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Técnica

O que é uma plataforma, afinal?

No início, o método tradicional de se construir automóveis usava uma base mecânica que englobava todo o necessário para um automóvel se mover por seus próprios meios e, assim, se tornar um… auto-móvel. Motor, transmissão, direção, suspensões, freio, roda e pneu — isso tudo era juntado em uma estrutura bem simples: duas longarinas retas de aço, de perfil em C, que permitia espaço por dentro para se montarem travessas. Essas duas longarinas retas, com esse monte de travessa, pareciam muito com uma escada; era o chassi-escada.

Desta forma, o chassi era o que interessava: uma fábrica de automóveis normalmente era uma fábrica de chassi. Esses chassis podiam andar sem carroceria, afinal de contas, e muitas vezes era como iam até os encarroçadores, pelas ruas. Até hoje ainda persiste esta prática: os fabricantes de caminhões ainda fabricam chassis para ônibus, e estes vão até as encarroçadoras rodando pelas vias.

É interessante como essa prática continua em caminhões pesados, e o porquê:  caminhões de um único modelo podem servir para uma infinidade de usos, e manter o chassi separado ajuda a se montar os implementos, aumentar ou reduzir o entre-eixos e/ou o comprimento final, reforçar-se o chassi de várias formas. Um caminhão de lixo é mais curto que o normal, e um que carrega colchões de espuma leve, bem mais compridos.

Assim era também no início, o fabricante fazendo um só chassi, que servia para tudo. No máximo, oferecia alguns comprimentos de entre-eixos diferentes, mas era só isso. Desta forma, Um Hispano-Suiza H6 podia, por exemplo, ser uma enorme limusine formal para sete ocupantes, ou um curto carro esportivo com chassi curto e carroceria tipo roadster.  Na Inglaterra, era relativamente comum se ter duas carrocerias diferentes para seu Rolls-Royce, uma de verão aberta, uma de inverno fechada. Mas bastou um milionário passar a comprar dois Rolls, um fechado e um aberto, e um deles ficar parado seis meses, para que a prática sumisse: denotava pão-durice, ou, Deus livre his lordship disso, falta de recursos suficientes.

Esta então, é a primeira “plataforma”. O uso de um chassi para 21586230020128934 tipos de carroceria e uso diferentes não é, portanto, nenhuma novidade. É uma prática tão velha quanto o automóvel em si. Com o aparecimento do monobloco, ficou um pouco mais difícil de enxergar essa plataforma claramente, só isso. A indústria evoluiu sobremaneira em tudo, claro, e também o fez por meio de flexibilidade desse termo hoje em dia. Vale a pena passarmos por ele então, mas antes, explicar o aparecimento do tal monobloco.


A carroceria sem madeira

Carroceria não era responsabilidade do fabricante de automóveis, como vimos. Estas eram feitas por encarroçadores, que podiam vir de todas as formas, preços e qualidade. Mas quando Henry Ford começou a fazer carros em volumes de produção modernos, que exigiam velocidade, o antigo método não funcionava. A carroceria, então, passava a ser feita pelo fabricante do chassi, pelo menos em veículos mais baratos.

Morgan até 2019: carroceria de madeira revestida de metal.

Era inicialmente uma estrutura de madeira, como carruagens, mas aqui já normalmente revestida de metal. Existia também revestimento de tecido “plastificado” e couro, mas logo o metal se mostrou o mais prático e barato. Não demorou para alguém perceber que fazer uma carroceria inteiramente em metal seria uma boa. Um deles foi o americano Edward Gowen Budd.

Budd era um engenheiro ferroviário, nascido do Delaware em 1870, que se dedicou principalmente a substituir peças de metal fundido (principalmente ferro) e madeira por peças estampadas em aço, na indústria ferroviária. De rodas a elementos estruturais, até o primeiro vagão totalmente em aço, Budd conseguiu grandes avanços na tecnologia de estampagem.

Ao redor de 1911, o engenheiro-chefe da Hupp Motor Company de Detroit, de nome Emil Nelson, consciente desses desenvolvimentos na área ferroviária, contata a empresa onde Budd trabalhava com uma ideia inusitada: produzir carrocerias de automóvel totalmente em aço estampado. A carroceria era o gargalo da produção de qualquer um fazendo carros em série, afinal de contas. Era um processo que consumia uma incrível quantidade de trabalho e tempo, e desafiava todas as tentativas de mecanização. A pintura também sofria com a estrutura de madeira: o risco de incêndio era real e grave, reduzindo muito as opções de tempo e temperatura de secagem nas estufas, e por consequência, de tintas que podiam ser usadas.

Budd se dedica então a projetar a carroceria do novo Hupmobile; o resultado era um ainda arcaico sistema de montagem, com subconjuntos criados por Budd e enviados para Detroit, onde a Hupp os montava, pintava e acoplava ao chassi. O carro todo em metal foi chamado Hupmobile “32” e era oferecido em modelo tourer aberto, cupê fechado e limusine. A qualidade do sistema todo, como não podia deixar de ser, nessa primeira tentativa, era errática, e os tempos de montagem e pintura continuavam grandes. Logo Emil Nelson deixava a companhia e a produção dos Hupmobile revertiam aos métodos tradicionais de carroceria com estrutura de madeira.

Dodge 1916: em aço

Mas ao invés de se sentir derrotado, Budd enxergou um futuro diferente. Entendeu que as possibilidades das carrocerias em chapas de aço estampadas eram imensas, se fossem estudadas melhor e evoluíssem. Em 1912, funda a Edward G. Budd Manufacturing Company, para explorar este mercado ainda inexistente.

Em pouco tempo, o método moderno de chapas de aço estampada em várias peças, juntas por solda à ponto em uma carroceria, é desenvolvido por Budd. Vende patentes para todo lado, dois pioneiros a Citroën na França e a Dodge nos EUA. O Citroën de carroceria toda em aço torna André Citroën o “Henry Ford da França” nos anos 1920, e sua empresa a maior do continente em vendas. Na Inglaterra, onde cria a Pressed Steel Co. com William Morris, viabiliza a indústria de massa inglesa com uma fábrica de carroceiras que trabalhava praticamente para todas as marcas. Uma evolução importantíssima na história do automóvel como produto de massa. Mas ainda com o chassi, a “plataforma”, separados.

Com o chassi separado, continuava a prática de se fazer um só chassi para um monte de carro diferente. Em 1955, como exemplo, a Chevrolet oferecia 18 carros diferentes no mesmo chassi: de furgão de entrega “Delivery wagon” até o Corvette. Ainda era necessário mais um passo adiante para chegarmos no que temos hoje: o monobloco.


O carro sem chassi

O último ingrediente que faltava para o carro moderno era o fim do chassi: a carroceria monobloco em aço estampado e soldado. Muitos outros monoblocos existiram em protótipos e/ou baixíssima produção antes, mas o primeiro monobloco de real importância histórica foi sem dúvida nenhuma o Lancia Lambda de 1923. Vicenzo Lancia, um piloto que se tornou fabricante, pretendia baixar o centro de gravidade do carro e torná-lo mais rígido estruturalmente, ainda hoje importantes benefícios deste tipo de construção.

Seu Lambda era um carro revolucionário, e anos à frente do que havia a venda então: o monobloco dava uma rigidez inédita, facilitando sobremaneira o trabalho das suspensões. A suspensão dianteira era independente por coluna deslizante, e o centro de gravidade baixo fazia o seu comportamento dinâmico excelente, completamente inédito ao seu tempo. Ajudavam aqui os bons freios nas quatro rodas, algo ainda incomum então.

E, sem querer, foi o Lambda que trouxe ao mundo o túnel da transmissão: devido à carroceria bem baixa foi preciso arranjar um lugar para o cardã passar.

Lambda: a obra prima de Vicenzo Lancia.

Mas em pouco tempo a empresa reverteria ao chassi separado. O motivo era simples: o Lambda era um carro caro, e de forma alguma produzido em larga escala. Os clientes deste tipo de veículo ainda estavam acostumados a encomendar carrocerias em sua casa preferida, às vezes com desenho exclusivo. O monobloco dificultava tal coisa, o que acaba dificultando as vendas. Os clientes de carros caros ainda demorariam para abraçar as vantagens do monobloco.

A estrutura do Lancia também não era algo fácil de fazer. Era construído a partir de chapa de aço, mas não no sistema moderno de estampos e solda a ponto; era feito manualmente usando peças de curvaturas não complexas. Todos sabiam qual era o passo seguinte; um monobloco criado com chapas estampadas e solda a ponto, algo hoje universal, mas ainda inexistente então. Desta forma, sem chassis, o carro podia ficar tão baixo quanto um Lancia Lambda, com todas as vantagens que isso gera, mas produzido aos milhares á preço baixo.

Foi necessário um industrial corajoso para tomar este passo: André Citroën. Juntando as vantagens do monobloco, das suspensões independentes, e da tração dianteira em um só carro, cria o Traction Avant em 1934. Pena que, endividado e quase falido, não chega a ver o sucesso e a influência dele: sua úlcera vira câncer de estômago, e vem a falecer na mesa de operação ainda em 1934.

Em 1969, Dante Giacosa com seu Fiat 128 adicionaria o motor transversal em linha com o transeixo, suspensão McPherson na frente, direção por pinhão e cremalheira, freios a disco e pneus radiais ao monobloco de aço, fazendo o esquema básico do automóvel, até hoje.


A plataforma

Antes, um parêntese: existiu entre o monobloco e o chassi escada separado, um meio termo. Chama-se chassi-plataforma. Difere do escada por ser a parte de baixo do monobloco, separada dele e carregando a mecânica completa. Também difere por ser montado diretamente na carroceria, formando seu assoalho, e com ele se tornando rígido como monobloco. O exemplo mais conhecido é o Fusca. Por isso mesmo, o Fusca gerou uma infinidade de derivados: é efetivamente uma plataforma, mas desmontável, não soldada. Gente podia fazer carros com essa plataforma até em casa, e o fizeram: o buggy de praia o maior exemplo disso.

VW: a “plataforma” original.

Por isso o Fusca é o melhor exemplo de plataforma. Na mesma base, se faz: um Karmann-Ghia com dois lugares (2+2, para quem acha que dá para andar no banco de trás de Karmann-Ghia), motorista com a bunda no chão do carro, ao centro dele e com pernas esticadas. Um Fusca, de cinco lugares e motorista sentado mais adiante, mais alto, com pernas flexionadas como uma cadeira de bar. E a Kombi (que não tem chassi-plataforma, é monobloco, mas segue as dimensões e mecânica do Fusca), onde se senta em cima do eixo dianteiro, mas leva-se nove pessoas.

Uma plataforma é, hoje, nada mais que isso, feito de outra forma. Uma base de engenharia comum, de onde se fazem diversos veículos. Não é ser o mesmo veículo, como muita gente gosta de dizer. Um Puma e uma Kombi são totalmente diferentes em tudo, mas compartilham a mesma plataforma. Uma coisa é uma coisa outra coisa é outra coisa

Entre-eixos variável, com serra e solda.

Para além do chassi-plataforma, a evolução chega no monobloco e a tal “plataforma” moderna. Inicialmente, era a base física mesmo. O “Chinelão”, a parte de baixo do monobloco, visível apenas durante a produção do mesmo: o assoalho completo, mais o curvão (parede corta-fogo dianteira), e toda frente do carro, sem capô e paralamas externos. Com isso, no máximo se podia fazer uma versão de entre-eixos maior colocando um “enxerto” de metal no meio, mas o resto das dimensões se mantinha igual, em carros com a mesma “plataforma”.

Mas o que ocorre aqui é uma mudança não técnica, mas político/sociológica empresarial. Antigamente, se usava a mesma plataforma para vários carros para se economizar ferramental. O ferramental, as máquinas e moldes específicos para um veículo individual, era o mais caro num projeto de um novo carro. Você precisava colocar o preço disso, pago antes da produção, amortizado no preço final de venda. Então, você devia usar exatamente as mesmas peças, o máximo delas possível, no carro novo.

O “chinelão” com bancos e volante: a plataforma tradicional.

Mas o que aconteceu é que hoje, o mais caro é a homologação e validação. Do carro, e de cada componente dele. É o projeto e teste de coisas novas. Então, a importância de se manter EXATAMENTE a mesma peça diminui. Mesmo porque, hoje os volumes estão maiores e vários ferramentais são necessários de qualquer forma; pode-se alterar um deles para uma versão X e boa. O que interessa é manter o conceito, e peças importantes como suspensão, freios, motor e câmbio, ar-condicionado, arquitetura elétrica, etc. Chapas de aço estampadas? Não são mais tão importantes, desde que montem as peças e subconjuntos pré-validados nele.


Arquitetura

O nome que se definiu para esta nova fase é “arquitetura”. Nela, os componentes principais de uma dada arquitetura têm que ser montados na carroceria nova, que pode ser teoricamente completamente nova. Mas como tem que montar os mesmos bancos, cintos, coluna de direção em certa posição com airbags, motor, câmbio suspensão, etc, acaba muito parecida, e usando peças de carroceria também comuns. Mas não precisa!

O Opel Corsa 4400

Alguns exemplos são interessantes aqui para que se entenda isso. Primeiro vejam o Chevrolet Agile: é baseado no Corsa 4200, aquele de 1993, do qual também derivou o Celta. Mas tem tantas peças diferentes que se pergunta; por que motivo não se fez tudo novo? Ou usou-se de base o Corsa 4300 (o de 2002), mais avançado? Simples, preço de venda. Todos os subconjuntos do 4200, de suspensão a ar condicionado e todo resto no meio, eram mais baratos que os do 4300, e preço de venda era crucial para ele. Dá para reconhecer um monte de peça do Corsa no monobloco do Agile, mas era tudo novo e diferente ali, de performance em crash-test á posição de dirigir. Até os bancos (a estrutura; não capinhas e espumas) eram diferentes, do 4300, o que teoricamente foge um pouco do conceito de plataforma.

Spin: também parente do 4400.

Ainda mais maluco foi o que aconteceu com o Corsa 4400, o alemão de 2006 que não tivemos por aqui. Desenvolvido na época em que a GM e a Fiat estavam dividindo lençóis em paixão ardente, apareceu na Itália como Grande Punto (o Punto, sem Grande, era o Palio deles, menor). Este carro veio ao Brasil como Punto, mas usando a plataforma do Palio, e era outra coisa diferente. O Corsa 4400 virou, na Coréia, a plataforma GSV (Global Small Vehicle), com várias modificações, o carro mais conhecido desta plataforma o Sonic que recebemos aqui, e foi vendido nos EUA.

Pois bem, o GSV aqui no Brasil virou GSV-EM (Emerging Market), simplificado e barateado. Conhecemos ele como Onix, Cobalt e Spin. Mas a Fiat, separada da GM agora, continuou desenvolvendo e modificando esta plataforma: o Jeep Renegade, Compass e até o Toro, são evoluções muito modificadas do Opel 4400/Grande Punto! Nada do Toro monta num Spin; mas olhe debaixo deles e veja que o desenho veio do mesmo lugar.

E de novo, não quer dizer que seja o mesmo carro. Um Cobalt por exemplo, é muito diferente, e em muitos casos muito melhor, que o Sonic com motor 1.6 16v que veio ao Brasil. Um Renegade não tem nada a ver com um Spin. Gente, de novo; uma Kombi e um Puma são bichos MUITO diferentes, apesar de compartilhar mais peças que qualquer dois carros modernos de mesma plataforma. Esta é a beleza disso: com componentes similares, pode-se mudar muito.

O MQB da VW é a plataforma que foi mais adiante: agora podia-se mudar a largura do carro, se adicionando um enxerto no meio do curvão. Era uma revolução, pois todas as medidas principais podiam ser diferentes, numa mesma plataforma, aumentando seu alcance: de Polo até SUVs enormes. Mas uma medida ainda permanece constante na MQB: a medida de centro de roda dianteira ao curvão. Dessa forma, ainda remete ao antigo “Chinelão”.

Mais moderna, e apontando ao futuro, é a Toyota com sua TNGA: absolutamente nada é fixo. Chega na definição atual da plataforma/arquitetura: são soluções prontas de engenharia para componentes principais. Uma galeria virtual de componentes, pré-validados, que podem ser usados em qualquer carro. Em teoria, permite a Hilux ter componentes grandes em comum com o Corolla, mesmo o Hilux sendo chassi separado! É na verdade mais banco e volante numa posição fixa entre os dois, e o resto pode variar. Mas é claro que funciona bem por exemplo em uma configuração única: todo carro de motor transversal monobloco vai ter muito em comum, sem ter exatamente o mesmo monobloco.

Por isso é cada vez mais difícil ver as plataformas de forma física. O melhor é sempre analisar o resultado: o carro é mais rígido, mais leve, mais barato? Anda mais, custa menos? A plataforma é um problema dos engenheiros que tem que fazer aquilo acontecer, não nosso. Nossa posição é bem mais fácil: que se lasque se a plataforma é nova ou velha: me dê resultados, que aceito!