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Pensatas

O que está por trás da eletrificação forçada dos carros?

Em pouco mais de dez anos, o ronco dos motores a combustão, que há mais de um século compõe a trilha sonora urbana, pode se tornar apenas uma memória. Há um esforço contínuo para substituí-lo pelo silêncio dos motores elétricos que destaca o ruído da rolagem dos pneus e do vento deslocado pela carroceria. Na Europa, leis ambiciosas anunciam o fim da venda de carros a gasolina e diesel até 2035. Nos EUA, estados como Califórnia e Nova York seguem o mesmo caminho, empurrando consumidores e fabricantes para uma realidade fabricada.

Mas essa transformação não está acontecendo por acaso.

O motor de combustão interna dominou o século XX porque era eficiente, relativamente barato e apoiado por governos que viam na indústria automotiva uma força econômica. Hoje, esse motor de combustão que impulsionou o progresso industrial é visto como um problema ambiental que precisa ser eliminado.

E enquanto muitos tratam o avanço dos elétricos como algo moderno e inevitável, o processo que levará à sua adoção em massa é menos natural do que parece. Não é apenas uma questão de consciência ambiental ou evolução tecnológica. Por trás das políticas que prometem cidades mais limpas e ruas silenciosas, há uma complexa rede de incentivos, lobbies e interesses globais. Um jogo no qual fabricantes, governos e organizações internacionais disputam não apenas o futuro da mobilidade, mas também o poder econômico e político no cenário global.


No início do século passado, quando automóvel ainda era sinônimo de aventura e improviso, a paisagem era muito mais diversa do que se costuma imaginar. Havia vapor, havia eletricidade, havia combustão interna. Cada tecnologia tinha seus defensores, seus mecânicos especializados, seus adeptos convictos. Mas, ao contrário do que muitos repetem hoje, a vitória do motor a combustão não foi questão de marketing ou de lobby — foi simplesmente uma questão de funcionalidade.

O carro elétrico de 1900 tinha suas virtudes: silencioso, limpo, fácil de ligar. Mas era caro, pesado e limitado. Servia bem para trajetos curtos e urbanos, onde a autonomia restrita não atrapalhava. Já o motor a combustão podia ser grosseiro e barulhento, mas chegava mais longe, podia ser reabastecido em minutos e custava menos. Quando a estrada começou a chamar, quando o carro deixou de ser apenas um luxo urbano e passou a ser um meio de explorar distâncias, não houve mais disputa. A combustão interna venceu porque atendia melhor à vida real.

Mais de um século depois, a ironia é que estamos revivendo a mesma tensão. O carro elétrico voltou com promessas sedutoras: emissões zeradas na operação, torque instantâneo, silêncio absoluto e, em alguns casos, menor custo de operação. Só que, novamente, ele tropeça no mesmo ponto em que tropeçava na primeira disputa com o motor a combustão: praticidade. Autonomia limitada, infraestrutura insuficiente, recarga lenta e preços ainda proibitivos para a maioria. O motor a combustão continua sendo a escolha óbvia quando se olha para custo, alcance e praticidade de forma geral.

A questão é que o carro elétrico foi ressuscitado pela necessidade decorrente da possibilidade. Há 30 anos ficou claro que era possível fazer um carro elétrico para uso geral, então ele passou a ser visto como uma solução para reduzir as emissões de gases nocivos para o meio-ambiente. A questão é que eles ainda eram (ou são) como os carros elétricos do começo do século passado: apesar da tecnologia de baterias e recarga ter evoluído, a necessidade de transportar a energia que será transformada em movimento traz os mesmos inconvenientes de sempre: autonomia limitada, peso elevado e demora para recuperar autonomia.

É por isso que os governos precisaram entrar em cena. Sem incentivos, o mercado repetiria a escolha natural de antes — porque, sem incentivos, ele já demonstrou que não escolheria o elétrico. Como se trata de uma questão ambiental, que envolve saúde pública e o próprio futuro da civilização, os governos ofereceram cortes de impostos, bônus de compra, créditos de carbono, investimentos bilionários em infraestrutura de recarga. E, mais do que o estímulo positivo, aparece a estratégia negativa: restringir emissões e punir excessos dos combustíveis fósseis, e colocar prazos para o fim de vendas de carros a combustão.

Enquanto o carro de combustão interna venceu por suas qualidades e vantagens, o veículo elétrico precisou de uma estrada artificial, pavimentada com dinheiro público e protegida por legislação. Isso não significa que seja um caminho errado — mas significa que não é espontâneo. A transição para os elétricos está sendo forçada, não escolhida. E é justamente essa diferença que coloca em xeque toda a narrativa de inevitabilidade: será que o EV realmente está pronto para substituir o ICE, ou só está sendo empurrado para frente por quem tem interesses nessa mudança?

Um indício são as vendas de veículos elétricos após a retirada parcial dos incentivos — embora as vendas de elétricos estejam crescendo, as vendas de automóveis, em geral, estão diminuindo. À primeira vista pode ser uma maior adesão aos elétricos, mas considerando que a oferta de elétricos aumenta e a de modelos a combustão diminui, é natural o crescimento. Por outro lado, a redução das vendas em geral, pode indicar que o público não quer comprar carros elétricos, ou que a eletrificação aumentou demais o valor dos carros (e, por isso, as pessoas não querem comprar carros novos).

Ainda é cedo para dizer se a demanda induzida será permanente ou se ela só tinha interesse nos benefícios e incentivos. Em todo o mundo eles estão sendo reduzidos e as fabricantes já começaram a revisar seus planos de eletrificação. Na China, onde a participação dos elétricos é maior, a partir do quarto trimestre deste ano, os subsídios para troca de veículos serão reduzidos, e serão eliminados em 2026. Será o teste da realidade, embora o mercado chinês seja o melhor adaptado aos veículos elétricos.


Agora voltemos ao começo deste presente, ainda no final dos anos 2000. Enquanto Europa e EUA hesitavam em se comprometer com o carro elétrico, concentrando-se inicialmente em híbridos, a China seguiu por um caminho próprio. Lá, o automóvel não tinha a mesma carga simbólica que no Ocidente — não havia uma Ford, uma Mercedes ou uma Ferrari moldando a identidade nacional. A China era pouco motorizada até o início dos anos 1990, e não há exatamente uma cultura automobilística local. O carro era, antes de tudo, um vetor de desenvolvimento, um instrumento estratégico.

O governo chinês percebeu cedo que não teria como competir de igual para igual com os fabricantes tradicionais em motores a combustão — que são a maior barreira de entrada na indústria, uma vez que o desenvolvimento é caro e demorado. A defasagem tecnológica era imensa, e a chance de superar mais de um século de expertise ocidental parecia remota. Foi aí que surgiu a aposta: em vez de tentar vencer no campo onde já havia um campeão consolidado, a China escolheria um jogo novo — e o carro elétrico foi a peça perfeita para isso.

Vieram então os subsídios bilionários — incentivos fiscais, a construção de uma infraestrutura de recarga em ritmo de guerra. A política industrial foi desenhada para que a produção de baterias, motores e semicondutores tivesse cadeia completa dentro do país. Resultado: em menos de duas décadas, a China deixou de ser coadjuvante e se tornou protagonista. Hoje, concentra mais de 70% da produção mundial de baterias de íons de lítio, domina a mineração e o refino de minerais críticos e tem em empresas como BYD e CATL nomes que rivalizam — e até superam — gigantes históricos.

O curioso é que esse movimento não foi apenas tecnológico, mas também ideológico. Enquanto governos europeus e americanos falavam em transição energética, a China estava construindo a sua vantagem competitiva. O discurso ambiental no Ocidente abriu espaço para políticas que, no fim das contas, beneficiam diretamente a indústria chinesa. Não por acaso, a explosão de exportações de carros elétricos chineses coincidiu com a aprovação de leis de banimento dos motores a combustão em mercados estratégicos.

Aqui, a pergunta inevitável aparece: foi coincidência ou planejamento? O certo é que, quando as legislações europeias e americanas decidiram fixar prazos para o fim dos ICE, a China já estava pronta para ocupar o espaço. A indústria local não apenas tinha escala, mas também preços imbatíveis, viabilizados pela integração vertical e pelos subsídios estatais.

No fundo, o que se viu foi um “atalho geopolítico”. O carro elétrico, vendido como a salvação climática, tornou-se também uma ferramenta de poder econômico. Se o motor a combustão foi o símbolo da hegemonia industrial do Ocidente, o carro elétrico é, cada vez mais, a bandeira da China.


A trama por trás dos elétricos

As leis que estão impulsionando os carros elétricos no mercado não surgiram por acaso. Elas passam por parlamentos, comitês e audiências públicas, mas, nos bastidores, think tanks e grupos de pressão moldam prioridades, discursos e agendas políticas. Na Europa, onde os lobbies são legalizados, organizações como Transport & Environment (T&E), European Climate Foundation (ECF) e ICCT (International Council on Clean Transportation) atuaram intensamente junto à União Europeia, influenciando diretrizes e metas ambientais, fornecendo estudos e dados técnicos que fundamentaram as decisões legislativas. Nos EUA, onde lobbies também são legalizados, associações como a Zero Emission Transportation Association (ZETA) desempenharam papel equivalente, junto a fundações internacionais que financiam pesquisas sobre transporte limpo e políticas de incentivo.

Esses grupos não atuam isoladamente. Eles recebem financiamento de uma rede global de fundações e investidores internacionais que compartilham a visão de acelerar a transição energética — e aqui a visão não é necessariamente uma questão climática.

O mecanismo é o seguinte: fundos internacionais como o Rockefeller, Hewlett, MacArthur, Packard, financiam organizações voltadas a questões ambientais. Estas organizações repassam recursos a think tanks especializados como o Conselho Internacional para Transporte Limpo (ICCT), Rocky Mountain Institute, Conselho de Defesa de Recursos Naturais (entre outros), que produzem relatórios e participam de consultas e audiências, atuando junto aos legisladores. O resultado são as políticas de incentivo e regulação favoráveis aos veículos elétricos — metas de CO2, proibição de motores a combustão, subsídios para elétricos etc). É o velho “follow the money”.

O resultado é um ecossistema cuidadosamente preparado: governos forçam consumidores e indústria, lobbies fornecem justificativas científicas e sociais, e a China observa, pronta para colher os frutos de um mercado que cresce antes mesmo de estar plenamente maduro. A influência dos think tanks, apoiada por doadores e fundações internacionais, mostra que a aprovação das leis favoráveis aos elétricos não foi apenas política ou ambiental, mas também um jogo de estratégia global, onde tecnologia, investimento e poder econômico se entrelaçam.


O futuro do clima

A transição do motor a combustão para o elétrico não é apenas uma mudança de tecnologia. É um investimento colossal em infraestrutura, indústria e legislação, algo que se mede em trilhões de dólares. Literalmente, é a criação de um mercado novo. Na União Europeia, a construção de uma rede de recarga capaz de sustentar a frota elétrica projetada até 2035 exige investimentos significativos. Estimativas indicam que serão necessários cerca de €80 bilhões até 2035 para atender à demanda por pontos de recarga, com €50 bilhões destinados a carregadores privados e €30 bilhões para carregadores públicos.

Nos EUA, os subsídios diretos, créditos fiscais e programas de incentivo para veículos elétricos (EVs) somam cifras consideráveis. Por exemplo, na Califórnia, os custos totais de subsídios para veículos de emissão zero (ZEVs), incluindo créditos fiscais federais e estaduais, bem como subsídios para infraestrutura de recarga privada e pública, provavelmente ultrapassam US$100 bilhões.

A China investiu aproximadamente US$ 231 bilhões em subsídios e incentivos para o setor de veículos elétricos entre 2009 e 2023 — montante que inclui subsídios diretos à compra de veículos, isenções fiscais e apoio à infraestrutura de recarga, distribuídos entre governo central e governos locais, mas não considera os incentivos às fabricantes. Para o período de 2023 a 2026, o governo chinês anunciou um pacote de incentivos fiscais de US$ 72 bilhões, visando estimular a compra de veículos elétricos e híbridos. Esse pacote inclui isenções fiscais para compradores de EVs e outras medidas de apoio ao setor.

E quanto disso realmente muda o clima? A resposta é mais complexa do que a narrativa simplificada sugere. A redução de emissões depende diretamente da matriz energética de cada país, da eficiência das baterias e da logística de produção e reciclagem. Projeções da Agência Internacional de Energia indicam que os impactos climáticos globais se tornarão perceptíveis de forma consistente apenas após 2040. Até lá, os elétricos reduzirão emissões locais, mas o efeito agregado ainda será uma fração dentro do conjunto de emissões industriais, agrícolas e energéticas do planeta.

O que esses números mostram é que o esforço financeiro é descomunal em relação ao retorno climático imediato. Trilhão a trilhão é colocado na mesa, enquanto os efeitos sobre a redução de CO2 demoram décadas para se consolidar. E, enquanto isso, quem já domina a cadeia global de EVs — principalmente a China — observa esse fluxo de investimentos, pronto para consolidar sua liderança.

Essa é a dimensão estratégica da transição: não é apenas uma questão climática, mas também — e talvez até mais relevante — uma questão de disputa de mercados e poder econômico. Cada estação de recarga, cada subsídio e cada lei que limita o ICE é também um movimento nesse tabuleiro global. O que parece uma questão ambiental é, na prática, um investimento estratégico que envolve governos, lobbies, investidores e fabricantes que já estão posicionados para lucrar com essa mudança, muito antes que os efeitos sobre o clima sejam sentidos de fato.

Isso, porque atualmente o transporte corresponde a apenas 14% das emissões globais. No entanto, mesmo se 100% dos veículos fossem elétricos, a matriz energética atual limita drasticamente o efeito positivo. Com cerca de 60% da eletricidade mundial ainda proveniente de combustíveis fósseis, a demanda adicional deslocaria emissões do transporte para o setor elétrico, elevando a participação deste nas emissões globais de 35% para algo entre 40 e 45%. O carro elétrico, neste contexto, não elimina emissões — ele apenas muda onde elas ocorrem. A conclusão é clara: sem descarbonizar a geração de eletricidade, a eletrificação do automóveis por si só oferece benefícios climáticos limitados.


Quando o último motor a combustão desaparecer das ruas, não será apenas o ronco e a praticidade que serão perdidos. A própria estrutura geopolítica atual será modificada — uma transição calculada, em que tecnologia, política e interesses financeiros se cruzam de maneira inédita. Europa e EUA promovem tudo isso em nome do clima. Mas, por trás das boas intenções, existe uma realidade mais complexa.

O interessante é que essa sobreposição de interesses — governos que aceleram a eletrificação, lobbies financiados por fundações internacionais, investidores globais, e a indústria chinesa já consolidada — cria uma coincidência funcional que ninguém precisa declarar oficialmente para ser eficaz. É um jogo de vantagens: o carro elétrico avança mais rápido do que conquistaria sozinho, e a China, que já domina a produção de baterias, controla matérias-primas estratégicas e possui empresas prontas para ocupar cada espaço que se abrir no mercado global, se beneficia economicamente dessa velocidade imposta.

A transição, portanto, não é apenas tecnológica ou ambiental. É estratégica, econômica e, inevitavelmente, geopolítica. Cada lei, cada subsídio e cada estação de recarga é uma jogada nesse tabuleiro global, em que o silêncio do motor elétrico esconde não apenas a redução de emissões, mas também a disputa de poder entre regiões, empresas e fundos de investimento.

No fim, a questão permanece: o futuro do transporte é mesmo determinado pelo clima?


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