Entrei no carro, fechei a porta. Virei a chave, a bomba de gasolina zuniu até fazer pressão na linha de combustível. Dei a partida. O motor acordou imediatamente pra vida, girando firme nas 850 rpm, mas eu ouvia no escape direto as eventuais tossidas de protesto. Apertei a embreagem, enfiei a primeira marcha, que entrou suave como em todo câmbio GM bem acertado, e acariciei levemente o acelerador. Soltei a embreagem suavemente e o carro se movimentou preguiçoso pra frente.
O som grave e encorpado do escape reverberava por toda a garagem do prédio. Quando eu saía com o VTR da garagem, era algo como manobrar a Enterprise pra fora de uma doca espacial, me sentia num filme de ficção científica olhando aquele painel cheio de telas digitais. Com o Tigra não.
Quando o seu motor não cabe no seu contagiro, você sabe que está guiando algo especial
Era como sair de um hangar com um Spitfire. O calor, os escapes diretos, o barulho, o cheiro, a vibração, os comandos todos passando uma sensação incrivelmente mecânica, rude, direta, pras minhas mãos e pés, tudo me lembrava o taxiamento de um velho e potente caça da segunda guerra. E como o velho Spitfire, o Tigra era pequeno, mas era uma máquina feita pra subjugar, pra perseguir, pra matar. E quando eu embicava na rua… ah, era hora de decolar. Era hora da caça.
Já parecia ameaçador. Agora era hora de afiar as garras
Se vocês se lembram da última parte, o Tigrinha tinha recebido uma reforma cosmética completa, com direito a confortáveis bancos em couro e uma repintura. Também tinha ganhado chão, com molas Eibach e amortecedores Bilstein, além de freios mais potentes. Mas, logo depois disso, ele começou a fumar, e eu tive que tomar alguma atitude em relação a isso. Eu acredito firmemente que um motor aberto e refeito em suas especificações originais é um desperdício de uma oportunidade. Eu decidi que o motor receberia uma preparação aspro.
Procurei alguém que fosse fazer isso em Brasília com capricho. Encontrei um cara que, por causa de sua seriedade e seu compromisso, se tornou uma referência e alguém que eu considero demais até hoje: O Zezão do autódromo de Brasília, um preparador extremamente experiente em motores Chevrolet.
Na oficina do Zezão fizemos um trabalho de retífica de motor completo: no bloco medimos as folgas, observamos que os cilindros ainda estavam dentro das especificações originais. Essa informação foi determinante para que eu mantivesse o motor a gasolina e com a cilindrada em aproximados 1600cc (se houvesse folga eu teria aberto o motor para 1800cc no álcool).
Então brunimos os cilindros, instalamos anéis e casquilhos novos, e equalizamos o peso dos pistões (lindos pistões KS billet, os motores dos Tigras, Corsas GSI, Calibras e Vectras GSi vinham com pistões KS billet), virabrequim e bielas, e aliviamos o volante do motor. Instalamos uma bomba de água nova e uma bomba de óleo originária dos motores 1.8 de bloco pequeno, que conseguia manter a pressão de óleo até 8500 rpm (as bombas originais dos motores 1.0 e 1.6 não seguravam pressão de óleo acima de 5500 rpm).
O cabeçote recebeu um trabalho de preparação completo: válvulas e sedes ganharam angulação, os dutos foram alargados, os de escape foram polidos até o espelhamento e os de admissão ganharam uma superfície rugosa para manter a turbulência nas paredes e evitar o gotejamento nas paredes da admissão. As janelas do cabeçote e do coletor de admissão foram equalizadas. A borboleta foi aberta de 50 pra 54mm (o máximo que a pequena borboleta que veio instalada nos F1 podia ser aberta), teve o torque lump retirado e o aquecimento desconectado. A câmara de combustão teve potenciais pontos quentes removidos. As guias de válvulas foram cepadas e as válvulas tiveram as partes expostas das canelas afinadas. A taxa foi elevada por meio de um passe no cabeçote para 11,1:1.
Dutos alargados, polidos na admissão e espelhados no escape
Os comandos foram mantidos os originais, apenas reenquadrados pra giro mais alto, uma vez que os Tigras brasileiros vinham com comandos que a própria Opel usava em motores de rally na Europa. Outra coisa importante é que com esses comandos eu poderia continuar usando molas originais (com especificação pra 8500rpm com esses comandos) e tuchos hidráulicos, e me livrar da regulagem constante da folga de válvulas dos tuchos mecânicos.
Cabeçote aplainado e válvulas e sedes anguladas e montadas
Quando fechamos o motor (em que usamos um kit completo de juntas, vedantes e retentores da Sabó pra desencargo de consciência, com uma junta de cabeçote de aço da própria Chevrolet) testamos a bicheira num dinamômetro de bancada, ainda sem acerto de injeção e ignição: 133 cv! Que ganho espetacular!
O motorzinho montado e rodando no dino de bancada: a hora da verdade!
Maaaaas ainda não tínhamos terminado a montagem do motor. Depois desse primeiro teste nós retiramos o coletor de admissão original e instalamos um coletor de admissão desenvolvido pelo Tigra Clube brasileiro a partir de uma fantástica peça de preparação europeia que é o Mantzel Powerbox. A ideia do Mantzel (e por consequência do nosso Powerbox) é aproveitar o fato de que o coletor de admissão do Tigra é bipartido. Você desmonta o coletor, retira a parte de cima (com o plenum e metade dos dutos) e instala o Powerbox, que funciona como um Plenum com mais volume que o original, apenas na parte inferior dos dutos.
Assim, você tem um plenum com mais volume e dutos bem mais curtos no motor, jogando a eficiência volumétrica para os giros mais altos. O próprio mantzel é um coletor inspirado numa peça de competição elaborada pela própria Opel (momento “Teoria da Conspiração”: porque vocês acham que a Opel fez esse coletor bipartido pra começo de conversa?!?)
Numa foto registrada pelo querido amigo rafa “run4Fun”, o coletor de admissão Powerbox montado: com os resultados expressivos que conseguimos no Tigra Clube, o raro item começou a ser disputado a tapa também entre os donos de Corsas GSi.
Com tudo montado testamos o motor de novo no dinamômetro de bancada. E o resultado foi melhor que o esperado: 154 cavalos e quase 20 kg de torque! Original, cansado, aquele motor havia rendido 102 cv e pouco mais de 14 quilos de torque no dinamômetro. Eu também fiquei muito feliz ao observar que, graças ao aumento de taxa, nenhum torque foi perdido. Ao contrário, a curva de torque havia ficado toda mais alta, com o pico de 19,6 kg em 5,4 mil rpm. Eu estava radiante!
No mostrador do dino, os expressivos resultados de torque que depois seriam usados no cálculo da potência final do Tigra
Nos dois meses seguintes o Tigra ainda ficou pulando de oficina em oficina, montando uma caixa de marchas mais curta, um escape todo novo e mais livre, com duas polegadas de diâmetro (lembrem-se, era um 1.6, não um 2.0), apenas dois abafadores “luneta” (você olha de um lado e vê pelo outro) diretassos, uma pintura em alto relevo sugestiva na tampa de válvulas e a cereja do bolo: um coletor 4×1 Lexmaul de inox que era uma obra de arte (mas que foi devidamente enrolado em termotape pra não fritar com o calor o cofre já apertado do Tigra).
Olha aí o coletor Lexmaul enrolado na termotape já!
Depois disso o Tigrinha foi pra outro dinamômetro, de outro amigo meu, o Rodrigo, para a gente testar o que passava para as rodas e o que mais conseguiríamos ganhar com acerto de injeção, ignição e aumento de giro (eu já tinha andado no carro um pouco e observado que ele cortava ainda querendo subir muito giro, cortava no ímpeto). Com o carro devidamente amarrado no dino de rolo, medimos a potência das rodas antes do acerto: 126cv a 6500 rpm, no corte. Vimos com uma lambda wideband que o motor estava pobre em baixa e rico em alta.
Ajustamos ponto e taxa, acertando o motor para a podium que enchia o tanque e elevamos o corte de giro pra OITO MIL ROTAÇÕES. O valente motorzinho respondeu à altura: entregou de volta 138 cv a 7.500 rpm nas rodas. Os técnicos do dino falaram que provavelmente aquele motor estava rendendo mais de 160cv no eixo. Ao sair da oficina, eu dei uma volta bem comprida com ele e vi que agora o carro tinha a potência e o desempenho que o seu visual prometia.
Finalmente pronto!
Então eu olhei pra ele e decretei: está pronto. Esse carro chegou no exato ponto onde eu queria. Era potente, era usável na cidade, podia ir pra uma arrancada ou um track day e, com os devidos cuidados, me daria muita diversão ao longo dos anos. Era meu carro preferido, e eu confiava plenamente nele. Com ele levava a minha filha na escola, pegava engarrafamentos, esticava, ia a alguns eventuais festivais de arrancada e track days e até viajei com ele a um dos encontros anuais do Tigra Clube em Campos do Jordão. Uma viagem de 2.500 km em que ele não deu um soluço (pra não dizer que não aconteceu nada nessa viagem, eu perdi uma calotinha do cubo da roda…)
Na estrada, funcionando como um relógio!
Ele não baixava óleo, ele não bebia muito (andando devagar fazia 11km/l na cidade, mas eu nunca conseguia manter esse auto controle, huahuahuhauha), ele tinha um ar-condicionado que foi retificado e gelava muito, uma direção hidráulica perfeita, uma embreagem macia na medida certa, freios no peso certo e suspensão firme na medida certa.
A Heloísa curtia demais o Tigrinha, porque ele “corria e espremia ela no banco”. Eu adorava cada minuto com aquele carro. Ele era a prova concreta de que todas as minhas crenças automotivas estavam certas: de que um bom carro, quando devidamente trabalhado, com componentes de qualidade e com peças de prateleira de maior desempenho da própria GM, e especialmente, com muita atenção ao ajuste e ao equilíbrio na montagem, pudesse sair do outro lado como um carro muito melhor, um carro excepcional, um carro que não só subjugou qualquer concorrente da época dele como dava combate real a carros originalmente muito mais fortes.
Quem disse que esportivo não faz mercado? Faz sim!
Esse carro me dava orgulho e me deu a coragem pra adquirir um outro carro para iniciar outro projeto: uma Alfa Romeo Giulia GTV 1974.
Sim! Eu tinha comprado o carro que era um sonho de infância do meu pai, um carro que ganhou três campeonatos de Marcas na Europa nas décadas de 60 e 70, um carro que foi o responsável pelo renascimento e afirmação da Alfa como marca esportiva na década de 60, e que foi eleito o melhor carro já feito pela empresa: a Giulia GTV.
No meu caso, uma GTV2000 feita em 1974, de um azul profundo lindo. Ela chegou à minha garagem e imediatamente foi um caso de amor entre os dois. Eu olhava aqueles dois carrinhos pequenininhos, paradinhos, namorando na garagem (e um francês todo frescoso tentando se enturmar) eu me derretia de orgulho.
Num raro momento com os três limpos e alinhados na frente do prédio, uma foto memorável!
Mas então, num dia chuvoso de dezembro, uma tragédia aconteceu.
Por Bruno Angrisano, Project Cars #239