Existe algo profundamente improvável, quase absurdo, na ideia de que um motor originalmente projetado para carros de passeio pudesse conquistar o campeonato mundial de Fórmula 1. Mas isso aconteceu em 1966.. Não apenas um motor adaptado venceu, mas o fez nas mãos de um piloto que dirigia um carro com seu próprio nome, construído por sua própria equipe. Esta é a história de como a audácia australiana, a engenhosidade mecânica e o timing perfeito criaram um dos capítulos mais fascinantes da história do automobilismo.
A tempestade perfeita: 1966 e a mudança de regras
Para entender o que tornou possível essa façanha improvável, precisamos voltar ao início dos anos 1960. A Fórmula 1 estava prestes a passar por uma transformação dramática. A FIA havia anunciado em 1963 que o limite de deslocamento dos motores seria dobrado para a temporada de 1966 – passando de 1,5 litro para 3 litros, uma mudança jamais vista e jamais repetida. Era uma resposta às críticas do público e das equipes, mas também representou um problema: ninguém estava preparado para uma mudança tão drástica.
A Coventry-Climax, principal fornecedora de motores na Inglaterra, decidiu simplesmente sair da Fórmula 1 — uma decisão que desfalcou praticamente todas as equipes britânicas. A Ferrari, sempre com recursos abundantes, estava preparada com um V12 desenvolvido especificamente para a nova fórmula. A BRM embarcou no projeto ambicioso e problemático de um motor H16. A Honda estava desenvolvendo um V12 transversal do zero. Mas os britânicos? A maioria estava desesperada, improvisando e procurando soluções em qualquer lugar.
Foi nesse caos que Jack Brabham viu uma oportunidade brilhante. E sua estratégia era quase simplória à primeira vista: enquanto todos os outros estariam correndo contra o relógio para desenvolver motores completamente novos – inevitavelmente cheios de problemas iniciais a serem descobertos antes de resolvidos – ele apostaria em algo que já funcionava.
Brabham
Jack Brabham não era como os outros pilotos de sua geração. Nascido em 1926 nos subúrbios de Sydney, ele aprendeu a dirigir aos 12 anos nos veículos de entrega da quitanda de seu pai. Durante a Segunda Guerra Mundial, ele serviu como mecânico na Real Força Aérea Australiana, adquirindo conhecimento técnico com a densidade que só uma guerra pode fazer. Por isso, Brabham tinha algo que faltava à maioria dos pilotos: ele entendia os carros por dentro e por fora. Essa combinação de habilidades – piloto, engenheiro, estrategista – seria crucial para o que viria a seguir.

Em 1959 e 1960, Brabham conquistou dois campeonatos mundiais consecutivos pilotando para a Cooper, tornando-se uma lenda ao conquistar o primeiro título com um carro de motor central-traseiro, uma configuração revolucionária que ele mesmo havia ajudado a desenvolver com John Cooper e Owen Maddock. Mas em 1962, aos 36 anos – uma idade já considerada avançada no esporte – ele tomou uma decisão que parecia quase suicida: deixou a segurança da Cooper para fundar sua própria equipe.
A Motor Racing Developments nasceu em parceria com Ron Tauranac, outro australiano brilhante. Os primeiros anos foram duros. Brabham pilotava carros que levavam seu nome, mas os resultados eram modestos. Em 1965, ele até considerou a aposentadoria, mas a mudança do regulamento no ano seguinte poderia ser uma nova chance.
A conexão australiana
Em 1964 Brabham inscreveu sua equipe na Tasman Series — um campeonato realizado na Austrália e Nova Zelândia durante o verão europeu, e que tinha um limite de 2.5 litros para os motores. Era uma oportunidade perfeita para pilotos europeus ganharem algum dinheiro extra enquanto a F1 estava em recesso, e Brabham, australiano de nascimento, tinha interesse especial nessas corridas em casa.
O problema era encontrar um motor adequado. Brabham precisava de algo competitivo, mas também viável economicamente. E foi aí que ele pensou na Repco.
A história da Repco é tão improvável quanto a do próprio motor que eles construiriam. Fundada em 1922 em Melbourne como Replacement Parts Company (daí o nome Repco), a empresa tinha um negócio simples: fabricar peças de reposição para carros importados que eram difíceis de encontrar na Austrália. Ao longo das décadas, ela cresceu, absorvendo pequenas empresas de componentes automotivos, expandindo suas operações, mas sempre mantendo seus pés firmemente plantados no mundano mundo das peças de reposição.
Não era exatamente o tipo de empresa que você esperaria encontrar no auge do automobilismo internacional. Mas havia algo especial na Repco: eles tinham engenheiros extraordinários e uma reputação impecável por recondicionamento de motores. Entre esses engenheiros estava Phil Irving, um homem que se tornaria absolutamente crucial para toda a história.
Brabham procurou a Repco com uma proposta ousada mas lógica: pegar o bloco de alumínio do V8 usado no Oldsmobile Jetfire e adaptá-lo para corridas. O bloco Oldsmobile era leve e robusto — além disso, o que o tornava particularmente atraente era seu padrão de seis parafusos de cabeçote por cilindro – uma característica que o diferenciava da versão Buick desse motor, que tinha apenas cinco parafusos. Essa fixação extra do cabeçote seria crucial para a resistência do motor com as altas taxas de compressão efetivas da preparação de corrida.

Phil Irving e sua pequena equipe na Repco aceitaram o desafio. Eles pegaram o bloco Olds e projetaram novos cabeçotes com comando de válvulas simples, duas válvulas por cilindro, e uma sincronização por corrente/engrenagem para os comandos. Com as modificações certas, o motor de 2.5 litros funcionou. Não era o mais potente, mas era confiável e adequado para a Tasman.
Quando a Fórmula 1 anunciou o novo regulamento de motores, Brabham não teve dúvidas: se a Repco fez um motor 2.5 a partir do bloco Oldsmobile, ela certamente poderia fazer um 3.0. E mais importante: enquanto todos os outros estariam desenvolvendo motores completamente novos do zero, ele poderia simplesmente expandir algo que já funcionava. A estratégia era brilhante em sua simplicidade.

Mas a genialidade da proposta não estava apenas na adaptação técnica. Estava na filosofia por trás dela. Os motores recém-desenvolvidos da Ferrari, BRM, Honda e Cosworth ainda teriam falhas inesperadas e ajustes que só seriam descobertos durante os testes e corridas. Brabham não teria esse problema porque o projeto já tinha sua confiabilidade comprovada na Tasman e nas ruas americanas. Suas características básicas eram conhecidas, seus limites compreendidos, suas fraquezas já identificadas e corrigidas.
Era uma abordagem quase conservadora para um esporte que sempre celebrou a inovação radical. Mas Brabham, com sua experiência de décadas como piloto e mecânico, entendia uma verdade fundamental das corridas: para terminar a corrida em primeiro, primeiro você tem que terminar a corrida. E motores novos, especialmente na primeira temporada, corriam o risco de não terminar.
A diretoria da Repco concordou com o raciocínio. Eles viram não apenas a oportunidade de marketing – imagine o prestígio de vencer em Mônaco, Monza, Silverstone – mas também entenderam a lógica pragmática da proposta. Não estavam tentando reinventar a roda; estavam otimizando algo que já rolava bem. Phil Irving liderou o projeto com uma pequena equipe que eventualmente incluiria Frank Hallam, Norm Wilson, John Judd (que mais tarde fundaria sua própria marca de motores), Lindsay Hooper e Brian Heard.

O motor foi batizado Repco 620, e era uma obra-prima da engenharia pragmática. O bloco foi mantido original e o deslocamento foi aumentado pelo aumento do curso. Os cabeçotes foram desenvolvidos do zero, com comandos de válvulas simples, duas válvulas por cilindro, sincronização por corrente em dois estágios e ângulos de válvula mais agressivos que os originais. O primeiro motor funcionou em uma bancada de testes na Austrália em março de 1965. Era ruidoso, vibrava demais, mas funcionava e era confiável.
Com 285 cv inicialmente (números de testes em bancada sugeriam até 315 cv a 7.800 rpm, com cerca de 300 cv disponíveis no trim de corrida), o Repco era de longe o menos potente dos novos motores de 3 litros. A Ferrari tinha muito mais poder. A BRM prometia números astronômicos quando funcionasse. Mas o Repco tinha outras virtudes – exatamente aquelas que Brabham havia planejado.
A estreia no Grande Prêmio da África do Sul em 1º de janeiro de 1966, instalado no Brabham BT19 de Jack Brabham — uma prova extra-campeonato. Ninguém sabia exatamente o que esperar dos novos motores. Brabham liderou a maior parte da corrida mas abandonou por um problema na injeção de combustível. Não foi o início que se esperava, mas o carro mostrou potencial e ficou claro que sua estratégia estava certa.

Nas primeiras corridas da temporada, o caos que Brabham havia previsto se materializou espetacularmente. Os novos motores Ferrari, embora potentes, quebravam. O monstruoso BRM H16 – aquela ideia louca de unir dois motores V8 – era um pesadelo de confiabilidade, superaquecendo, vibrando violentamente, falhando de maneiras criativas e inesperadas. O Honda V12 enfrentava seus próprios demônios de desenvolvimento. Até mesmo equipes que conseguiram motores Climax modificados ou outras soluções improvisadas lutavam com falhas mecânicas constantes.
E foi aqui que a aposta de Brabham começou a se pagar: o motor Repco teve apenas uma quebra ao longo da temporada. O motor era compacto e leve – tão leve que poderia ser instalado em chassis projetados originalmente para os motores de 1.5 litros. Ele era econômico e, acima de tudo, era confiável.
Havia outra vantagem que Brabham havia calculado desde o início: o baixo peso e a potência relativamente modesta significavam que o desgaste de chassi, suspensão, freios e pneus seria menor. Em uma era em que carros de corrida eram espantosamente frágeis – quando quebras mecânicas eram mais a regra do que a exceção – essa suavidade sistêmica era ouro puro.
As quatro vitórias que mudaram tudo
A primeira vitória veio no International Trophy em maio de 1966, uma corrida que não contava para o campeonato mas que deu à equipe a confiança. Então, em julho, no GP da França em Reims, Jack Brabham, aos 40 anos, tornou-se o primeiro piloto de Fórmula 1 a vencer uma corrida de Fórmula 1 com um carro que levava seu nome… e usava um motor de rua!
Foi a primeira de quatro vitórias consecutivas que definiriam o campeonato. Na Inglaterra, Brabham venceu novamente. Na Holanda, em um dos momentos mais memoráveis da história da Fórmula 1, ele chegou ao grid de largada mancando, vestindo uma longa barba falsa e apoiado em uma bengala – uma resposta bem-humorada às constantes piadas da mídia sobre sua idade avançada. Depois de arrastar-se teatralmente para o cockpit sob gargalhadas dos rivais, ele jogou fora a barba e a bengala, entrou no carro, garantiu a pole position e venceu a corrida.

A quarta vitória veio na Alemanha, em Nürburgring. Brabham mais tarde descreveria essa como a vitória mais satisfatória de sua carreira. Ele dominou os 22 km que serpenteavam pelas montanhas Eifel em um carro com menos potência que os rivais. Quando a temporada terminou, Brabham havia garantido seu terceiro campeonato mundial, o primeiro e até hoje único piloto a vencer em um carro com seu próprio nome. A Brabham também conquistou o Campeonato de Construtores. E o humilde motor Repco, nascido de um bloco Oldsmobile de rua, estava no topo do mundo do automobilismo.
Em 1967, a Repco desenvolveu uma nova versão do motor, a série 700, desta vez com um bloco projetado “in house”. A potência aumentou para 330 cv. Mas o mundo estava mudando rapidamente. No GP da Holanda de 1967, a Lotus estreou o Cosworth DFV em seu revolucionário 49. Com 410 cavalos a 9.000 rpm, estabeleceu um novo padrão de desempenho.
Mesmo assim, o Repco ainda tinha confiabilidade de seu lado. Enquanto os Lotus eram frágeis e quebravam frequentemente, os Brabham-Repco continuavam terminando corridas. Denny Hulme, companheiro de equipe de Brabham, venceu duas corridas e acumulou resultados consistentes o suficiente para conquistar o campeonato de pilotos, com Brabham em segundo. A Brabham venceu seu segundo campeonato consecutivo de construtores.

Àquela altura, contudo, estava claro que o jogo havia mudado. O Cosworth DFV era o futuro – mais potente, mais avançado tecnologicamente, e a Ford estava disposta a fornecê-lo para várias equipes. Para 1968, Brabham e a Repco tentaram uma atualização ambiciosa: o Repco 860, um motor de 32 válvulas com duplo comando de válvulas no cabeçote acionado por engrenagens, visando 400 cv.
Foi um desastre. O motor era temperamental, pouco confiável, e nunca alcançou as metas de potência. A temporada de 1968 foi frustrante, com Jochen Rindt conseguindo apenas duas poles e dois pódios, enquanto Brabham marcou apenas dois pontos. O problema fundamental era a distância: desenvolver motores na Austrália para correr na Europa era uma logística que tornava qualquer desenvolvimento lento demais.
No final de 1968, a Repco percebeu que o projeto havia consumido muito mais dinheiro do que o previsto, que as vendas de motores para clientes haviam sido decepcionantes, e que era hora de encerrar. Em 1969, Brabham se rendeu ao Cosworth DFV.
O motor improvável
Existe uma certa beleza poética em um motor vindo das ruas conquistando o ápice do automobilismo. Fala de uma época em que a engenhosidade ainda podia triunfar sobre os recursos ilimitados, quando um pequeno grupo de homens trabalhando em oficinas na Austrália e na Inglaterra podia vencer as fábricas gigantes da Europa. Era uma época diferente da Fórmula 1, mais acessível, mais humana, de certa forma.
Quando Jack Brabham finalmente se aposentou em 1970 aos 44 anos, após sua última vitória na África do Sul, ele deixou o esporte como uma lenda. Não por acaso foi o primeiro piloto condecorado pela Coroa Britânica como “Sir”, por seus serviços prestados ao esporte motorizado. O único homem a vencer um campeonato mundial em um carro com seu próprio nome. E o Repco 620, o motor que embalou sua grande realização, entrou para a história.
Hoje, décadas depois, a Fórmula 1 é um esporte de orçamentos de centenas de milhões de dólares, de motores turbo híbridos incrivelmente complexos desenvolvidos por centenas de engenheiros, de simuladores que testam cada variável antes que qualquer carro toque a pista. A ideia de pegar um motor de carro de rua, modificá-lo e vencer o campeonato mundial seria ridícula.

Mas talvez seja por isso que a história do Repco-Brabham continua a encantar entusiastas até hoje. Ela nos lembra de quando o impossível ainda era possível.Jack Brabham fez algo que ninguém antes dele havia feito e que ninguém depois dele jamais fará. E fez com um motor que começou sua vida levando americanos ao supermercado, para tornar tudo ainda mais incrível.


