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Automobilismo

Os detalhes da recusa ofensiva à Andretti na Fórmula 1

O negócio foi ofensivo. Não encontrei outra forma de definir o que a Liberty Media e toda turma do Pacto da Concórdia fizeram com a Andretti Autosport ao recusar sua entrada na Fórmula 1 da forma como ela foi anunciada. Por quê? Por que não estamos falando de uma empresa sediada em Liechtenstein, fundada por um bilionário russo residente na Romênia, que decidiu que a Fórmula 1 é sua nova paixão.

Estamos falando da equipe criada por Michael Andretti, campeão da CART em 1991 e filho de Mario Andretti, campeão da Fórmula 1 de 1978 e tetracampeão da Indy, que, apesar de não ser envolvido oficialmente com a equipe, é, obviamente, o patrono do negócio.

E isso torna a recusa da Liberty e companhia tão obscenamente ofensiva. A Andretti está há mais de dois anos tentando ingressar na Fórmula 1. Primeiro, eles tentaram comprar a Alfa Romeo, mas não deu certo porque a Audi acabou ficando coma Sauber. Então eles partiram para o trabalho mais difícil: criar uma equipe do zero para disputar a categoria a partir de 2025.

A proposta foi entregue por Michael Andretti à FIA em 2022, já com os US$ 200.000.000 da “taxa de inscrição” garantidos. E nestes dois últimos anos, eles obviamente não ficaram apenas de olho na sua operação na Indy, esperando a Liberty Media, FIA e sua turma decidir se aceitam ou não a equipe na F1.

Eles formaram uma equipe de 120 pessoas que trabalharam ao longo de dois anos no projeto de um carro de Fórmula 1 novo, feito do zero. Chegaram a um protótipo em escala pouco maior que 1:2 para testes em túnel de vento e terão um protótipo em tamanho real no meio do ano para os testes de impacto e segurança. Eles também envolveram a GM na história, confirmando a Cadillac como fornecedora de motores para a equipe. E se houve a confirmação visando a temporada de 2025, pode apostar que já tem gente na GM trabalhando no powertrain. Em dois anos.

E aí, dois anos depois, a Liberty publica a decisão na qual rejeita a entrada da equipe na categoria para 2025, mas “deixa as portas abertas” para 2028. O documento é extenso (você pode ler aqui), e explica todo o processo na primeira parte, depois explica os critérios de avaliação e, termina expondo as razões pelas quais a inscrição foi rejeitada para 2025 — esta é a parte que nos interessa e que vamos transcrever a seguir, com alguns comentários:

“Geral

8. Nosso processo estabeleceu que a presença de uma 11ª equipe não traria valor ao Campeonato. 

9. Qualquer 11ª equipe deve mostrar que sua participação e envolvimento trazem benefícios ao Campeonato. A forma mais significativa pela qual uma nova equipe pode trazer valor é sendo competitiva, em especial competindo por pódios e vitórias. Isso aumentaria o engajamento dos fãs e também aumentaria o valor do campeonato sob o ponto de vista dos acionistas principais e das fontes de receita como veículos de comunicação s e promotores de corridas. 

10. A candidatura contempla uma associação com a General Motors, que inicialmente não inclui o fornecimento de Unidade de Força, com a ambição de uma parceria plena com a GM como fornecedora em seu devido tempo, mas isso não irá acontecer nos primeiros anos. Ter o fornecimento de Unidade de Força da GM anexado à candidatura teria aumentado sua credibilidade, embora um construtor novo, com um fornecedor novo também teriam um desafio significativo a superar. A maioria das tentativas de estabelecer um novo construtor nas últimas décadas não foram bem-sucedidas. 

Nestes três primeiros itens a Liberty pareceu excessivamente cautelosa — tirando a incerteza do que será esta equipe como um fator de engajamento do público. Novamente, não estamos tratando de um fornecedor de Unidade de Força obscuro, nem de uma equipe sem experiência no desenvolvimento de carros.

A Andretti existe há mais de 30 anos e, ainda que use chassis fornecidos pela Reynard e Dallara, ela os desenvolve há 30 anos. O mesmo vale para os motores: a GM é uma das maiores vencedoras da Indy/CART e já tem na Cadillac um histórico expressivo no endurance americano. Será que ela realmente não seria competitiva? Quais critérios e parâmetros foram usados para essa decisão?

Além disso, em mais de 70 anos somente 23 equipes diferentes venceram ao menos um GP de Fórmula 1. A vitória não é e nunca foi para todos. Por que usar a “briga por vitórias e títulos” como um critério de competitividade?

11. 2025 será o último ano do atual regulamento, e 2026 será o primeiro ano do ciclo subsequente, e um carro completamente diferente será necessário. A Requerente propõe, como construtora novata, projetar e construir um carro sob o regulamento de 2025 e, depois, no ano seguinte, projetar e construir um carro completamente diferente sob as regras de 2026.

Além disso, a Requerente se propõe a tentar isso com a dependência de um fornecimento compulsório de um fabricante de Unidade de Força rival, que será, inevitavelmente, reticente em estender sua colaboração com a Requerente além do mínimo exigido, enquanto a Requerente persegue sua ambição de colaborar com a GM como fornecedora de Unidade de Força em longo prazo, algo que o fornecedor compulsório enxerga como risco à propriedade intelectual e know-how. 

Aqui fica claro um ponto que pode ter sido decisivo para a rejeição: nenhum dos atuais fornecedores de Unidade de Força (Mercedes, Ferrari, RBPT e Renault) parece ter topado a tarefa de “tapar o buraco” da Cadillac. Por outro lado, é bom lembrar que, em 2014, a McLaren usou motores Mercedes como “tapa-buraco” para a Honda e não houve muito problema nisso — tanto que a Honda não se beneficiou de forma alguma com esse “tapa-buraco” da Mercedes. Fernando Alonso que o diga.

Ao mesmo tempo, parece um erro estratégico da Andretti em não se candidatar para a temporada de 2026 — ou da Fórmula 1 ao aceitar uma candidatura para 2025 sabendo que aquele será o último ano do regulamento atual.

12. Não cremos que há condições de qualquer novo candidato ser admitido em 2025, considerando que isto faria uma equipe novata construir dois carros completamente diferentes em seus dois primeiros anos de existência. O fato de a Requerente propor isso nos leva a questionar sua compreensão do escopo do desafio envolvido.

Embora uma inscrição para 2026 não enfrente esta questão específica, é verdade que a Fórmula 1, como o auge do automobilismo mundial, representa um desafio técnico ímpar para os construtores de uma natureza que o Requerente não enfrentou em qualquer outra fórmula ou disciplina em que já competiu anteriormente e se propõe a fazê-lo com dependência de fornecimento compulsório de PU nos primeiros anos de sua participação. Com base nestas razões, não acreditamos que o Requerente seja um participante competitivo.

Neste trecho está a parte que soa ofensiva para uma equipe bem-estabelecida como a Andretti: “O fato de a Requerente propor isso nos leva a questionar sua compreensão do escopo do desafio envolvido.”  No passado recente (há menos de 15 anos) vimos Marussia, Caterham e HRT “disputando” a categoria. E, infelizmente, preciso lembrar que a Marussia se viu envolvida em dois acidentes gravíssimos que resultaram na morte de dois pilotos em decorrência das lesões destes acidentes.

13. Chegar ao desporto como um novo fabricante de PU é também um enorme desafio, com o qual os principais fabricantes automóveis se debateram no passado, e que pode levar a um fabricante vários anos de investimento significativo para se tornar competitivo. A GM tem os recursos e a credibilidade para ser mais do que capaz de enfrentar este desafio, mas o sucesso não está garantido.

Qual sucesso está garantido? É a única pergunta que deixo aqui.

 

Conclusões da avaliação comercial

14. Nosso processo de avaliação estabeleceu que a presença de uma 11ª equipe não agregaria, por si só, valor ao Campeonato. A maneira mais significativa pela qual um novo participante agregaria valor é sendo competitivo. Não acreditamos que a Requerente seja um participante competitivo.

Será que os fãs realmente não gostariam de ver mais uma equipe. Ainda que ela brigasse no pelotão intermediário? Caso contrário, a F1 poderia reduzir o grid para seis equipes, afinal, quando foi a última vez que as quatro últimas equipes chegaram aos 100 pontos? Olhe as tabelas de construtores dos últimos 10 anos. Há um abismo entre as seis primeiras e as quatro últimas.

15. A necessidade de qualquer nova equipa ter um fornecimento obrigatório de unidades de energia, potencialmente durante um período de várias temporadas, seria prejudicial ao prestígio e à posição do Campeonato.

Já comentamos mais acima: deve ter sido um veto das fabricantes atuais.

16. Embora o nome Andretti traga algum reconhecimento para os fãs da F1, nossa pesquisa indica que a F1 traria valor à marca Andretti, e não o contrário.

Aqui está a maior ofensa de todas — e o motivador desta pequena análise: a ideia presunçosa de que a Fórmula 1 valorizaria mais a marca Andretti do que a Andretti valorizaria a Fórmula 1.

A Fórmula 1 só se tornou o que é hoje por causa de nomes como Andretti. Imagine a Fórmula 1 nos EUA sem o título de Mario, em 1978. O homem é uma instituição do automobilismo americano, um dos pilotos mais completos da história (não apenas dos EUA, mas do automobilismo mundial), pois é um dos únicos pilotos do mundo a vencer o Mundial de F1, a Indy/Cart, o Mundial de Carros Esporte (WSC), a 24 Horas de Le Mans, e a subida de Pikes Peak. Um piloto que ficou devendo apenas o GP de Mônaco para conquistar a Tríplice Coroa do Automobilismo. Ao lado dele está ninguém menos que Jim Clark, que também venceu em Le Mans e a Indy 500, mas não em Mônaco.

Esse seria, portanto, um dos raros casos onde as duas partes ganham. A valorização é mútua. É a Fórmula 1 colocando uma parte de sua história de volta nas pistas. Como isso pode valorizar mais uma das partes, apenas?

17. A adição de uma 11ª equipe representaria um fardo operacional para os promotores de corridas, sujeitaria alguns deles a custos significativos e reduziria os espaços técnicos, operacionais e comerciais dos outros concorrentes.

18. Não conseguimos identificar nenhum efeito positivo material esperado nos resultados financeiros da CRH, como um indicador-chave do valor comercial puro do Campeonato.

19. Com base na candidatura tal como está, não acreditamos que a Requerente tenha demonstrado que acrescentaria valor ao Campeonato. Concluímos que a candidatura da Requerente para participação no Campeonato não deverá ser aceita.

Parece que os verdadeiros motivos para a recusa estão nestes três itens acima: grana. É aceitável recusar uma candidatura por estes motivos? Sem dúvida. Por questões comerciais, sem empilhar justificativas discutíveis sobre a capacidade da equipe ou abstrações sobre a competitividade, seria aceitável e até mesmo mais ético do que dizer que uma equipe de 30 anos e 120 pessoas “não tem noção do que está fazendo”, como foi insinuado no item 12.

20. Olharíamos de forma diferente para um pedido de entrada de uma equipe no Campeonato de 2028 com uma unidade de potência GM, seja como uma equipe de trabalho da GM ou como uma equipe de cliente da GM projetando internamente todos os componentes permitidos. Neste caso, haveria fatores adicionais a serem considerados em relação ao valor que o Candidato traria para o Campeonato, em particular no que diz respeito à contratação de um novo OEM de prestígio para o esporte como fornecedor de PU.

As reações, claro, foram negativas. Mario Andretti publicou em suas redes sociais a seguinte mensagem:

“Estou devastado. Não vou dizer mais nada porque não consigo pensar em outras palavras além de devastado”

Aqui é importante lembrar que Mario Andretti está prestes a completar 84 anos. Esperar seis anos para a realização de um sonho é algo cruel com alguém de idade assim avançada — ainda que isso não possa ser, por si, um motivador para a admissão da equipe. Seu filho, Michael Andretti, divulgou a posição oficial da equipe após a recusa:

“A Andretti Cadillac revisou a informação que a Formula One Management compartilhou e discorda veementemente do conteúdo. Andretti e Cadillac são duas organizações globais bem-sucedidas do automobilismo, comprometidas a formar uma legítima equipe norte-americana na Fórmula 1, competindo ao lado dos melhores do mundo. 

Estamos orgulhosos do progresso significativo que já fizemos ao desenvolver um carro altamente competitivo e uma Unidade de Força com uma equipe experiente por trás, e nosso trabalho continua. 

A Andretti Cadillac também gostaria de reconhecer e agradecer os fãs que expressaram seu apoio.”

Seis anos de espera depois de um investimento colossal para fazer um carro soa também como um recado para continuar tentando comprar uma equipe em vez de ingressar com uma nova equipe. A Fórmula 1 tem um bolo dourado, muito valioso, e esse bolo tem 10 fatias. Para cortar o bolo em 11 pedaços, é preciso fazer pedaços menores. Quem quer um pedaço menor do bolo mais valioso do mundo do esporte motorizado? É assim simples. Não precisava desmerecer a história dos Andretti no automobilismo.