O mundo automotivo é apaixonante, mas também pode ser bastante injusto. Por razões as mais diversas, modelos que poderiam ter sido extraordinários acabam suas carreiras prematuramente ou mesmo nem chegam a começá-las. Foram carros injustiçados por pioneirismo, erro de cálculo das fabricantes, rejeição dos clientes, mero esquecimento do público ou por uma mistura de várias dessas coisas. Uma pena.
Para perguntar quem foram os mais injustiçados do mundo, usamos como exemplos a Ferrari F50 e o Chevrolet Corvair. A primeira é esquecida porque ficou entre a F40, um carro mítico, e o Ferrari Enzo, que chamou a atenção pelo estilo controverso. O segundo era revolucionário e bonito, com preço competitivo, mas teve algumas falhas apontadas pelo livro “Unsafe at Any Speed”, do advogado Ralph Nader, e foi mandado para o limbo, com uma má fama retratata até em filmes. Veja os modelos mais representativos da injustiça automotiva logo abaixo:
Tucker 48 (1947-1949)
Este foi um dos mais citados por nossos leitores, especialmente por seu apelido, Torpedo. Esse havia sido o nome de desenvolvimento e apresentação do modelo, mas Preston Tucker teria ficado ressabiado de lembrar a seu público os horrores da Segunda Guerra Mundial e preferiu mudar o nome de seu automóvel para 48.
Revolucionário para sua época, ele tinha motor traseiro, boxer, derivado de um motor Franklin O-335, de uso aeronáutico. Tinha 5,5 litros e gerava 169 cv. Depois de modificá-lo para arrefecimento a líquido (o motor de avião era refrigerado a ar), Tucker o testou e gostou tanto do resultado que comprou a Franklin, o que tirava dos concorrentes a chance de fazer algo parecido. A tração era traseira. Não lembrou um certo Chevrolet de 1959.
De suas diversas inovações, a maioria era ligada à segurança. O farol central (o olho de ciclope) era direcional e acompanhava o rumo apontado pelo volante. Um chassi perimetral, que permitia um assoalho mais baixo, tinha a função de melhorar a proteção aos ocupantes em impactos laterais. O para-brisa era feito de vidro inquebrável e desenhado para ser ejetado em caso de acidente frontal.
O painel era revestido, para amortecer pancadas, e os comandos ficavam todos ao alcance das mãos. A caixa de direção ficava atrás do eixo dianteiro, para proteção do motorista. As portas invadiam o teto, como no Ford GT40 ou no Brasinca 4200 GT, para facilitar o acesso. Tucker tinha uma patente de barra de direção colapsável.
As portas receberam porta-luvas para liberar espaço para uma espécie de crash box diante do passageiro. Motor e câmbio eram instalados em um subchassi preso à carroceria por apenas seis parafusos, o que permitia tirar todo o trem de força em alguns minutos. Tucker imaginava ceder motores temporários a seus clientes para poder consertar os demais sem que o carro ficasse parado na concessionária. É mole?
Muitas outras inovações quase equiparam o carro, como rodas de magnésio, discos de freio, injeção de combustível e pneus sem câmara, mas nada disso teve tempo de ser desenvolvido e foi abandonado antes de chegar na versão final.
A injustiça contra o carro foi o fato de ele nunca ter sido produzido em série. Apresentado antes da hora, ele causou má impressão aos jornalistas presentes. Depois, uma de suas formas de financiamento, um drible na legislação americana, acabou tirando a empresa do ar.
A demanda por carros após a Segunda Guerra Mundial era enorme e havia filas, com preferência para os veteranos. A finta de Tucker foi vender acessórios do carro antes até de ter lançado o modelo. Com isso, os compradores garantiam lugar na fila à frente dos veteranos e escapavam de longas esperas. Teoricamente. Processados pela manobra e minados por reportagens depreciativas, os executivos não tiveram como salvar a empresa. Mesmo depois de todas as acusações terem se provado infundadas.
Só 51 Tucker 48 foram fabricados e um deles está no Museu de Caçapava, em São Paulo, mas foi muito maltratado antes de chegar lá. Outra injustiça com o pobre Tucker…
Porsche 944 (1982-1991)
Foto: Zóltan Bacsa
Por mais qualidades que um Porsche pudesse ter, muitos torciam o nariz para ele se o motor não fosse traseiro, como o do 911. Foi desse mal que padeceu o 944 enquanto foi produzido, de 1982 a 1991.
Equipado com um motor dianteiro e tração traseira, o Porsche que não desafiava as leis da física padecia também de motores de apenas quatro cilindros. Para piorar, quatro cilindros em linha. Refrigerado a líquido!
Não importava que ele andasse bem para seus 1.180 kg mesmo com o motor mais fraco, um 2.5 que rendia 152 cv. Nem que mais tarde ganhasse a opção Turbo S, 3.0 de 253 cv. Ele simplesmente não era o 911.
O futuro veria heresias maiores, como o Cayenne, mas o primeiro a desafiar o reinado do esportivo mor da marca pagaria o preço. Vendeu bem enquanto foi produzido, mas até hoje é olhado meio de lado pelos puristas da Porsche. Dizem que até em concessionárias da marca o pobre 944 é maltratado.
Ferrari Dino (1968-1976)
Foto: Desert Motors
Para muita gente não existe essa de Ferrari Dino. Existem os Dino, uma submarca de modelos fabricados pela Ferrari, mas que não mereciam o mesmo nome dos poderosos flat e V de 12 cilindros do Cavallino Rampante. Injustiça pura de Enzo. Dino era o apelido de Alfredo, seu filho, morto aos 24 anos, em 1956, de distrofia muscular. Quando morreu, Dino trabalhava em um motor V6. E os Dino viriam inicialmente com esse motor, porém fabricado pela Fiat. Cá entre nós, outro motivo para Enzo desprezá-los.
Lançado em 1968, o primeiro Dino era o 206 GT, mas o que ficaria mais famoso, sendo inclusive identificado apenas como Dino, foi o modelo 246 em suas versões GT e GTS. Em vez de um V6 2.0, ele vinha com um 2.4 de 195 cv a 7.600 rpm, nada desprezíveis para seus 1.080 kg. Ele permitia ao Dino atingir 235 km/h de máxima, o que o colocava como um bom oponente ao Porsche 911. Seu motor 2.4 V6 foi usado em outros modelos legendários, como o Lancia Stratos. Mesmo assim, continuou a ostentar apenas a marca Dino.
Foto: Desert Motors
Foi só no 308 que a coisa começou a mudar. Lançado com um motor V8 3.0 de 253 cv em 1973, ele passou a ser vendido com o símbolo da Ferrari a partir de maio de 1976. Foi fabricado até 1980, tendo sido o primeiro Ferrari com motor V8. Na verdade, o primeiro e último Dino. Se carro tivesse vontade própria, era capaz de o 308 ter mandado o Cavallino fanculo…
Edsel (1968-1976)
Outro que, mais do que um carro, deveria ter sido uma marca, como o Dino. Reza a lenda que o pessoal da Ford queria ter criado o melhor carro do mundo, mas não foi bem assim. A Ford, no começo dos anos 1950, percebeu que a Lincoln não competia com a Cadillac, mas sim com Oldsmobile e Buick, marcas intermediárias. Sua ideia, então, foi de colocar a Lincoln como sua marca de alto luxo e criar uma para competir com as que antes eram enfrentadas por ela. Foi aí que apareceu a Edsel.
Fabricada a partir de 1958, ela teve quatro modelos: Citation, Corsair, Pacer e Ranger. Os dois primeiros se baseavam em modelos Mercury e eram maiores. Os dois últimos, em modelos Ford.
Em 1959, apenas dois modelos continuavam em linha, o Corsair e o Ranger. Em 1960, só sobrou o Ranger, vendido como sedã, cupê, conversível e perua, a Villager. Só 2.846 unidades foram vendidas.
Apesar de os carros serem bons, dizem que ele não emplacou porque o marketing foi ruim. Também dizem que o fato de a Edsel não ter fábricas próprias pesou. Mas a razão mais popular de rejeição parece ter sido a grade dianteira. Chamada de assento de privada e de arreio de cavalo, ela ficou mais popular por lembrar uma vulva. A piada da época é que, se botassem pelos em volta, Edsel viraria Ethel. O filho de Henry Ford, Edsel Bryant, morto em 1943 e supostamente homenageado pela iniciativa, deve ter se revirado no túmulo. Seu nome, a partir dali, seria usado como sinônimo de fracasso corporativo. Até hoje.
Audi A2 (1999-2005)
O que poderia ser melhor do que um carro compacto feito inteiramente de alumínio? Que, apesar de seus 3,83 m de comprimento, pesasse apenas 895 kg? É exatamente o mesmo tamanho de um Fiat Palio Fire, que pesa 950kg em sua versão de cinco portas. Hoje, talvez nada fosse tão moderno e sofisticado quanto um A2. Em 1999, quando ele foi lançado, pouca coisa poderia ser tão trabalhosa.
Nada convencional, o carrinho tinha (e tem) manutenção difícil. Seu capô não abre, apenas um pedacinho da grade dianteira, para repor líquidos e checar o óleo. A carroceria de alumínio não tem especialistas capazes de repará-la, o que faz qualquer batidinha ganhar status de perda total. A carroceria, em estilo minivan, também não fez muito a cabeça dos compradores.
Os motores do A2 eram bem interessantes. O mais simples, a gasolina, era o 1.4 de 75 cv. Com o motor 1.2 TDI, a diesel, ele era capaz de fazer 50 km/l. Um espanco de economia, mas nada eficiente no que se refere a conquistar a freguesia. Em 2005, seu último ano de produção, ele teve apenas 176.377 unidades produzidas, contra 1 milhão da primeira geração do Mercedes-Benz Classe A, com o qual ele competia diretamente. Manutenção difícil, estilo controverso e falta de interesse foram os fatores que mataram esse interessante modelos compacto.
NSU Ro 80 (1967 – 1977)
Já falamos dele recentemente. Mas era por conta de seu motor Wankel, um 1.0 de 115 cv que lidava bem com seu corpão de 4,78 m. Agora, ele figura em uma lista da qual nenhum modelo gostaria de constar. E a grande injustiça feita com ele foi seu lançamento prematuro, com sérios problemas de durabilidade a enfrentar. Problemas, diga-se, que custariam caro à própria NSU.
O motor rotativo de dois rotores apresentava desgaste prematuro dos selos, o que fazia o motor ter de ser refeito com apenas 50 mil km. O problema foi resolvido dois anos depois de o carro ser lançado. Bastou usar carboneto de titânio nos componentes. Não podiam ter pensado nisso antes de colocar o carro para vender?
O caso é que, mesmo com a correção, não havia mais tempo de salvar a independência da marca. Em 1969 ela foi comprada pelo grupo Volkwagen e incorporada à Audi. O Ro 80, por outro lado, sobreviveria até 1977. E vendeu bem, obrigado. A injustiça com ele é a acusação de que foi ele que matou a NSU. Correto seria dizer que a marca se matou ao lançá-lo antes do tempo. Se tivesse tido um pouco mais de prudência, talvez estivesse por aí até hoje.
Duesenberg SJ (1932-1937)
Imagine ter um carro com duplo comando de válvulas no cabeçote e compressor mecânico. Com 32 válvulas, quatro para cada um dos oito cilindros em linha. Um motor que gerasse 325 cv a 4.200 rpm. 0 a 97 km/h em 8 segundos, com máxima de 225 km/h em terceira marcha. Salivou? Agora imagine tudo isso em 1932! Isso era o Duesenberg SJ, fabricado de 1932 a 1937 e com apenas 36 unidades fabricadas.
Criado por Fred Duesenberg, que desgraçadamente morreria no mesmo ano em que o SJ faria sua estreia (meses depois, na verdade), o Duesy, como é chamado, é um dos carros mais extraordinários já fabricados.
Era usado pela realeza da época. Foi o automóvel de Al Capone, Greta Garbo, Howard Hughes, Mae West, Clark Gable, William Hearst e muitos outros. Ter um Duesenberg era melhor do que ter um Rolls-Royce. Mais exclusivo. Até porque só o chassi e o motor eram vendidos. O resto tinha de ficar a cargo de algum carrozziere. Por isso cada um deles é diferente do outro.
O que há de injusto a respeito dele? Primeiro, o fato de tão poucos terem sido fabricados. Segundo, o de tão pouca gente conhecer. A maioria só ouviu falar de Bugatti, Alfa Romeo, Isotta Fraschini, mas e do Duesenberg SJ? E dos demais Duesenberg? Se você já conhecia, parabéns.
Delorean DMC-12 (1981-1983)
Muitos dizem que, se não fosse o filme “De Volta para o Futuro”, esta cria de John De Lorean teria se perdido no tempo. É possível, mas duvidamos. Primeiro, por causa de sua filiação. Segundo, porque ele era diferente demais de tudo que era fabricado na época para passar batido. Terceiro, porque ele não chegou a ter uma história propriamente dita.
Toda a parte técnica do carro e os motivos pelos quais ele decepcionou estão em nossa matéria sobre a possibilidade de ele voltar a ser fabricado no Texas. Mas foram acusações de que De Lorean estava envolvido com tráfico de drogas que enterraram a empreitada. E o carro.
O injustiçado não foi nem o DMC-12, mas sim seu pai. Anos depois, inocentado das pesadas acusações feitas a ele, só restou a De Lorean escrever aos criadores de “De Volta para o Futuro” por manter seu sonho vivo, de alguma forma.
Fiat Multipla (1998-2004)
Ele tinha seis lugares. Três à frente e três atrás. Era espaçoso, tinha ótima visibilidade e quem já o dirigiu. Tudo isso em apenas 4 m, só 4 cm a menos que um Tipo. O problema? O Multipla era muito diferente. Pra não dizer feio. Pra não dizer horroroso.
O teto parecia mais largo do que a parte inferior e as colunas traseiras eram arredondadas. Os faróis ficavam na base do para-brisa. As lanternas traseiras tinham uma aparência triste, como feijões sem algodão, e os retrovisores pareciam as orelhas do Dumbo.
Por mais qualidades e ousadia que tivesse, e mesmo sendo um carro legal de dirigir, não emplacou. Até foi reestilizado, em 2004, para ter um estilo mais convencional, mas não chegou a ter uma segunda geração. O que é significativo.
Mercedes Classe A (1997-2004)
O modelo compacto da Mercedes-Benz prometia revolucionar o mercado. Chassi sanduíche, para dar mais resistência a impactos e fazer o motor deslizar para baixo em caso de colisão frontal, ótimo espaço interno, motores modernos e a qualidade característica da marca alemã. Mas tudo começou a dar errado quando o carro foi apresentado à imprensa especializada.
Em 1997, o jornalista sueco Robert Collin, da revista Teknikens Värld, efetuou com o Classe A o chamado teste do alce, no qual o motorista tenta desviar de um animal de grande porte que apareça subitamente na pista. O Classe A capotou.
A Mercedes-Benz se apressou em equipar o carro com uma série de salva-guardas eletrônicas, não sem antes ressaltar que não fazia isso por conta do incidente, mas sim porque o Classe A merecia. Não colou.
O carro era elogiado, mas considerado caro. O preço e suas dimensões compactas acabaram por tirar do modelo o brilho que se esperava que ele teria. Tanto que a segunda geração abandonou o chassi sanduíche e a terceira deixou para lá o estilo minivan. Agora, o Classe A é um belo hatchback.
Chrysler Airflow (1934-1937)
Ele também poderia ser chamado de “o breve”. Ficou no mercado por apenas três anos, mas mudaria os rumos da engenharia para sempre. Ele foi o primeiro modelo de fabricação em série a levar em conta a questão da aerodinâmica, mas não apenas isso.
É por causa do Airflow que os passageiros não se sentam mais sobre ou depois do eixo traseiro, o que fazia com que eles fossem catapultados para cima. Bastava o eixo traseiro passar sobre alguma irregularidade, como uma valeta ou lombada. A distribuição de peso, vazio, ficava em 54%/46%, o que se tornava 50%/50% quando os passageiros estavam no interior. A carroceria era monobloco, mas curiosamente ainda era rebitada a um chassi.
A injustiça foi ele ter nascido antes do tempo. O mundo só estaria preparado para suas soluções algumas décadas mais tarde.
Sentiu falta dos nacionais? Aguarde. A segunda parte da pergunta vem aí!