Faz exatamente uma semana que a Jaguar está sendo odiada e criticada por seu ousado rebranding. Sete dias de críticas, piadas, desdém e decepção com uma das marcas mais antigas e tradicionais da história do automóvel. Não foi por acaso que eu esperei esse tempo para dizer algo a respeito da mudança. Reagir tão rapidamente, sem ponderação, é uma reação instintiva. E, embora a intuição seja um sentimento importante para o desenvolvimento humano, os sentimentos não são plenamente confiáveis — você tem medo ao assistir filmes de suspense, mas qual a racionalidade disso?
Esteticamente a campanha do rebranding da Jaguar é desastrosa. Ela menciona “copy nothing” — algo como “não copie nada” —, mas seu conceito é obscenamente parecido com o da campanha “United Colors”, idealizada por Oliviero Toscani para a Benetton e veiculada entre 1989 e 1993.
É um dos casos mais famosos da publicidade, uma quebra de padrões e paradigmas que comunicava de forma explícita os fundamentos da marca naquele momento de reordenação global — lembra do muro que caiu em novembro de 1989? De repente, “United Colors of Benetton” não significava mais cores, mas uma afirmação para aquele novo mundo que se desenhava. Ela comunicava que a Benetton era uma marca moderna, que não queria saber dos padrões estabelecidos naquele mundo segregado do passado. E deu certo, muito certo.
Coincidentemente, a Jaguar se encontra em um momento parecido. Há uma nova geração de que despreza tudo o que existiu antes de sua existência (como bem demonstrou a mocinha da garrafa térmica). Há um movimento geopolítico messiânico, que nos promete a redenção pelo fim da pecaminosa combustão em 10 anos. Há uma série de movimentos localizados em todo o mundo que podem mudar radicalmente a realidade mais cedo do que se imagina. Foi nesse cenário que a Jaguar, diante de uma queda vertiginosa de vendas, precisou ponderar sobre seus próximos passos — algo que deu origem à campanha que vimos na semana passada.
É preciso, portanto, entender o contexto atual e o histórico da Jaguar. O contexto atual é mais simples: temos a meta do fim da combustão interna nos carros novos chegando em 10 anos. Carros levam, em média, sete anos para serem desenvolvidos da prancheta à linha de produção. Ou seja: os últimos carros a combustão já estão em desenvolvimento ou já foram lançados. É por isso, por exemplo, que irá lançar um Panamera novo totalmente elétrico, mas irá manter a atual geração a combustão em paralelo. Não dá mais tempo de desenvolver em uma geração nova, porque ela seria lançada perto demais de 2035.
Como as marcas britânicas se desintegraram e viraram estrangeiras?
O principal problema da Jaguar foi o timing. Mas não por azar. E sim por que ela tem uma história instável, que se arrasta entre altos e baixos desde os anos 1960. Eu já contei essa história aqui mesmo no FlatOut: a história da Jaguar se confunde com a história da indústria britânica, que acabou praticamente toda estatizada nos anos 1970 sob a holding British Leyland e, para ser salva, teve de ser privatizada, vendida a investidores estrangeiros. Como ela era uma das marcas lucrativas da British Leyland, ela foi separada em 1984 e arrematada pela Ford em 1989.
A Ford, com todas as suas marcas, atuante em todo o planeta, conseguiu tornar a Jaguar minimamente sustentável em termos financeiros. Houve o compartilhamento de motores e plataformas, mas em 2008, graças ao colapso da economia americana, a Ford se viu forçada a vender a marca para não quebrar. E foi assim que a Jaguar foi parar nas mãos da Tata, juntamente da Land Rover. E aí seus problemas começaram.
Enquanto a Jaguar tinha projetos e motores remanescentes da Ford, o negócio funcionou bem. O problema começou na metade da década passada, quando chegou a hora de renovar plataformas e motores. Sem uma joint-venture ou uma grande holding para dividir os custos de projeto, a Jaguar se viu forçada a “SUVizar” sua linha para compartilhar plataformas com a Land Rover. Foi o começo do fim. Por que comprar um SUV Jaguar se a Land Rover entregava o mesmo de forma mais autêntica?
Era uma ruptura com a tradição da Jag, que sempre foi reconhecida por seus sedãs luxuosos e cupês esportivos. A partir dali, não importava muito que eles fossem a quarta maior vencedora de Le Mans — à frente de Ford, Alfa Romeo, Peugeot, Bentley e Toyota. Nenhum dos seus carros atuais entregava o menor resquício desse legado.
O próprio CEO da Jaguar Land Rover, Adrian Mardell, corrobora essa visão. Em 2023 ele afirmou que uma série de erros tornaram a Jaguar uma marca medíocre e que a tentativa de transformá-la em uma BMW britânica esvaziou seu valor. Em vez de se posicionar nos nichos deixados pelas outras fabricantes, ela tentou brigar com marcas premium e marcas de luxo ao mesmo tempo e, por isso, acabou não concorrendo com nenhuma. Quando o erro foi notado, era tarde demais.
À medida em que os sedãs foram saindo de linha, as vendas da Jaguar foram caindo. Em 2018 e 2019, a marca vendeu 180.000 carros. Em 2023 e 2024 foram 67.000 — praticamente um terço do volume anterior à pandemia. Com apenas um modelo em produção — e com suas vendas minguando — a Jaguar tomou uma decisão tão radical quanto racional: encerrou a produção e começou a preparar a nova fase da marca.
Analisando friamente, a Jaguar não tinha muito o que fazer. É como tentar esvaziar um barco partido ao meio. É melhor deixá-lo afundar e se agarrar aos destroços com a esperança de chegar à costa — onde estão os planos futuros da marca. Foi uma situação inédita na história da indústria automobilística. Nunca antes uma fabricante encerrou todos os seus modelos e optou, deliberadamente, por não produzir nada ao longo de um ano. Mas o que ela poderia fazer? Continuar perdendo dinheiro com carros que não eram comprados? Se agarrar a um legado esportivo que não convencia ninguém a tirar a carteira do bolso?
Fora da Europa, especialmente longe dos bastidores da indústria, existe a esperança de que a proibição da combustão interna seja revista. Que os carros elétricos sejam uma alternativa em vez de a única opção. Mas conversando com insiders da indústria na Europa, todos estão preocupados. Ninguém sabe o que fazer, para onde ir. As vendas dos carros elétricos estão em queda ou desacelerando no mundo todo. Olhe para a Porsche de novo: o Panamera e o Cayenne não terão uma nova geração a combustão. E isso não é falta de interesse da marca, mas o risco de investir em algo que já está proibido para daqui a 11 anos.
Nesse cenário, a Jaguar decidiu que sairia na frente na eletrificação total. Encerrou os modelos e começou a prepara seu novo produto, um carro de super luxo — como sempre foram seus modelos de topo — 100% elétrico, voltado ao um novo público. Um público que não faça questão do legado da marca, mas tire a carteira do bolso.
E assim chegamos a atual campanha da Jaguar. É mais que um rebranding. É praticamente a refundação da marca — algo que se confirmará caso a Jaguar deixe mesmo de lado seu legado histórico. A campanha é polêmica por dois motivos: o primeiro é pelo conceito banal. Ser autêntico e quebrar padrões é um discurso datado. Funcionava em 1999, 2000. Com o atual nível de diversidade e liberdade, ser autêntico e quebrar padrões é só uma terça-feira qualquer em 2024.
Depois, o problema é a total ruptura com o que se conhece da marca. Não há reconhecimento algum ao legado da marca — por mais que ele só seja valorizado por quem não compra seus carros. Não há valorização dos 122 anos de história. Não há nenhum valor sólido ou estabelecido sendo transmitido. Há apenas um punhado de clichês ilustrado por abstrações. Não há sonho, realização, gratificação ou ambição alguma.
Mas isso é o que todos disseram. O que ninguém está dizendo é o outro lado desta história, que surge de uma hipótese que, de início, parece absurda, mas que é sensata. Uma característica desses tempos é a competição por atenção. Em um ano no qual a Jaguar não produz nenhum carro, ela transformou 30 segundos em dias de discussão. Elon Musk comentou a campanha. Nigel Farage comentou a campanha. Todo influenciador e criador de conteúdo que vive de trending topics comentou a campanha. Falar mal de uma marca ainda é falar de alguma marca. É exposição. A campanha também vai ao encontro de uma citação de Adrian Mardell, em uma reunião com investidores do grupo: “Não vamos nos preocupar em ser amados por todos. Tentar agradar a todos será o último prego no caixão da marca.”
Além disso, a campanha é pavorosa quando se trata de carros. Mas… e se a Jaguar estiver se preparando para ser algo além de uma fabricante de carros? Um dos grandes gurus de Relações Públicas, o britânico Mark Borkowski — que trabalhou com Michael Jackson, Led Zeppelin, Macaulay Culkin, os Três Tenores, Vodafone, Bolshoi e Cirque du Soleil, e foi responsável por algumas ações de publicidade mais famosas da história — acredita que a Jaguar está se transformando em uma marca de lifestyle. Essa visão é corroborada por uma declaração do diretor da Jaguar, Rawdon Glover, em resposta às críticas feitas à campanha: “Se jogarmos como todo mundo, vamos nos afogar. Por isso, não vamos aparecer como uma marca de carros”.
Além disso, a JLR se mostrou muito comprometida com as práticas ESG, que serão cada vez mais exigidas em um futuro próximo. Adrian Mardell recebeu neste ano o prêmio de “Business Ally” (aliado de negócios) no British LGBTQI+ Awards deste ano. A Jaguar também é a patrocinadora principal do Virgin Attitude Awards, uma premiação voltada à promoção dos direitos LGBTQI+. Na edição deste ano, o diretor da Jaguar no Reino Unido, Santino Pietrosanti, antecipou detalhes deste rebranding em um trecho de seu discurso:
“Não estamos falando apenas de carros novos. Estamos falando de novas formas de pensar e de abraçar todo o espectro de potencial humano e criatividade. Porque a Jaguar sempre se apoiou a originalidade destemida de não ser uma cópia de nada. E acreditamos que cada pessoa tem potencial de ser única e original, e é isso que nos fortalece. Na Jaguar apoiamos com orgulho a comunidade LGBTQ+, porque sabemos que a originalidade e a criatividade prosperam em espaços onde as pessoas são livres para ser elas mesmas. Somos apaixonados por nossa gente, e estamos comprometidos em adotar uma cultura diversificada, inclusiva e unificada que é representativa não apenas das pessoas que usam nossos produtos, mas de uma sociedade em que todos vivemos”.
O discurso diz muito sobre o que a Jaguar está se tornando e explica o conceito da campanha. A questão é que, embora as práticas ESG sejam relevantes, não seria prudente que elas permanecessem no campo administrativo? Vincular estas práticas ao produto não é uma forma de reduzir o universo total de potenciais compradores — algo que a Jaguar precisa desesperadamente? Pense no Oriente Médio e na China (onde a campanha também teve recepção negativa).
Aparentemente, a Jaguar entendeu que o futuro já está escrito em pedra no sentido de reforço das práticas ESG e da eletrificação dos carros e, diante deste cenário, ela simplesmente se antecipou, tentando sair na frente de todos neste novo cenário que teremos a partir de 2035. É uma decisão ousada, sem dúvida, mas ninguém descobriu um jeito novo de fazer as coisas sem arriscar. A questão é que riscos devem ser controlados e, considerando a veemência da Jaguar em trazer as práticas ESG para a superfície, associando-as aos produtos, estes riscos aumentam exponencialmente.
Na mesma entrevista em que mencionou a possibilidade de a Jaguar estar se tornando uma marca de lifestyle, Mark Borkowski lembrou o caso da Bud Light, que se associou à ativista transsexual Dylan Mulvaney por mera questão de inclusão e não de identificação com seu público, provocando um amplo boicote de sua base de clientes que causou uma redução de 25% nas vendas e um prejuízo de US$1,4 bilhão de dólares. Alguns dirão que é uma mera questão de preconceito, mas isso seria o mesmo que dizer que a maioria das pessoas é simplesmente má.
Esta é uma questão que não parece estar sendo levada em conta pela Jaguar: o ativismo corporativo está perdendo força, não porque estamos resistindo a ele, mas por que ele já atingiu resultados significativos — e a própria política ESG da Jaguar é prova disso. Forçá-lo além da conta (como, por exemplo, associá-lo a um produto a ponto de quebrar a identificação do público com ele), pode causar uma rejeição do público não por rejeição à causa, mas simplesmente por uma questão de equilíbrio: nem todo mundo quer militar o tempo todo, em todas as coisas — e os próprios ativistas estão dizendo isso, à medida em que os casos de burnout e estresse aumentam entre eles.
Quanto à ausência de um carro na campanha da Jaguar, ela é o menor dos problemas: a intenção aqui não é divulgar o carro, mas esta mudança na imagem da marca. Esta é apenas a primeira etapa da renovação da Jaguar — veremos mais ao longo dos próximos meses, à medida em que o lançamento do primeiro modelo desta nova era se aproxima.
Para encerrar, acima de tudo o que foi dito aqui, a Jaguar precisava fazer algo. Se apelar ao legado histórico não funcionou, abraçar a modernidade é uma forma de tentar fazer diferente — uma vez que não há tempo para corrigir os erros do passado, como disse mais acima. Se vai funcionar, ninguém pode dizer. Mas podemos afirmar com alguma certeza que hoje a Jaguar só tem duas opções: desistir ou escolher uma direção e torcer para que ela a leve a um lugar melhor.
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