecclestone — já no comando da categoria depois da disputa FISA-FOCA nos anos 1980 — precisava encontrar uma forma de resolver os problemas que o GP no Rio de Janeiro vinham lhe trazendo. Apesar de ser uma das provas mais badaladas do calendário — afinal, estamos falando do verão carioca nos anos 1980 — a organização do evento Jacarepaguá tinha uma série de problemas que colocavam em risco a continuidade do GP no Brasil por ali.
O próprio verão carioca era um problema, fazendo com que a prova fosse realizada sempre sob temperatura e umidade elevadas. Outro problema era o asfalto ondulado demais, fonte de críticas dos pilotos e das equipes. Além disso, as provas de Fórmula 1 eram naturalmente mais “relaxadas” em termos de controle de acesso na época, mas no Rio de Janeiro isso era potencializado, e ainda havia o custo de aluguel do autódromo, cada vez mais elevado. No fim das contas, realizar um Grande Prêmio no Rio de Janeiro estava se tornando inconveniente para a Fórmula 1.
Mas houve um fator que foi determinante no destino da Fórmula 1 no Rio: o acidente de Philippe Streiff durante os testes de pneus em março de 1989.
O acidente em si não foi o maior problema, mas o que aconteceu depois. O carro sofreu uma quebra na suspensão e saiu da pista descontrolado, em direção a um muro de contenção onde acabou atingindo outros dois funcionários do autódromo. Isso, por si, já seria algo preocupante, apesar dos ferimentos leves sofridos pelos dois.
Depois, mesmo com a ação rápida dos bombeiros, que levaram menos de 20 segundos para chegar ao local e controlar o princípio de incêndio, toda a extração e transporte de Streiff ao centro médico e ao hospital foram desastrosos.
O carro teve o santo-antônio quebrado e, talvez por isso, Streiff acabou com fraturas em duas vértebras do pescoço e em um dos ombros. Ele foi removido do carro sem o colete cervical e levado ao helicóptero em uma maca flexível. Do autódromo, Streiff foi levado a uma clínica no bairro da Gávea, a cerca de 25 km de Jacarepaguá. Ali, ele ainda esperaria até a noite para ser operado pelos médicos, que estavam em São Paulo.
Philippe Streiff sobreviveu, mas ficou tetraplégico devido às lesões do acidente. Ele nunca acusou a organização da prova de ter cometido erros em seu atendimento, mas nunca saberemos se as lesões irreversíveis foram causadas pelo acidente ou pelo socorro inadequado.
O que sabemos é que, para um Grande Prêmio que já estava em risco, um acidente como este foi a gota d’água. o GP do Brasil foi realizado normalmente em 26 de março daquele ano, tendo como vencedor Nigel Mansell na Ferrari 640, que estreava no Rio de Janeiro seu novo câmbio semi-automático. O brasileiro Maurício Gugelmin foi o terceiro colocado, conquistando seu primeiro e único pódio na categoria.
Meses depois, em 15 de outubro de 1989, durante a reunião da FISA — o órgão da FIA que regulamentava o automobilismo esportivo, na época —, a entidade decidiu eliminar o GP do Brasil do calendário da Fórmula 1. Conhecendo esta história hoje, é fácil pensar que a solução óbvia seria apenas mudar a Fórmula 1 para Interlagos, mas a categoria havia deixado Interlagos em 1980 pelo mesmo motivo que estava abandonando o Rio de Janeiro: a infra-estrutura inadequada do autódromo.
O asfalto de Interlagos vinha piorando significativamente na segunda metade dos anos 1970, tornando-se demasiadamente abrasivo e ondulado — o que se tornou um grande problema para os carros-asa daqueles anos. Com o Rio de Janeiro já organizando um GP em alternância com São Paulo, a Fórmula 1 decidiu correr apenas em Jacarepaguá, e Interlagos acabou relegado às categorias regionais e nacionais, com bem menos atenção e recursos do que receberia se ainda tivesse a Fórmula 1.
Por isso, em 1989 o autódromo era simplesmente ultrapassado demais para receber a categoria. Seu asfalto ainda era ondulado, seu trecho de alta era arriscado demais para os carros modernos e ainda havia a questão da extensão da pista, que dificultava as transmissões para a TV no padrão desejado àquela altura.
Piero Gancia, então presidente da CBA, estava em Paris na ocasião em que a FISA decidiu riscar o Brasil do calendário de 1990. Sendo próximo de Bernie Ecclestone, Piero Gancia disse que encontraria uma forma de manter o GP do Brasil. Em seguida, entrou em contato com a recém-empossada prefeita de São Paulo, Luísa Erundina e explicou a situação.
A prefeita, agora ciente da economia de Interlagos e do GP do Brasil, fez um acordo com a Shell, no qual a prefeitura cederia por comodato 20 terrenos da prefeitura para a instalação de postos de combustível como contrapartida do financiamento da reforma de Interlagos, 50 ônibus para a frota pública e pagamento de 5% do faturamento dos postos à prefeitura. A Shell topou. Faltava agora decidir o traçado.
Piero Gancia pediu a Chico Rosa, então administrador de Interlagos para desenhar um traçado mais seguro e adequado às demandas da Fórmula 1 da época. O resultado foi um traçado que aproveitava boa parte do antigo, mas sem inutilizar o traçado original, muito menos o anel externo — o que permitiria ao menos quatro traçados diferentes em Interlagos — um traçado curto, um traçado de Fórmula 1, o traçado original e o anel externo.
Bernie Ecclestone, contudo, não gostou da ideia de se manter o anel externo pois não queria que a Indy desse as caras no Brasil, dividindo a atenção (e o dinheiro dos espectadores) com a Fórmula 1.
A história de como o S entrou em cena é nebulosa — pilotos contrários ao redesenho do traçado acusam Ayrton Senna de usar sua posição de ídolo nacional e campeão do mundo para interferir no projeto em favor dos interesses de Bernie Ecclestone —, mas o fato é que um traçado completamente diferente do proposto foi aprovado. E inutilizou não só o anel externo, mas também todas as variações de traçado previstas por Chico Rosa.
O resto é história — uma história bem conhecida por todos nós, que assistimos à Fórmula 1 no Brasil até hoje. Mas há algo que nos escapa é a rapidez com a qual tudo foi feito. A reunião com a FISA aconteceu em 15 de outubro de 1989 e o GP do Brasil de 1990 foi realizado no traçado novo em 25 de março de 1990.
Sim: cinco meses desde o primeiro contato de Piero Gancia e Luísa Erundina até a realização do GP do Brasil, passando pelas propostas de Chico Rosa, a recusa de Ecclestone, a entrada de Senna e do seu S, a refundação da pista, a conclusão das obras, os primeiros treinos e a largada do Grande Prêmio.
É um feito e tanto, principalmente se tratando de um equipamento público brasileiro — mas que mostra o que é possível quando se tem homens comprometidos com uma missão, como fizeram Piero Gancia e Chico Rosa. O circuito do Canadá pode até ter sido projetado em meia hora, mas só Interlagos foi projetado, reformado e inaugurado em menos de cinco meses. Graças a estes dois homens, a Fórmula 1 permaneceu no Brasil e garantiu a sobrevivência de Interlagos.
Esta matéria é nossa singela homenagem a Philippe Streiff, que nos deixou em 23/12/22 aos 67 anos e a Chico Rosa, que partiu aos 80 anos neste último final de semana.
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