Década de 1960. Na Inglaterra, Galaxies big block trocavam tintas com Lotus Cortinas e Alfas GTA. Nos Estados Unidos, Mustangs e Camaros se pegavam com Porsches 911 e Austin Healeys. No Brasil, carreteras como a de Camillo Christófaro, com V8 de Corvette, versus os DKW de competição da Equipe Vemag. Em comum a todas estas batalhas, a oposição conceitual perfeita: Davi versus Golias, foguetes de bolso contra canhões.
Se hoje em dia os regulamentos praticamente eliminaram estes belos antagonismos das provas profissionais, nos track days e nas categorias vintage de automobilismo esta briga continua. Nos casos modernos, frequentemente os Davis partem de carros originalmente mais baratos (embora o investimento em preparação de alguns deles atinja os seis dígitos) e os Golias quase sempre pertencem a uma classe econômica muito superior, resultando não só em uma disputa de conceitos de engenharia, mas quase em um duelo de classes. Todo mundo sempre quer dar porrada no mauricinho…
Embora este tipo de rixa seja muito antiga e que o ser humano tenha aquela fixação de se apegar a um modelo ideal (emotivamente) e depois buscar justificá-lo (racionalmente), a verdade é que há muito prazer nestes dois tipos de carro e nenhum deles possui vantagem absoluta em todas as condições. Numa briga dentro de um elevador, leva vantagem quem usa uma espada de duas mãos ou quem tem uma faca afiada de churrasqueiro? Mude o ambiente para um campo de batalha e o jogo se inverte. O autódromo de Interlagos, por exemplo, favorece muito automóveis maiores e com grande potência e torque – já o de Piracicaba deixa esta margem bem mais estreita e a Capuava praticamente a elimina, claro, dentro de certa medida.
E graças a uma pura questão de física, a chuva pode literalmente transformar o vinho em água no duelo entre carros de tração dianteira e traseira (leia nosso post técnico falando sobre as vantagens dos veículos de tração dianteira com pista molhada), destruindo o que seria uma liderança óbvia em pista seca. Fica um certo quê de façanha no ar quando você vê um Mini Cooper S deixando pra trás um C63 AMG nestas condições, mas a física fica mais a favor do primeiro que do último em condições torrenciais. Sempre estamos à procura de uma referência – e isso faz parte do nosso trabalho, jornalistas, e do nosso hobby como entusiastas de performance –, mas não há cenário cristalizado. Tudo é dinâmico e pode se inverter.
Neste post vamos dar uma breve pincelada nas principais diferenças de tocada entre os Golias e os Davis, independentemente da possível diferença de performance resultante (tempo de volta) entre eles. Ambos são extremamente prazerosos, mas de forma distinta e exigem de você uma abordagem específica na pilotagem. Reconheço que este texto terá limitações, porque o mundo dos esportivos é feito de infinitos tons mistos intermediários e aqui colocaremos em oposição somente as cores mais intensas, os casos mais extremos, para diferenciarmos a tocada de cada um de forma clara. Vamos lá?
Carregando a velocidade lá pra dentro
No mundo do Super Trunfo, um pocket rocket seria uma máquina de tédio: quase sempre um hatch de tração dianteira com motor de quatro cilindros em linha e baixo deslocamento, muitas vezes aspirado, frequentemente com bitolas estreitas e pneus de tamanho comparável a um sedã familiar sem qualquer pretensão esportiva. No mundo real, contudo, carros como Suzuki Swift Sport, Mini Cooper S e JCW, ou os Honda Civic 1.6 VTEC EG e EK são verdadeiras cascatas de adrenalina em travessias de montanha e circuitos sinuosos, porque permitem e estimulam pilotagem emotiva, de abordagem agressiva, combativa.
E por que isso acontece? Embora a dinâmica automotiva seja um grande emaranhado de física, química, geometria e uma pitada de bruxaria, a força essencial por onde tudo isso acontece é a forma como o peso é transferido de acordo com as ações do automóvel: aceleração, frenagens, contorno de curvas.
Deixando de lado a aderência dos pneus, o jogo de transferência de peso – lateral, longitudinal, diagonal – é definido basicamente por três parâmetros no veículo: a massa, sua distribuição espacial, e a disposição dos pontos de apoio (os pneus), tanto na distância entre as linhas de centro das rodas do mesmo eixo (bitola) quanto na distância entre os eixos em si (entre-eixos).
Veja a fórmula de dinâmica automotiva que descreve a transferência lateral de peso (fonte: Debussy Bezerra de Almeida e Luis Carlos Dantas Matias):
A transferência de peso lateral é igual à força centrípeta* multiplicada pela altura do CG do carro (centro de gravidade), dividido pela largura das bitolas (eixos)
*Força centrípeta = aceleração lateral** do carro (força G) multiplicado pelo peso total do carro.
**Aceleração lateral = velocidade do carro ao quadrado dividido pelo raio da curva
Nota: para transferência longitudinal, substitui-se a largura das bitolas pelo entre-eixos e a força de aceleração lateral pela longitudinal
Obviamente um pocket rocket é leve e a altura do centro de gravidade, embora não seja a de um superesportivo, nunca é ruim. Mas, devido à configuração de motor e tração dianteira, seu peso não costuma ser bem distribuído sobre os eixos e frequentemente fica na casa dos 60-40. E se as bitolas geralmente estão na média de carros familiares, pouco abaixo de 1,50 m, quase sempre os entre-eixos são bem curtos, com 2,50 m ou menos.
Na prática, a pilotagem fica assim: como eles geralmente não apresentam números absurdos de potência, a velocidade de aproximação para as curvas não costuma ser assombrosa, permitindo que o piloto freie tarde – ou sequer alivie o pé do acelerador. Então você passa muito tempo de pé cravado e usa menos o freio. O entre-eixos curto somado à distribuição de peso mais frontal significa que um carro destes quase sempre terá a traseira rebelde nas frenagens e entradas de curva, pois quanto menor a distância entre os eixos, maior é a transferência de peso para a frente nas freadas e para a traseira nas reacelerações. Mas como o CG é baixo e há pouca massa envolvida, esta rebeldia, embora sempre presente, é facilmente controlável.
Na entrada de curva, o entre-eixos curto também significa que a inércia polar é menor, então ele gira em torno de seu próprio eixo e muda de direção com incrível agilidade. Os pneus sem excesso de largura resultam em mais comunicabilidade do limite de aderência, que se apresenta com uma resistência elástica crescente ao volante – e quando você passa do ponto, ele vai perdendo esta resistência. E como quase sempre eles usam motores aspirados de baixo deslocamento, o piloto pode “encher o cano” do acelerador na saída de curva de forma mais rápida e sem se preocupar tanto com a transferência de peso pra trás, o que causaria perda de aderência na dianteira. Este último fator não vale tanto para os hot hatches downsized (com motor turbinado e mesa de torque) nem para os preparados mais extremos. Estes, pelo contrário, exigem parcimônia no pedal da direita após o ponto de tangência, pois os pneus dianteiros estarão sobrecarregados com duas funções: esterçar e tracionar.
O centro da filosofia de pilotagem de um pocket rocket é conservação de momento. Você precisa carregar o máximo de velocidade para dentro da curva, não perder o embalo e sair cheio, em um veículo que muda de direção rapidamente e que apresenta traseira viva nas entradas de curva. Como há pouca inércia envolvida, estas transições ocorrem rapidamente, mas sem dramas – a não ser, é claro, que você exagere na dose. Embora nós nos focamos nos hot hatches, outros pocket rockets como cupês e roadsters curtos e até de tração traseira – Mazda Miata, Toyota GT86, MG B – apresentam as mesmas características essenciais.
Pilotar um hot hatch ou um pocket rocket envolve uma abordagem emotiva, portanto, porque o delta entre a velocidade máxima e mínima é mais estreito (ou seja, numa volta você passa proporcionalmente menos tempo nos freios), as ações e reações são vívidas, instantâneas e sem dramaticidades, e é muito mais fácil e simples explorar os limites dinâmicos do veículo, que dialoga o tempo todo em uma via de duas mãos com o piloto.
Canhões de velocidade: raciocine, aponte e dispare
Na mão oposta, pilotar um esportivo relativamente grande, potente e veloz – BMW M3, Mercedes-Benz C63 AMG Black Series, Porsche 911 Turbo, Camaro SS, Mustang GT500 – é uma tarefa de artilharia. São disparos de enorme calibre e um erro pode te trazer consequências catastróficas porque as velocidades e a inércia envolvidas são muito maiores. A pilotagem fica menos emotiva e mais racional, exigindo mais planejamento e noção de antecipação – que é a leitura antecipada das reações do veículo instantes de elas acontecerem. Para isso, é necessário experiência, sensibilidade e sangue frio, pois, como diz o jargão dos pilotos das antigas, estes carros “mordem”. Ou seja, se vacilar, ele te pega. Note como o piloto deste M3 GTS precisa sempre ficar atento com a traseira após os pontos de tangência.
A grande verdade é que num pocket rocket a diferença de tempos de volta entre um piloto razoável e um ás jamais será tão grande quanto num canhão. Carros muito velozes nivelam por cima, evidenciando de forma nua quem não está no mesmo nível do veículo, de tal forma que alguns acabam andando até mais devagar do que o fariam num automóvel menos extremo. É por isso que não é tão raro vermos bons pilotos em hot hatches fuçados dando sabugo em novatos com superesportivos. Essa dificuldade dos canhões acontece por uma série de motivos.
O principal deles é que a velocidade de aproximação de curva é monstruosa e a massa é maior, exigindo que o piloto freie bem antes que num hot hatch. Então o delta entre a velocidade máxima e a mínima fica bem maior. Calcular essa distância e ter a coragem de buscar o limite de frenagem a 260 km/h em vez de 170 km/h é uma mistura de xadrez com bungee jump. Especialmente porque frequentemente o piloto precisa administrar outro fator: a temperatura dos freios.
Uma segunda dificuldade surge no casamento do fim desta frenagem com a entrada de curva: estes esportivos possuem enorme capacidade de aderência lateral, mas ela não é tão simples de ser encontrada – porque o limite é mais alto, mas também é bem mais estreito. Ou seja, é fácil passar do ponto e espalhar na entrada da curva. Isso acontece porque eles usam pneus enormes (que, por natureza, já dão menos aviso) e do tipo “extreme performance”, que fornecem o máximo de aderência com o mínimo de ângulo de deriva. Com isso, aquela coisa da resistência elástica surgir no volante deixa de ser uma mensagem para ser um suspiro. Na prática, a área verde do gráfico abaixo fica ainda mais estreita.
No topo disso, com centro de gravidade bem baixo, bitolas bem maiores e entre-eixos um pouco mais longos, as transferências de peso ficam menores, o que é bom dinamicamente, mas também resulta em menos aviso. E apesar de as transferências serem menores, a massa total, ou seja, a inércia, permanece alta: correções são mais difíceis de serem executadas.
Há também uma questão sensorial: é muito mais fácil para o nosso organismo processar uma aceleração lateral constante de 0,90 G do que uma de 1,1 G. No caso desta última, manter a postura de pilotagem já fica mais difícil e o labirinto já começa a se comportar de forma engraçada, deixando muita gente desorientada. Fora o fator cagaço, pois tudo acontece mais rápido e com maior intensidade.
Se estivermos falando de muscle cars, especialmente os mais antigos, há um outro desafio em particular: a capacidade de aceleração é muito maior do que a de frenagem e a de gerar aderência lateral. Isso exige um approach bastante cerebral na pilotagem.
Por fim, a capacidade de empuxo destes esportivos potentes sempre é colossalmente maior que a de tracionamento dos pneus: não é simplesmente “dar pé” a seco no acelerador na saída da curva. Você precisa alimentar o pedal, com a finesse de quem aumenta um botão de volume num toca-discos de vinil, pois se exagerar na dose, três coisas podem acontecer: o controle de tração te mata a saída de velocidade, você se mata perdendo a traseira do carro (no caso de ele estar desligado), ou você mata a velocidade de saída, espalhando, destracionando ou brigando com o automóvel. O vídeo acima mostra como essa missão é bem mais complicada do que parece.
Um detalhe óbvio, mas que vale ser lembrado: a maioria dos pocket rockets possui tração dianteira e não apresenta tanto torque. No caso de o piloto passar do ponto no pedal da direita, o veículo irá espalhar (sair de frente) e destracionar progressivamente. Um canhão de tração traseira, com torque suficiente para alterar o eixo de rotação da terra, gira no próprio eixo sem muito aviso. Vídeos de Chris Harris e Tiff Needell são extremamente estimulantes e adoramos os usar para dizer como “carro de verdade é isso”, mas a realidade é bem mais assustadora e complexa do que eles fazem parecer. Na mão destes caras, tudo parece fácil e simples porque eles são extraordinários. Mas não se iluda: é malabarismo com facas.
Se o centro da filosofia de pilotagem de um pocket rocket é buscar não perder o embalo do carro, num canhão o segredo é o piloto não atrapalhar as capacidades do automóvel, principalmente nas frenagens e saídas de curva. Ele deve entrar forte, mas de uma forma que não embarrigue o traçado e, principalmente, que permita o maior raio possível nas saídas – o que possibilita o máximo de tração, pois a capacidade do motor sempre está acima da dos pneus nestes carros.
Como o delta entre a velocidade mínima e a máxima ao longo da volta é maior, isso significa que a pilotagem tende a ser um pouco menos fluida também, inclusive no traçado. Como a velocidade de saída de curva passa a ser priorizada pelo traçado mais retilíneo possível – em vez da máxima conservação do momento –, tecnicamente o traçado de um canhão ganha um pouco mais de vértice, especialmente em curvas de média-baixa e de baixa velocidade. Dependendo do carro, as ações e reações são vívidas e instantâneas também, mas a tolerância é zero: explorar os limites dinâmicos deixa de ser um bate-papo em duas mãos e vira um par de nunchakus pesados.
Com tudo o que foi escrito aqui, fica parecendo que pilotar um rojão é menos emocionante. Não é verdade. São prazeres diferentes – o que quero situar aqui é que pilotar um esportivo ou um superesportivo é uma tarefa puramente técnica, que fica emocionante pela intensidade das forças envolvidas, pelas mordidas que o carro tenta te dar após os pontos de tangência e, claro, pelo ronco destes monstros e do risco potencial. É o carro que brinca com seus limites.
Já pilotar um foguete de bolso é uma tarefa puramente emotiva, que fica técnica pela necessidade de você extrair o máximo com o mínimo possível – você é que explora os limites do carro. Se nele é mais fácil chegar aos 90% da capacidade do automóvel, por outro lado, não se iluda: extrair todo o bagaço do suco num hot hatch também é coisa para alienigenas.
…bem como fazer um canhão antigo e pesado deixar carros mais ágeis sem entender nada em curvas de alta…