A indústria automotiva mundial é distribuída em alguns pólos principais: a Europa, com representantes na Itália, França, Alemanha e Reino Unido; a América do Norte, onde ficam as fabricantes dos Estados Unidos; e a Ásia, de onde saem carros japoneses, chineses e coreanos. A Austrália também tinha sua própria indústria automotiva até muito recentemente, mas a Ford australiana e a Holden (divisão da GM por lá) deixaram de produzir carros no fim do ano passado. Existem, ainda, fabricantes de alcance mundial na Suécia (Volvo e a finada Saab); na Espanha (Seat) e na Rússia (AutoVAZ, dona da Lada).
Dito isto, existem (ou existiram) fabricantes de carros mais desconhecidas em países que tradicionalmente não associamos com carros. Pensando nisso, decidimos começar a falar sobre eles – fabricantes de lugares mais remotos e distantes da realidade de quem curte carros. Países como o Irã, por exemplo.
O Irã é enorme: com 1.650.000 km quadrados de território e 81.000.000 de habitantes, é o 17º maior país do mundo em área e o 18º mais populoso, sendo que são 49 habitantes por km² – quase o dobro da densidade populacional do Brasil, que tem 26 habitantes por km². É também o 2º maior país do Oriente Médio em território. A economia é baseada no turismo internacional, na produção de combustíveis e energia (com petróleo e usinas nucleares) e na agricultura regional – a indústria não é o forte do local e a muitos dos carros vendidos lá é importada de outras partes do mundo. Mas existe uma exceção.
Nos anos 70, porém, o Irã teve seu primeiro carro desenvolvido localmente: o Paykan, que significa “flecha” em persa, o idioma oficial iraniano. Quer dizer, “desenvolvido localmente” é meio que uma licença poética, visto que a base do projeto era o Hillman Hunter, nome pelo qual o britânico Rootes Arrow era mais conhecido. Não por acaso, arrow também significa “flecha”, mas em inglês.
O Hillman Hunter foi produzido em Coventry, na Inglaterra, por 13 anos, de 1966 a 1979, e tinha como rivais caras do calibre do Ford Cortina, o Morris Marina e o Austin 1800, alguns dos nomes mais populares da Inglaterra na época. Também foi em 1966 que ele começou a ser fabricado no Irã, em regime CKD (completely knocked-down, ou seja, chegava em partes e era montado localmente).
A decisão de “fabricar” localmente o Hillman Hunter em vez de comprá-lo importado tinha a ver com o momento econômico pelo qual o Irã passava na década de 60: as coisas iam muito bem graças ao aumento no preço dos barris de petróleo no fim dos anos 50, e isto levou a um aumento nos investimentos do mercado externo no País. Um rápido crescimento econômico, acompanhado de uma invasão da cultura ocidental no Irã, motivou o shah (o chefe de estado iraniano) Mohammad Reza Pahlavi a dar apoio a produção local de carros. A indústria automotiva tornou-se prioridade. Vale lembrar que, na década de 70, Pahlavi era um dos maiores acionistas da Mercedes-Benz e foi o responsável pela criação do utilitário G-Wagen – e também um dos primeiros a comprar uma frota inteira de G-Wagen para as Forças Armadas do Irã.
Pois bem: querendo acelerar ainda mais o crescimento econômico de seu país, Pahlavi fez de tudo para que a indústria automotiva iraniana vingasse. E, bem, vingou. Vingou tanto que o Paykan se tornou conhecido como “o carro nacional do Irã”, foi produzido ininterruptamente entre 1967 e 2005 – 38 anos. Sobreviveu até mesmo à falência do Rootes Group, que fornecia as peças.
O Paykan era fabricado pela Iran Khodro (ou ICKO), cujo nome significa literalmente “carro iraniano”. A IKCO foi fundada em 1962 pelos empresários Ahmed e Mahmoud Khayami, com forte subsídio do governo e a missão de dar o start na indústria automotiva do País. Com o tempo, e por causa do Paykan, a IKCO se tornou a maior empresa do ramo automotivo do Oriente Médio, posição que conserva até hoje.
Em seus primeiros anos, o Paykan era basicamente um Hillman Hunter com uma grade diferente e outros emblemas. O motor era um quatro-cilindros de 1,7 litro e 66 cv que ficava inclinado em 15 graus para deixar o capô mais baixo, compartilhado com o modelo original britânico. Não era um motor muito potente e, com isto, o Paykan não era muito rápido. No entanto, era uma mecânica robusta e apropriada para um carro feito para as massas, a preço popular – e a ideia era mesmo que o Paykan dominasse as ruas.
Acontece que, como você deve lembrar, a indústria automotiva britânica andava cambaleando nos anos 60. O Rootes Group, que passava havia muito tempo por problemas administrativos e financeiros, foi comprado aos poucos pela Chrysler começando em 1960. A gigante de Detroit tentou levar a situação por algum tempo, e até incorporou alguns modelos ingleses em sua própria linha (incluindo o Hillman Avenger, que foi vendido no Brasil entre 1973 e 1981 como Dodge 1800 Polara), mas a situação estava tão crítica que não demorou para que os americanos abrissem mão. Então, o Rootes Group foi vendido à Peugeot em 1978.
A primeira coisa que a fabricante francesa fez foi retirar o Hunter de linha, o que levou a IKCO a comprar os direitos sobre o projeto e, de fato, fabricar o Paykan localmente. Nesta época, foi promovido o primeiro e único facelift em toda a história do modelo: os faróis ficaram maiores, com as setas ao lado deles, e as lanternas traseiras adquiriram novo formato. Além disso, o motor 1.7 de origem britânica passou a ser um motor Peugeot, derivado do Peugeot 504, com 1,6 litro de deslocamento e 65 cv. Foi este o motor usado pelo Paykan até o fim de sua existência.
Cerca de cinco milhões de automóveis rodam pelas ruas de Teeran, a capital do Irã. Destes, cerca de dois milhões são exemplares do Paykan, que também foi fabricado como picape a partir de 1971. Aliás, foi o sedã que saiu de linha primeiro, em 2005 – e só porque o governo do Irã deu incentivos em dinheiro para que a IKCO desenvolvesse um veículo mais moderno, que estivesse de acordo com os padrões atuais de segurança, consumo de combustível e emissão de poluentes.
O carro que substituiu o Paykan foi o IKCO Samand, que tinha visual mais arredondado e motores Peugeot das famílias XU e TU, além da plataforma do Peugeot 405.
A produção do Paykan Bardo, que era o nome da caminhonete, continuou até 2015 – ela fazia tanto sucesso que, mesmo com a obrigatoriedade de airbags e ABS em veículos novos, conseguiu uma exceção.
Paralelamente, a IKCO continuou operando em parceria com a Peugeot, e a partir de 1999 começou a fabricar alguns modelos franceses sob licença, como o 405 e o 206. Além disso, lançou novos modelos com base nos projetos da Peugeot, além do Samand. Um exemplo curiosíssimo é o IKCO Runna, sedã feito sobre a plataforma do 206. Mas isto só é perceptível pelo formato das portas, porque de resto o carro é completamente diferente. O Paykan nos parece um carro mais interessante.