Dez anos. É o que o carro de combustão interna tem pela frente — ao menos na Europa e na Califórnia. China, Índia, Brasil, Japão, Austrália e África foram mais prudentes e decidiram esperar mais. Europa e Califórnia (leia: EUA) já decidiram que carros, motos e utilitários que queimam gasolina, diesel ou etanol (sim, até o limpinho etanol) não poderão mais fazer parte de sua realidade local e proibiram sua venda a partir de 2035.
E embora 2035 seja daqui a 13 anos e não dez anos como eu disse, há uma questão que o grande público não leva em consideração — não por maldade, mas porque ela não faz parte do imaginário coletivo mesmo: carros levam mais ou menos cinco anos para serem projetados. Como não se pode projetar carros com uma tecnologia que não existe, os carros que precisam estar a venda em 2035 serão projetados com a tecnologia de 2030. E aí aqueles dez anos que eu falei se tornam sete, na prática.
A decisão força os fabricantes a acelerar o desenvolvimento de novas tecnologias. Até aí o problema é contornável: se você tem pouco tempo, basta aumentar o número de pessoas e de dinheiro. Se você tem 24 horas para fazer um trabalho de 48 horas, é só dobrar o número de gente trabalhando ou dobrar o investimento e você terá o dobro de trabalho no mesmo tempo. 48 horas em 24. É um exemplo simplista, mas acho que ilustra bem.
Isso já está acontecendo há algum tempo: as fabricantes investiram mais em pesquisa e desenvolvimento e as colocaram logo nos carros. E é por isso que o preço dos carros aumentou tanto nos últimos anos — não os carros no Brasil, mas no mundo todo. O preço médio do carro novo começou a escalar em 2019 nos EUA, antes da pandemia e de suas consequências. Na Europa, o valor médio aumentou cerca de 3.000 euros entre 2015 e 2019, ou seja, também antes das consequências pandêmicas.
O principal motivo foi justamente a exigência de recursos de segurança e tecnologias de controles de emissões. Alguém tem que pagar o preço. É assim, aliás, que se forma o preço de um produto: com base no que ele custa. Parece óbvio, mas às vezes parece que não é tão óbvio assim para muita gente.
Os fabricantes e fornecedores já haviam alertado para isso em 2019: os carros populares poderiam sumir por causa das leis de emissões. Quando isso começou a acontecer em 2021, muita gente ficou surpresa. Não foi por falta de aviso.
Os dois últimos anos foram conturbados, não só para a indústria. Nem preciso dizer o motivo. Mas preciso dizer que, por alguns instantes, os legisladores de todo o mundo pareciam ter voltado para a realidade: o carro elétrico ainda tem muitos desafios pela frente para sairmos proibindo tudo o que emitir mais do que zero grama de CO2 por quilômetro.
Mesmo com o custo das baterias disparando, com a crise dos semi-condutores, com o preço do frete marítimo triplicado desde 2019, com o alta no preço do aço e com a guerra Rússia-Ucrânia fazendo os preços da energia disparar na Europa, o banimento dos carros de combustão interna foi aprovado. Bem… se assim querem, que assim seja.
Então considerando que estes países têm apenas sete anos para desenvolver os sucessores dos carros de combustão interna, eu decidi dar uma olhada nos principais desafios que precisam ser resolvidos nos próximos anos para que o transporte individual privado não se torne um privilégio dos super-ricos, como era nos primórdios do automóvel. Ou ainda para que o tratamento não seja pior que a doença. Porque ciência não é mágica, afinal. E se nada é criado ou destruído, mas apenas transformado, sempre há o risco de se transformar algo ruim em uma coisa pior.
A primeira barreira: o preço
O primeiro desafio é, claro, convencer o público a comprar um carro elétrico. Porque a mudança será imposta, e não cultural. Não se muda os anseios, os usos e gratificações das pessoas com uma canetada. As pessoas não vão passar a querer carros elétricos por que os outros foram proibidos. Depois de 2035 elas não terão de gostar ou não, porque serão obrigadas a comprar um elétrico. Mas antes disso, elas precisam querer para que o volume de elétricos a venda aumente e, com isso, as fabricantes consigam economia de escala.
Atualmente, de acordo com uma pesquisa realizada pelo site Consumer Reports, 36% dos norte-americanos consideram ou querem comprar um veículo elétrico movido a bateria. É um número relativamente baixo — dois a cada três não querem um carro elétrico. Ou 64 a cada 100 não querem um carro elétrico. Mas é um número relevante, especialmente porque 14% disse que compraria um elétrico “sem sombra de dúvida”.
O grande empecilho é o preço do carro — tanto o valor de compra, quanto o custo de uma troca de baterias, por exemplo, que é algo que preocupa o consumidor. E o que torna o preço do carro elétrico tão alto é justamente a tecnologia de baterias.
Em julho, quando a União Europeia oficializou a meta de “zero emissões” para 2035, o diretor financeiro da Volkswagen, Arno Antlitz, disse à Reuters que o problema não é aumentar a produção dos elétricos, mas encontrar baterias para tantos carros: “O tópico mais desafiador não é o aumento da produção antes do aumento da demanda (N.E. “ramp up”), mas acelerar a cadeia de suprimentos das baterias antes do aumento da demanda”, explicou o alemão.
Isso, porque a produção de baterias depende de minérios como lítio, níquel, manganês e cobalto que, além de serem recursos não-renováveis como o petróleo, já estão encarecendo devido a oferta menor que a demanda. Com o aumento da produção de carros elétricos, essa deficiência no fornecimento de matéria-prima irá ficar ainda maior.
Outro executivo que vem demonstrando preocupação com a transição da matriz energética e o pretenso futuro elétrico é o presidente da Stellantis, Carlos Tavares. Antes mesmo da aprovação do prazo de banimento pela União Europeia, Tavares já havia mencionado questões pertinentes sobre a cadeia de suprimentos e, agora, prevê uma escassez de baterias entre 2024 e 2025 para toda a indústria automobilística.
Tavares também se mostrou preocupado em relação aos preços dos automóveis. Segundo ele, se os veículos elétricos não ficarem mais baratos pela economia de escala, o mercado inteiro irá entrar em colapso.
As fabricantes, diante do cenário, estão readequando suas estratégias para abandonar estes segmentos para concentrar-se em modelos mais caros, com margens maiores e sustentáveis e, consequentemente, mais lucrativos. A diminuição do segmento de entrada é observada em praticamente todos os mercados globais.
Os carros elétricos entram nesse reposicionamento. Como têm maior valor agregado devido ao aspecto tecnológico e também às questões sócio-culturais que eles envolvem — a sensação de contribuir para um mundo melhor, por exemplo —, eles são posicionados como produtos superiores.
Um levantamento do Fuel Institute, uma organização não-governamental sem fins lucrativos vinculada aos postos de combustíveis dos EUA, apontou que o perfil do comprador de carros elétricos nos EUA é “homem branco de meia-idade, com renda superior a US$ 100.000/ano, com ao menos o nível superior de educação e com ao menos um outro carro na garagem”.
Ou seja: é o estereótipo da elite americana. E que usa o carro elétrico como alternativa a outro carro, que não é necessariamente um carro elétrico. Na prática, os carros elétricos ainda são um gadget para ricos, mesmo nos países ricos como os EUA, onde a maioria das pessoas não considera um carro elétrico justamente por eles serem caros demais.
Atualmente, o preço médio dos dez carros elétricos mais vendidos nos EUA é US$ 61.442 — o mais barato é o Chevrolet Bolt EV, de US$ 27.495, e o mais caro é o Tesla Model X, de US$ 107.490. Essa média é 43% maior que o preço médio dos carros de combustão interna nos EUA.
Na Europa, o preço médio do carro elétrico é de € 55.821, enquanto o preço médio dos automóveis comuns é de € 27.500. O principal problema é que, em 2015, o carro elétrico tinha preço médio de € 49.000 (€ 58.800 com a correção monetária), o que significa que em quase oito anos ele só ficou € 3.000 mais barato — mesmo com toda a economia de escala e a urgência por sua popularização.
Somente na China os carros elétricos ficaram substancialmente mais baratos: em 2015 o preço médio do carro elétrico era de US$ 73.000, mas hoje eles custam cerca de US$ 35.000 (fonte).
Baterias mais baratas?
Isso, porque nos últimos anos o setor dos carros elétricos cresceu significativamente e muito disso se deveu à redução do custo das baterias de íons de lítio devido à economia de escala. Apesar desta redução, o custo de compra de um carro elétrico ainda é bem superior ao de um carro de combustão interna. Essa diferença tenderia a desaparecer à medida em que mais carros elétricos ou híbridos plug-in forem produzidos e vendidos.
Contudo, segundo o diretor de tecnologias da Mercedes, Markus Schaeffer, isso não vai acontecer tão cedo, porque os carros elétricos não vão ficar mais baratos. E isso não vai acontecer porque as baterias, em vez de ficarem mais baratas, ficarão até mais caras.
Segundo Schaeffer, para que os carros elétricos custassem o mesmo que um equivalente de combustão interna, as baterias precisariam custar US$ 50 por quilowatt, mas “isso não será possível com a química que temos hoje em dia”.
Essa paridade, segundo ele, não é possível com nenhum dos tipos de tecnologias de baterias disponíveis atualmente. As baterias acessíveis e de alta densidade de energia necessárias para parear os preços dos elétricos e dos carros a combustão, só funcionam em ambientes extremamente controlados em laboratórios.
É preciso primeiro viabilizar o funcionamento destas tecnologias, para depois adaptá-las para a indústria automobilística, o que requer volume de produção e requisitos de durabilidade muito exigentes. E, por isso, a Mercedes acredita que os elétricos não ficarão mais baratos tão cedo.
Além disso, a própria escala da produção de baterias se tornou um desafio: o aumento da demanda por carros elétricos concorre com a demanda por equipamentos eletrônicos em termos de uso de baterias e, por isso, a demanda por baterias é superior à oferta das minas de terras-raras.
A reserva natural é suficiente, porém a construção de novas minas é complexa e cara. E é por isso que o custo das baterias ainda é superior aos US$ 100 por quilowatt — mais que o dobro do necessário para que ocorra a paridade. Schaeffer vai mais além: “Sem uma revolução na química, essa redução no valor das baterias sequer está no horizonte”.
Os outros desafios do carro elétrico
Além dos preços, o que faz com que os consumidores evitem os veículos elétricos são a infra-estrutura de recarga, a autonomia com uma única carga, o tempo de recarga e a vida útil da bateria. Mas estes são apenas alguns dos desafios que o carro elétrico tem pela frente, além do preço de compra. Estes e os demais é o que veremos nas próximas partes desta série.
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