21 de julho de 1987. Enzo Ferrari dirige-se ao centro cívico de Maranello, onde jornalistas de todo o mundo o aguardam para a apresentação de seu mais novo modelo. Àquela altura o último modelo inédito da marca, a Testarossa, tinha somente três anos de estrada. O que mais o Commendatore poderia apresentar?
O modelo era nada menos que a Ferrari F40, que deixou aqueles jornalistas boquiabertos com suas formas elegantes e ousadas e depois voltou a deixá-los impressionados com seu desempenho bruto e jamais visto em um carro de rua. Era literalmente um carro de corrida para as ruas — o carro que criou este clichê.
Mesmo depois de 30 anos ela ainda continua mais admirada e desejada que ao menos duas de suas sucessoras, a F50 e a Enzo. Mais incrível ainda, é que ainda há fatos desconhecidos ou pouco conhecidos sobre este ícone de três décadas. Por isso, em vez de contar sua história no formato tradicional, decidimos contá-la de um jeito diferente, contando mais sobre estes fatos.
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A F40 nasceu como resposta ao Porsche 959
Que a Ferrari F40 foi derivada de um projeto abortado para o Grupo B não é novidade. O que nem todos sabem é que a ideia para construí-la não foi motivada pelo cancelamento da categoria pela FIA, e sim pelo Porsche 959.
A história começou no Salão de Frankfurt de 1985, quando a Porsche deslumbrou o mundo com um protótipo chamado 959, desenvolvido para disputar as competição de turismo e rali do Grupo B. Ele usava um flat-six biturbo de 450 cv que, além de ter 50 cv a mais que a 288 GTO, também levaria o carro aos 317 km/h de velocidade máxima — 11 km/h a mais que a GTO. E como se não bastasse, ele ainda teria um sistema eletrônico de tração integral e suspensão com ajuste de altura e carga dos amortecedores. Era o supercarro do futuro, que fez a 288 GTO parecer um supercarro do passado. Ultrapassado.
A Ferrari precisava fazer algo.
Foi um dos últimos filhos do Grupo B
Esse algo era o esportivo mais rápido do mundo, como disse Giovanni Razelli, o diretor-geral da Ferrari na época, “o esportivo mais rápido do mundo tem que ser uma Ferrari”. Naquela época ela já estava desenvolvendo a 288 GTO Evoluzione de acordo com o regulamento do Grupo B (que não era apenas voltada aos ralis, mas também a provas de asfalto e circuitos), que usava um V8 biturbo de 650 cv.
A Ferrari chegou a construir cinco exemplares dos 20 necessários para a homologação, mas na metade de 1986, quando a F40 começou a ser desenvolvida, a FIA cancelou o Grupo B. Com isso, o projeto 288 Evoluzione acabou se tornando um laboratório de testes para a F40, que assim se tornou um dos últimos filhos da categoria.
Note como as proporções e o perfil básico da 288 GTO Evoluzione já tem muito da F40. É como um rascunho do que seria finalizado pela Pininfarina.
Enzo sabia que a F40 seria a última Ferrari que ele veria
Aos 88 anos, Enzo sabia que sua vida já estava chegando ao fim, talvez por isso tenha decidido encerrar sua carreira da mesma forma que a começou. Em vez de responder à Porsche com um supercarro tecnológico, Enzo Ferrari olhou para seu passado e decidiu que seu supercarro seria uma “verdadeira Ferrari”, construída à moda antiga, com foco total no desempenho e na pilotagem da máquina.
Em entrevista ao Top Gear, o designer da F40, Leonardo Fioravanti, lembrou como (e por que) era intenso o desejo de Enzo construir um “carro de corrida para as ruas”: “O Commendatore perguntou minha opinião sobre a 288 GTO Evoluzione e foi a primeira vez que ele me falou sobre seu desejo de produzir uma ‘Ferrari de verdade’. Nós sabíamos, e ele sabia que aquele seria seu último carro.”
Foi a primeira Ferrari desenhada pelo vento
Nos últimos anos, com a aerodinâmica assumindo um papel predominante no desenvolvimento dos carros — tanto os de corrida quanto os de rua — eles acabaram todos muitos parecidos. É o que acontece quando as formas do carro são definidas pelo vento, que é igual para todos. E isso torna o design da F40 ainda mais especial.
A F40 não foi a primeira Ferrari desenvolvida em um túnel de vento, mas foi a primeira Ferrari cujas formas foram definidas pela aerodinâmica. Leonardo Fioravanti, designer responsável pelas linhas do carro na Pininfarina, já disse em diversas ocasiões que o design foi baseado nos resultados das pesquisas em túnel de vento, não apenas para cortar o vento e se tornar o carro mais rápido do mundo, mas também para otimizar o arrefecimento do V8 biturbo.
É por isso que ela tem aquela dianteira baixíssima, com o balanço mais curto possível para acomodar as rodas dianteiras sob o capô, dutos NACA por todos os lados e uma asa traseira integrada, e não destacada como na maioria dos esportivos.
A F40 foi o primeiro “carro de corrida para as ruas”
O plano de Enzo em fazer uma “verdadeira Ferrari” (em 13 meses, lembre-se) incluía uma das regras básicas de um carro de corrida: reduzir o peso ao máximo. Sendo uma equipe de corridas, a Ferrari recorreu às tecnologias usadas pela Scuderia na época. O chassi tubular tipo spaceframe foi revestido de kevlar e usa paineis colados de fibra de carbono, que é o mesmo material das portas, capô e cobertura do motor — exatamente como um carro de corridas.
Por dentro, a redução de peso dispensou carpete, máquinas para abrir as janelas das portas (nos primeiros modelos havia apenas uma janelinha deslizante), isolamento acústico, sistema de áudio, ventilação forçada (os dutos NACA no capô estão lá para isso) e até mesmo maçanetas para abrir as portas (havia apenas uma cordinha pendurada no painel vazado da porta.
Os únicos itens revestidos da cabine eram o painel, o túnel central, os bancos, o teto e os para-sois — todos de nomex nos primeiros exemplares. Ah, e o volante de camurça. É por isso que a F40 justifica o apelido de “carro de corrida para as ruas” — algo que se tornou um clichê depois dela.
A F40 não tem vidros
O comprometimento com o baixo peso fez com que a Ferrari não usasse nem um pixel de vidro na F40. As quatro janelas, o para-brisa, a capa do motor, o vigia traseiro e as lentes dos faróis fixos são todas feitas de resina de policarbonato (Lexan).
A pintura da F40 usa apenas dois litros de tinta
A pintura não escapou da economia de material para manter o peso baixo: a camada de tinta é tão fina que é possível ver a trama das fibras de carbono da carroceria. Dizem que a Ferrari usou apenas dois litros de tinta para cada exemplar.
Até mesmo o motor da F40 foi aliviado
Embora fosse uma variação do V8 2.8 da GTO Evoluzione, a equipe liderada por Ermanno Bonfiglioli, dividiu o foco entre a potência e a redução de peso. Como resultado ele usa cárter, tampas de válvula, coletor de admissão e capa-seca do câmbio todos feitos de magnésio, que é muito mais caro que o alumínio, mas também mais leve.
O bloco era o V8 Dino, mas todos os componentes internos do motor foram modificados em relação ao V8 da 288 GTO. Foram usados novos pistões, bielas e virabrequim, que reduziram o curso para 69,5 mm e aumentaram o diâmetro dos cilindros para 82 mm — e também passaram a suportar a pressão máxima de 1,1 bar aplicada pelos dois turbos para produzir 478 cv.
A F40 foi o primeiro carro a usar os pneus Pirelli PZero
Um dos obstáculos para o desenvolvimento dos supercarros é que, via de regra, eles trazem um novo patamar de desempenho e isso quase sempre exige que a tecnologia de pneus evolua junto com eles. Por isso, quando a F40 foi lançada, ela usava um pneu desenvolvido especialmente para ela: o conhecido Pirelli PZero, que divide o mercado de esportivos com os Michelin Pilot Sport.
O primeiro P Zero tinha uma estrutura diferente de todos os outros pneus da época: sua zona de contato entre o pneu e o aro usava kevlar para aumentar a estabilidade estrutural do pneu e reduzir seu peso em cerca de 10%. Ele também tinha uma banda de rodagem com desenho assimétrico e feito com dois compostos diferentes e inéditos pneus 335/35 R17 no eixo traseiro.
O desenvolvimento da F40 levou apenas 13 meses
Talvez tenha sido a idade avançada de Enzo combinada àquele que seria o último desejo de sua carreira — e também ao sentimentalismo italiano. Talvez tenha sido a necessidade de dar uma resposta rápida ao Porsche 959. Ou talvez tenha sido tudo isso. O prazo para aprontar a Ferrari F40 era de apenas 13 meses. Treze meses para sair da cabeça e chegar à linha de produção!
Para se ter uma ideia, o desenvolvimento de um carro costuma durar cerca de três anos. Basta ver quanto tempo demora o lançamento de um carro flagrado em testes — que é uma das últimas etapas do desenvolvimento do carro. A Ferrari 488, por exemplo, deu as caras nas ruas pela primeira vez em abril de 2014, e só ficou pronta em janeiro de 2015. E esse tempo foi gasto apenas no acerto dinâmico e testes de sistemas prontos.
A F40 começou a ser projetada em maio de 1986, e nos 13 meses seguintes os projetos do chassi, da carroceria e do motor correram paralelamente para que o carro ficasse pronto dentro do prazo. Claro, ajudou muito o fato de a Ferrari já ter boa parte do caminho andado na 288 GTO Evoluzione, mas ainda assim tanto o motor quanto o chassi e a carroceria usavam tecnologias inéditas nas Ferrari de rua. Não é algo que você pode fazer com pressa, correndo contra o calendário.
Mas a Ferrari conseguiu, e no dia 21 de julho de 1987, há exatos 30 anos, Enzo Ferrari revelava a F40 no centro cívico de Maranello.
A F40 não foi a última Ferrari desenvolvida por Enzo Ferrari
Diferentemente do que se costuma dizer, a Ferrari F40 não foi o último modelo desenvolvido por Enzo Ferrari. O Commendatore ainda viveu outros 13 meses depois do lançamento da F40. Nesse período ele ajudou a desenvolver e aprovou a 348tb, cujo projeto começou logo após o lançamento da F40 e só foi lançada em setembro de 1989, 13 meses após a morte de Enzo. Notou quantos 13 apareceram nessa história?
Efeito colateral: a F40 atrapalhou o desenvolvimento da 348tb
Qualquer pessoa que já completou um projeto bem-sucedido sabe dos sacrifícios que têm que ser feitos no processo. No caso da F40, o sacrifício foi a qualidade da 348tb, desenvolvida na sequência da F40. Ela tinha todos os elementos das Ferrari de motor central-traseiro anteriores, porém é frequentemente criticada por não se comportar como uma Ferrari em termos dinâmicos. Muitos fãs e jornalistas a consideram um modelo dissonante na linhagem de Maranello, e ela chegou a ser chamada de “carro de merda que só faz barulho e não anda” por ninguém menos que Luca di Montezemolo e Niki Lauda.
A partir de 1:08: “Um carro de merda que faz barulho e não anda. Chamei Niki Lauda, e ele veio e disse a mesma coisa”
O motivo da baixa qualidade dinâmica da 348tb foi, supostamente, a ausência de Dario Benuzzi no desenvolvimento do carro. Benuzzi fora responsável pelo acerto dinâmico de todas as Ferrari desde o início dos anos 1970, quando a Berlinetta Boxer foi lançada. Na fase final do desenvolvimento da F40 ele fraturou uma das mãos, ficando afastado de suas tarefas em Maranello e acabou não se envolvendo com o desenvolvimento da 348tb.
Benuzzi ao volante de uma Testarossa
Sua dinâmica só seria aperfeiçoada em 1993, quando a Ferrari promoveu um facelift que também alterou a bitola traseira, os pontos de fixação da suspensão traseira, a largura das rodas traseiras e a geometria da suspensão, tornando o carro mais controlado e mais preciso dinamicamente. Se a ausência de Benuzzi influenciou tanto assim a 348tb de forma negativa, é algo que nunca saberemos, mas considerando que ele foi o líder do desenvolvimento dinâmico da 512 BB, da 288 GTO, da Testarossa, da F40 e suas variações, da F50, da 550, Enzo, 599, 458, FXX, 599XX e FF, a história faz todo o sentido.
Somente 12 F40 não saíram vestidas de vermelho da fábrica
A F40 originalmente seria apenas Rosso Corsa, mas você sabe como a fabricante gosta de agradar seus clientes mais abonados. Por isso estima-se que doze exemplares da F40 foram pintadas de outras cores. A mais famosa é a F40 preta encomendada pelo presidente do Napoli FC, Corrado Ferlaino (que mais tarde a vendeu para Diego Armando Maradona).
Além desta, há ao menos outro exemplar pintado de preto e mais dez no amarelo Giallo Modena. As outras F40 de outras cores foram todas repintadas após a compra — quase sempre pela Pininfarina.
Somente uma F40 tem bancos de couro originais de fábrica
Esta história já contamos aqui. A F40 saía de fábrica apenas com bancos de competição feitos de fibra de carbono com revestimento acolchoado de Nomex. A única opção era a cor — vermelho ou preto. Mas quando um membro da família Connolly, dona do curtume que fornecia o couro para a Ferrari, decidiu encomendar sua F40 com bancos de couro, o pessoal da Ferrari não viu problemas em fazer um banco exclusivo para o parceiro comercial, ainda que estivesse fora das especificações oferecidas determinadas por Enzo.