No começo dos anos 2000, a indústria automotiva chinesa parecia uma caricatura do que se via no Ocidente. Nas ruas de Pequim ou Xangai, desfilavam Volkswagens produzidos em joint ventures, minivans japonesas cansadas e cópias mal-ajambradas de sedãs europeus que pareciam ter sido projetadas com régua escolar. A China era a oficina do mundo: montava (e copiava) o que os outros haviam inventado. Fornecia peças, parafusos e até a mão de obra, mas não ditava moda nem tecnologia.
Ainda assim, o governo chinês tratava o automóvel como símbolo de soberania e poder econômico, como todo nicho industrial local. Produzir em escala era um objetivo em si: fábricas significavam empregos, arrecadação e prestígio político para governadores regionais. A explosão veio rápido. Em 2009, com uma ajuda dos grandes bancos americanos e seus empréstimos de alto risco desenfreado, a China ultrapassou os EUA e se tornou o maior mercado de automóveis do mundo. De repente, a periferia havia tomado o centro do palco.
Só que esse crescimento tinha um problema: a China importava volumes colossais de petróleo, tornando-se, em poucos anos, o maior importador mundial — uma dependência energética que era, na prática, uma vulnerabilidade estratégica, ainda mais diante de crises no Oriente Médio. Ao mesmo tempo, as grandes cidades sufocavam sob nuvens de poluição dos motores e o documentário “Uma Verdade Inconveniente”, de Al Gore – um político de carreira, é importante mencionar — trouxe ao mundo uma certa conscientização sobre os problemas ambientais do século XXI que inspirou novos protocolos de emissões mais rigorosos e modificou toda a indústria automobilística.
Primeiro, vieram os híbridos e o downsizing, mas a indústria já apontava para o carro elétrico como solução para as emissões naquele primeiro momento, quando tudo parecia muito urgente. Pela primeira vez em um século, havia uma chance real de reinventar o automóvel do zero. A China, não tinha chances de alcançar as fabricantes tradicionais na corrida da combustão, mas se eles apostassem cedo nos elétricos, sairiam na frente.
Foi aí que a estratégia mudou. O 12º Plano Quinquenal (2011-2015) colocou os chamados “veículos de nova energia” (NEV) como prioridade nacional, juntando a necessidade de reduzir importações de petróleo com a urgência de melhorar o ar das cidades e a oportunidade de ocupar um espaço ainda vazio no tabuleiro de WAR 3D. Em 2015, o plano Made in China 2025 oficializou essa ambição: não bastava ser o maior produtor em volume, era preciso liderar a corrida tecnológica.
A fórmula era simples e brutal. Terrenos quase de graça, crédito abundante, impostos reduzidos, energia subsidiada e investimentos pesados em infra-estrutura de recarga. Em troca, produção em escala. As províncias competiam pela fábricas e o cumprimento das metas do partido. O resultado foi um crescimento em ritmo alucinante: cidades médias viraram polos industriais da noite para o dia, marcas surgiam como startups e já nasciam com subsídios bilionários, e fábricas brotavam em antigos arrozais.
Em menos de 15 anos, a China passou a ditar os rumos da mobilidade elétrica global. O problema é que essa ascensão meteórica, acelerada por crises externas e ambições internas, agora coloca em risco toda a cadeia produtiva global — não apenas do Ocidente, mas também da própria China.
Metas, não demanda
Para entender o cenário atual da indústria automotiva chinesa, é preciso abandonar o raciocínio ocidental. Em qualquer lugar do mundo, as fábricas obedecem a lógica do mercado: se há demanda, a produção aumenta; se não há, a produção diminui ou se encerra. Na China, o sucesso da fabricante é medido pela capacidade de cumprir as metas traçadas pelo Partido.
Cada província funciona como uma espécie de feudo econômico, comandado por um governador que não responde a eleitores, mas ao partido. A moeda de troca não é voto, mas desempenho. Quem constrói mais fábricas, gera mais empregos e apresenta relatórios mais impressionantes a Pequim ganha pontos na carreira política. Quem falha, cai no esquecimento — e, no sistema chinês, cair no esquecimento pode ser tão fatal quanto perder uma eleição.
Essa competição interna gerou um ambiente de incentivos quase irreais para fabricantes. Governos locais ofereceram pacotes que fariam qualquer executivo ocidental pensar estar em um delírio: terrenos cedidos a preço simbólico, isenções fiscais que se estendiam por décadas, energia subsidiada, empréstimos generosos via bancos estatais, ajuda direta na construção de galpões e até infraestrutura de transporte feita sob medida para ligar fábricas a portos. E tudo isso vinha com uma cláusula explícita: em troca, era preciso cumprir metas de produção, empregar milhares de trabalhadores e garantir que as estatísticas anuais mostrassem crescimento.
No papel, o país avançava a passos largos. Na prática, esse modelo criava um ecossistema artificial, onde a lógica econômica cedia lugar à lógica política. As marcas não surgiam para atender a demanda dos consumidores, mas por que havia um governador disposto a sustentar sua existência em troca de capital político. O resultado foi a multiplicação quase caótica de fabricantes que vimos nos últimos dez anos. Centenas empresas se lançaram na aventura dos veículos elétricos, muitas motivadas apenas pela possibilidade de se obter subsídios. Era como se cada província quisesse ter sua própria Tesla.
O crescimento
Quando se olha para os gráficos de produção automotiva da China, a curva não sobe — ela dispara, como um foguete. Em 2000, o país fabricava pouco mais de 2 milhões de carros por ano, a maioria sob licença de fabricantes estrangeiros. Dez anos depois, já eram mais de 18 milhões. Em 2023, o número passou dos 30 milhões, superando EUA, Japão e Alemanha juntos. É como se, em 20 anos, a China tivesse comprimido um século inteiro de evolução industrial em uma geração.
Só que, ao contrário do que aconteceu no Ocidente, esse crescimento não veio acompanhado de uma base sólida de marcas consolidadas, desejo espontâneo do consumidor e competição saudável. A engrenagem chinesa foi movida por incentivos artificiais. Os subsídios federais e provinciais chegaram a representar até 40% do valor de cada carro elétrico vendido no país. Isso significava que, em alguns casos, a empresa não precisava sequer conquistar clientes: bastava produzir, emplacar e mostrar a nota fiscal ao governo para receber a transferência bilionária.
Essa distorção criou um ecossistema surreal. Em 2023, havia mais de 100 fabricantes de veículos elétricos ativos na China, muitos deles startups que não tinham histórico, capital privado consistente ou planos de longo prazo. O mercado interno absorvia parte dessa produção, é verdade — afinal, a frota chinesa crescia em ritmo acelerado, e as restrições ambientais nas grandes cidades forçavam a adoção dos elétricos. Mas o volume produzido ia muito além da demanda real.
Estima-se que, só em 2023, mais de 3 milhões de veículos novos tenham ficado encalhados nos pátios das fábricas ou nos enormes estacionamentos construídos às pressas nos arredores das cidades. Ainda assim, a produção não parou, porque não foi a lógica de oferta e demanda que determinava o ritmo da produção, mas a obrigação de cumprir metas. A matemática do partido era simples: melhor fabricar e não vender do que ver as estatísticas caírem.
O paradoxo era evidente. A China havia se tornado a maior fabricante de automóveis do planeta, mas parte significativa desse poderio industrial não tinha mercado consumidor. Era como se o país estivesse construindo um castelo de aço e lítio sobre a areia da praia. Do lado de fora, investidores e governos estrangeiros viam poder econômico e, acima de tudo, político. Por dentro, quem olhava os números friamente enxergava algo mais próximo de uma bolha: inflação de capacidade produtiva, excesso de players e dependência crônica de subsídios.
Os subsídios
No início da década passada, a China decidiu que os veículos elétricos seriam tratados como política de Estado e, para isso, criou um pacote de incentivos jamais visto na história do automóvel. Cada veículo elétrico vendido no país podia receber até dezenas de milhares de dólares em benefícios diretos, variando conforme a autonomia da bateria e a eficiência energética.
Isso significava que, em muitos casos, o consumidor final pagava metade do preço real, enquanto o governo arcava com o resto. Mas o maior estímulo não estava na ponta, e sim no coração da produção. As províncias competiam para atrair fábricas e, para isso, ofereciam pacotes que misturavam isenções fiscais, empréstimos a juros simbólicos e até repasses diretos de dinheiro vivo para a conta das empresas.
De repente, qualquer grupo de investidores com conexões políticas podia se lançar no ramo automotivo. Não era preciso know-how em engenharia, nem histórico em design ou manufatura. Bastava apresentar um projeto convincente, abrir uma planta, emplacar alguns protótipos e acessar o cofre. O governo bancava o resto. Assim, brotaram mais de uma centena de startups automotivas em menos de uma década, cada uma prometendo ser a Tesla chinesa, cada uma se apresentando como a próxima revolução da mobilidade.
Do lado de fora, parecia um milagre: a China conseguiu erguer, em uma década, um parque automobilístico que levou um século para se consolidar no Ocidente. Mas analisando os dados com mais calma, ficava claro que a lógica era a mesma de qualquer bolha: crescimento forçado, sustentado por metas políticas e dinheiro fácil, ignorando a pergunta fundamental: quem vai comprar todos esses carros?
A bolha
A lógica parecia imbatível: subsidiar hoje para dominar amanhã. Só que, no papel, a China esqueceu um detalhe incômodo da vida real — ninguém consegue manter um motor girando eternamente à base de injeções de combustível artificial.
Mas, como em toda corrida movida a dinheiro fácil, os incentivos acabaram gerando distorções. Muitas empresas não tinham intenção de construir uma operação sustentável: eram criadas apenas para capturar subsídios, fabricar algumas unidades e inflar números antes de desaparecer. Outras conseguiam se manter vivas à base de injeções contínuas de capital estatal, mesmo sem clientes suficientes para justificar a produção. O resultado eram pátios lotados de carros encalhados, enquanto relatórios oficiais falavam em sucesso absoluto.
Quando os subsídios começaram a ser reduzidos em 2019, a engrenagem deu seus primeiros solavancos. E, depois da pandemia, com cadeias de suprimento desorganizadas, queda no consumo e excesso de capacidade já impossível de disfarçar, ficou claro que a bolha não só existia, como estava prestes a estourar.
Ainda assim, o Partido não recuou. O objetivo é usar o excesso de oferta como de seleção natural. O governo chinês acreditava que, se cem empresas nascessem, pelo menos cinco ou dez resistiriam e se tornariam gigantes globais. O dinheiro público funcionava como combustível para acelerar esse processo. Era desperdício calculado, um experimento de escala planetária onde o Estado assumia queimar bilhões em troca da promessa de liderança tecnológica.
Na prática, os subsídios deram à China um poder que nenhum concorrente ocidental tinha: a capacidade de criar uma indústria inteira do zero, em tempo recorde. Só que, ao mesmo tempo, consolidaram o traço mais perigoso desse modelo: a dependência estrutural de um oxigênio que não poderia ser fornecido para sempre. Quando a torneira fechasse de vez, a bolha se revelaria.
O colapso
O retrato mais fiel desse desequilíbrio é a diferença entre produção e demanda. Em 2024, a indústria chinesa fabricou 27,5 milhões de veículos, mas sua capacidade instalada ultrapassava os 50 milhões. Ou seja, metade do parque fabril já estava ociosa. Para limpar pátios abarrotados, as marcas começaram a cortar preços de forma alucinada. Descontos de 40%, 50% e até 60% viraram rotina. Algumas concessionárias chegavam a registrar veículos novos para que eles constassem como “vendidos” para maquiar estatísticas, mesmo que eles nunca tivessem saído do pátio. São os chamados “usados zero-quilômetro”.
Essa guerra de preços transformou o mercado chinês em um território surreal. Empresas como a Zcar passaram a comprar lotes inteiros de carros encalhados para revendê-los, oferecendo Audis, Chevrolets e SUVs de fabricantes nacionais por valores tão baixos que, no Brasil, pareciam golpes. Para o consumidor comum isso era ótimo, afinal, quem não gostaria de comprar um Audi novo pelo preço de um hatch popular? Mas, nos bastidores, o cenário era sombrio: apenas 30% das concessionárias fechavam o mês no azul.
As próprias consultorias ligadas ao governo já admitem o inevitável: das 129 marcas de veículos elétricos e híbridos em operação, menos de 15 devem sobreviver até o fim da década. O CEO da Xpeng, uma destas fabricantes, foi ainda mais direto: só quem vender três milhões de carros por ano terá chance de permanecer no jogo. Isso significa que a maior parte das empresas criadas à sombra dos subsídios está fadada a desaparecer.
A ameaça
Se a produção chinesa não segue a lógica do mercado, o excedente desta produção tomou um rumo mais convencional: se o consumo interno é menor que a produção, a solução é buscar consumidores externos. Foi assim que os carros chineses chegaram à Europa, EUA e América Latina — nesse último caso, ao Brasil especialmente. E aqui é onde chegamos à situação comentada há alguns meses em nossa matéria “Todos contra os chineses”.
Quando os fabricantes chineses começaram a exportar elétricos a preços que nenhuma empresa europeia conseguia enfrentar o choque foi imediato. Modelos da BYD, Geely, SAIC e até startups recém-criadas chegaram ao Velho Continente custando até 30% menos que equivalentes da Renault ou da Volkswagen. Em alguns casos, a diferença passava de 40%. Isso não era resultado de mágica tecnológica, mas do excesso de capacidade lá na China: carros encalhados eram enviados a preço de banana para qualquer mercado disposto a recebê-los.
Nas concessionárias europeias, o impacto foi quase psicológico. Durante décadas, o consumidor médio associou “carro alemão” a uma qualidade impecável, enquanto os chineses eram meras cópias baratas sem o mínimo refinamento. Só que, com os elétricos, os papéis começaram a se inverter. Os elétricos chineses não só ofereciam preços muito mais baixos, como traziam pacotes tecnológicos de ponta — baterias com autonomia competitiva, telas gigantes, conectividade avançada, assistentes digitais de última geração. O choque de realidade foi duro: enquanto as fabricantes europeias ainda discutiam como adaptar plataformas de combustão para a era elétrica, os chineses já entregavam SUVs futuristas por metade do preço.
Nos EUA, o efeito da superprodução chinesa chegou por vias indiretas, pressionando preços globais e corroendo margens. A Tesla, acostumada a trabalhar com descontos agressivos para ampliar sua base de clientes, se viu forçada a mudar sua estratégia diante da ofensiva chinesa. Modelos da BYD, que já vendem mais elétricos que a Tesla no mundo, estabeleceram uma nova referência de custo. De repente, o “corte de preço” da Tesla não parecia mais uma estratégia ousada, mas uma reação defensiva para não perder relevância.
Ford e GM enfrentam dilema semelhante. A primeira grande onda de seus elétricos — F-150 Lightning, Mustang Mach-E, Chevrolet Bolt — nasceu cara demais e ainda dependente de subsídios federais para competir. Só que, ao contrário dos chineses, essas empresas não podem se apoiar em mão de obra mais barata, energia subsidiada ou capacidade de queimar dinheiro em escala nacional. Cada desconto aplicado sai direto dos cofres das empresas.
Há ainda outro fator que aumenta a pressão: os elétricos chineses invadem a América Latina, o Sudeste Asiático e a África — mercados que historicamente absorviam a produção europeia e americana de menor valor agregado. O Brasil é o caso mais emblemático. Durante décadas, seguramos as pontas das fabricantes ocidentais, especialmente das alemãs e americanas. Mas, nos últimos anos, BYD, Chery (nacionalizada como Caoa Chery) e GWM abriram caminho em ritmo acelerado. E não chegam apenas como importadoras. A GWM assumiu a antiga fábrica da Mercedes-Benz em Iracemápolis/SP, e a BYD ficou com a antiga fábrica da Ford em Camaçari/BA.
Para o consumidor brasileiro, o impacto foi imediato. SUVs híbridos e elétricos que custariam preços proibitivos se viessem da Europa chegam a valores surpreendentemente competitivos. Um carro cheio de tecnologia embarcada, com autonomia decente e conectividade de ponta, passa a custar o mesmo — ou menos — que um sedã médio produzido localmente. É a primeira vez que uma nova geração de brasileiros olha para um carro chinês não como cópia barata, mas como alternativa real às marcas tradicionais.
Diante da situação de real ameaça — e da aparente concorrência desleal dos chineses, uma vez que eles são subsidiados —, os mercados ocidentais tomaram medidas drásticas contra as fabricantes chinesas: os EUA simplesmente fecharam as portas. Sob o pretexto de segurança nacional, espionagem tecnológica e concorrência desleal, os EUA, na prática, baniram veículos produzidos na China com uma tarifa de 100% — adotada também pelo Canadá no final de 2024.
A União Europeia impôs uma taxação provisória que pode chegar a 45,3% sobre os carros chineses como medida anti-subsídios, fruto de uma investigação da Comissão Europeia iniciada em 2023, mas está negociando uma nova tarifa com a China desde julho deste ano.
No Brasil, a Associação dos Fabricantes (Anfavea), considerou processar a BYD, mas chegou a um acordo intermediado pelo governo que impôs uma cota de importações isentas de tarifas até janeiro de 2026, e antecipou em 18 meses a taxação integral de 35% sobre modelos trazidos em regime CKD para janeiro de 2027.
O freio ocidental imposto aos chineses, contudo, só agrava a situação: a China ainda produz mais do que consome – e mais do que o mundo está consumindo — e se coloca em risco ao mesmo tempo em que ameaça as fabricantes tradicionais com seus carros subsidiados.
O dilema
Neste cenário, a China precisa escolher entre duas saídas igualmente arriscadas: permitir uma seleção natural ou tentar sustentar artificialmente um ecossistema inchado até o limite — que pode colapsar a indústria ocidental.
A primeira opção é a mais lógica do ponto de vista econômico. Deixar que o mercado faça seu trabalho significa ver dezenas de marcas desaparecerem nos próximos anos, restando apenas gigantes com escala global. BYD, Geely, SAIC, GWM e algumas outras que conseguirem vender milhões de unidades por ano. O resto desapareceria sem cerimônia.
A segunda opção é mais lógica do ponto de vista geopolítico: evitar falências, sustentar empregos, maquiar estatísticas enquanto combate os rivais estrangeiros. Ao mesmo tempo, este também é o caminho mais arriscado — não só para a China, mas como também para a indústria ocidental, que pode colapsar junto com a China, em um cenário mais extremo.
A resposta, seja seleção natural ou implosão, vai definir o rumo da indústria automotiva mundial nas próximas décadas.