Ontem publicamos a história do Porsche 911 Turbo, aquele 930 que mudou para sempre o mercado de supercarros. E inevitavelmente, toda vez que falamos do 930, uma imagem domina a conversa: aquele spoiler traseiro enorme, levantado como uma cauda de baleia saindo d’água — o whale tail.
Mas aquela peça icônica não nasceu apenas como um elemento visual. Ela tinha função. E ao longo de sua vida, mudou de forma e propósito. E se você acha que todo spoiler grande de Porsche Turbo é “whale tail”, ou que spoiler e asa traseira fazem a mesma função, precisa ler este texto. Porque a aerodinâmica automotiva é cheia de sutilezas que fazem diferença enorme na forma como um carro se comporta.
Vamos começar pela história. Depois vamos para a física. E no final, você vai entender por que alguns carros têm lábios discretos na traseira enquanto outros carregam asas gigantes montadas em suportes longos e altos.
O pato e a baleia – uma fábula das pistas
Em 1974, quando a Porsche começou a desenvolver a versão de rua do 911 Turbo, os engenheiros tinham um problema: o motor turbo gerava muito calor e precisava de fluxo de ar constante para resfriamento. Ao mesmo tempo, mesmo com motor traseiro, o 911 Turbo produzia “lift” (sustentação) na traseira em alta velocidade. Com a dianteira leve e a traseira levitando, isso seria uma receita para o desastre.

A solução veio da experiência da Porsche em corridas. Em 1972, durante a temporada, dois designs de spoiler diferentes foram testados em carros de fábrica. Um era uma asa plana de peça única se estendendo sobre a grade da tampa do motor. O outro era uma mini-rampa de chapa metálica começando atrás da grade. Este segundo design foi adaptado e se tornou o famoso ducktail (rabo de pato) do Carrera 2.7 RS de 1973.

Mas o ducktail não seria suficiente para o Turbo. O carro precisava de mais downforce e, principalmente, mais fluxo de ar para o motor. Então os engenheiros criaram algo radicalmente maior: uma estrutura de fibra de vidro que substituía a tampa original do motor, projetando-se dramaticamente para o alto e para trás.

Ela possuía uma grade recuada seguindo a linha da tampa do motor e outra na superfície plana do próprio spoiler. Era uma evolução do ducktail, fornecendo captação de ar para o motor e deflexão do fluxo aerodinâmico para reduzir a sustentação na traseira, mas de forma muito mais eficiente.

Seu visual final, contudo, deixava de parecer um rabo de pato, e parecia mais uma cauda de baleia (whale tail) mergulhando. Foi assim que esse spoiler ganhou seu nome. Ele pareceu pela primeira vez no conceito mostrado em Frankfurt em 1973, e entrou em produção nos primeiros 930 de 1975.
A hora do chá
O whale tail original durou apenas três anos. Em 1978, quando a Porsche ampliou o motor do 930 de 3 para 3,3 litros e adicionou um intercooler, o spoiler precisou mudar. O intercooler era montado horizontalmente acima do motor, e precisava de espaço. Então o whale tail foi modificado para acomodar o intercooler, sendo ligeiramente elevado. Como o intercooler agora ocupava o espaço sobre a antiga grade original, ele ganhou uma superfície horizontal.

Além disso, suas bordas foram remodeladas, ficando mais altas que o spoiler anterior, e ainda passaram a ser feitas de borracha. Ficou parecendo uma bandeja de conjunto de chá, ou “tea tray”, em inglês. O nome pegou, e esse novo spoiler acabou conhecido como ‘tea tray’.
A diferença não era apenas estética. O whale tail original tinha uma curvatura mais pronunciada, com o perfil subindo gradualmente da tampa do motor até a borda traseira. O tea tray era mais plano no topo, com aquele lábio de borracha criando uma borda definida. Funcionalmente, ambos faziam coisas semelhantes — gerar downforce e direcionar ar — mas o tea tray tinha que acomodar o intercooler e, por isso, ficava ligeiramente mais alto e tinha geometria diferente para o fluxo de ar.

O tea tray foi usado no Turbo até o fim da produção do 930 em 1989. Alguns 911 SC também receberam tea trays de fábrica, e versões modificadas apareceram no Carrera de 1984, com bordas de fibra de vidro menos expansivas e borrachas contornando de forma mais horizontal.
Mas para entender por que essas mudanças importavam, precisamos entender o que aquelas peças realmente faziam. E para isso, precisamos falar de aerodinâmica.
Spoiler vs asa: funções opostas
Aqui está a confusão mais comum: as pessoas acham que spoilers e asas traseiras fazem a mesma coisa. Não fazem. Na verdade, funcionam de formas fundamentalmente opostas, ainda que ambos trabalhem com fluxo de ar.

Um spoiler é uma barreira. Ele interrompe ou “estraga” (daí o nome, spoiler) o fluxo de ar, mas com um propósito específico: combater o arrasto de pressão (ou arrasto de forma). Em um carro com traseira inclinada, como o 911, o fluxo de ar que passa rápido sobre o teto e o vidro traseiro não consegue “grudar” (manter-se laminar) na carroceria até o fim. Ele se “descola” abruptamente, criando um grande “bolsão” de ar turbulento e de baixa pressão logo atrás do carro. Pense nisso como um verdadeiro vácuo que “suga” o carro para trás, aumentando a resistência.
O spoiler atua como uma pequena “rampa” ou “dique” no final da carroceria. Ele força o ar a permanecer “colado” por mais tempo ou preenche essa zona de baixa pressão. O rastro turbulento atrás do carro diminui de tamanho e a pressão ali aumenta (ficando mais próxima da ambiente).

O resultado? Menos vácuo “sugando” o carro para trás, o que significa menor arrasto de pressão. Sim, você leu certo: um spoiler bem projetado reduz o arrasto aerodinâmico total. Não é um freio de ar — é o oposto. Ele permite que o carro corte o ar com mais facilidade, o que se traduz em melhor eficiência energética (menor consumo em carros de rua) e maior velocidade final em carros de corrida. É por isso que esse elemento ficou comum em carros modernos que precisam atender padrões de consumo e emissões.
Como efeito colateral, o spoiler também gera algum downforce (muito menos que asas) ao ordenar o fluxo de ar na traseira, mitigando um pouco da sustentação aerodinâmica natural que vem da parte inferior da traseira do carro. Mas downforce não é sua função primária.
Uma asa traseira funciona ao contrário. Ela é projetada primariamente para gerar downforce (força descendente). Pense nela como uma asa de avião invertida. A asa de avião acelera o ar sobre o topo e desacelera embaixo, criando mais pressão embaixo que empurra o avião para cima (sustentação). Uma asa de carro faz o oposto: o ar flui mais rápido por baixo da asa e mais devagar sobre ela, criando mais pressão em cima que empurra a asa (e o carro) para baixo.

Mas essa geração de downforce tem um custo inevitável: o aumento do arrasto total. Isso acontece por duas razões. A primeira é o arrasto parasita: a asa e seus suportes são objetos físicos no caminho do vento, criando resistência por si sós. A segunda, e mais importante, é o arrasto induzido, que é o preço físico de se gerar downforce. Quando a asa cria alta pressão em cima e baixa pressão embaixo, o ar da alta pressão tenta “vazar” ou “escapar” pelas pontas da asa para a zona de baixa pressão. Esse “vazamento” cria vórtices (redemoinhos) que são pura energia perdida e geram uma enorme resistência. Quanto mais downforce a asa produz (maior a diferença de pressão), mais fortes são esses vórtices e maior é o arrasto induzido.
A região de baixa pressão embaixo da asa é onde acontece a maior parte do trabalho — geralmente, 60-75% do downforce vem da superfície inferior. E aqui está um detalhe crucial: essa região de baixa pressão geralmente tem altura similar à corda da asa. Se você tem uma asa com corda de 25 cm, não deve montá-la a menos de 25 cm da tampa do porta-malas, ou a asa perde eficácia.
Quando montada muito baixa, a asa não consegue gerar aquela zona de baixa pressão embaixo dela eficientemente. O ar não tem espaço para acelerar. Tecnicamente, ela ainda é uma asa, mas se comporta mais como um spoiler. E como spoiler, ela não é tão eficiente quanto seria se projetada especificamente para aquela função.
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