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Project Cars Project Cars #239

Project Cars #239: a despedida do Chevrolet Tigra 1.8 de 158 cv

Era um dia chuvoso de Dezembro de 2011. O último dia de trabalho antes de entrar de férias e viajar para a minha cidade natal. As malas estavam prontas, na sala de casa, eu ia pegar o avião no dia seguinte. Eu tinha que me despedir do Tigrinha.

Entrei no carro, dei a partida. O motor respondeu de pronto, vibrando o carro todo. Embiquei para a rua, a chuva forte encharcava o parabrisa, os limpadores estavam perdendo a briga contra a água. Não liguei o rádio. Eu queria guiá-lo prestando atenção a tudo, por causa da chuva. Olhava os espelhos retrovisores, as gotas escorriam deles. Fui andando devagar pelo bairro até chegar na avenida, conferindo a temperatura do motor subindo e a pressão do óleo estabilizando. Sabia que tinha que esperar tudo estar em ordem pra poder esticar o carrinho.

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Embiquei no semáforo pra entrar no Eixo Monumental, uma avenida enorme e reta de Brasília. O sinal abriu, saí devagar, virei na avenida e alinhei o carro. Com o carro reto, acoplei a embreagem e só então apertei o acelerador de forma progressiva mas rápida. Imediatamente os pneus gritaram em protesto, e o carro destracionou em toda a primeira.

O corte chegou mais rápido que eu previa, estouros no escape avisavam que eu tinha que trocar de marcha. Chute na embreagem, soco na alavanca, acelerador esmagado e a segunda destracionando. Depois a terceira inteira e ele só foi pegar algum grip no asfalto molhado pela metade da quarta, pra imediatamente perder grip de novo ao beliscar o pico de torque. Meti a quinta, sorri maldosamente e subi costurando com o carro até perto do serviço.

A chuva não dava trégua, ao contrário, ficava cada vez mais forte. Segunda, terceira, quarta, terceira de novo na redução, a aderência era só uma lembrança para os pneus. E um sinal fechou.

Alinhei, o sinal abriu, estiquei as marchas como havia feito antes até aquela hora. Primeira, segunda, terceira, quarta, quinta? Não entrou, forcei e escutei um estalo metálico em protesto, o motor imediatamente parou de funcionar e o painel inteiro acendeu. De reflexo apertei a embreagem enquanto me perguntava o que havia acontecido.

Ainda embalado, fui jogando para o acostamento quando me dei conta. Ao forçar engrenei a terceira em vez da quinta e o giro foi até a Lua. Tive certeza que alguma coisa tinha arrebentado no motor do Tigra. Chamei um guincho, liguei para meu mecânico, pedi pra receber o carro na oficina, e viajei com o coração na mão. 2012 seria um ano de muito trabalho pra consertar a merda que eu tinha feito.

Na volta das férias meu mecânico tinha aberto o motor do bichinho e me mostrou: o pistão 3 havia atropelado uma válvula. Os cacos da válvula foram cuspidos de volta pro coletor de admissão e depois engolidos pelos outros cilindros nas poucas voltas que o motor deu até travar. Os outros pistões ficaram com os cacos cravados neles. Incrivelmente, nenhuma face dos cilindros levou uma unhada de pistão. Mas o casco do cabeçote poderia estar comprometido, e as câmaras de combustão estavam todas marcadas pelos cacos da válvula. Sem falar que uma biela encontrou Jesus. O motor teria que ser refeito inteiro.

Nessa hora, eu tinha que tomar outra decisão: Montaria igual? Faria algo diferente? Decidi então seguir meus princípios de aproveitar a oportunidade do motor aberto e dar outra incrementada no motor: abriria pra 1.8 com pistões e vira novos, usaria os comandos Carlini pra girar mais alto ainda, tuchos alemães e molas duplas pra segurar a onda.

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Comandos Carlini…

Tentaríamos usar o casco do cabeçote caso ele não estivesse trincado, se estivesse usaríamos o casco condenado como gabarito para um casco novo. Os pistões seriam os do motor 1.8 Flex, e se a taxa de compressão cooperasse o motor agora giraria no álcool.

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… pistões e bielas novos…

O casco do cabeçote pôde ser reutilizado. Ele não havia sofrido nenhuma trinca e as dentadas que as câmaras haviam sofrido eram rasas o suficiente para saírem com um polimento da câmara. A face ganhou outro passe e, junto do novo virabrequim e dos pistões mais cabeçudos, levantaram a taxa de compressão para 13,5:1, perfeita para o álcool. Uma bomba de Astra Flex foi instalada no lugar da antiga original, para permitir maior vazão do combustível “de homem” (um grande amigo meu diz que gasola é combustível de muiézinha, álcool é combustível de homem e Podium é combustível de tarado). Bicos de Astra a álcool, com mais vazão, permitiriam um acerto pelo remapeamento da central original, que eu sempre gostei. Por segurança instalei outra bomba de óleo nova, guias novas, retentores, juntas, casquilhos, anéis, tudo novo de novo. O motor voltaria a ser um motor novinho de novo.

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… e todos os retentores, juntas, molas, tuchos, aneis, casquilhos, tudo, tudo novo!

Todo esse processo levou uns bons seis meses. Numa tarde quente de junho o motor restaurado virou pela primeira vez, ainda um pouco magro e com o ponto muito conservador em giros baixos. Ao acertarmos o motor alguns dias depois com os comandos Carlini conseguimos beliscar os 172 cv nas rodas, mas o motor ficava muito chato em baixos giros e perdeu aquela elasticidade que eu tanto gostava. Decidimos trocar os Carlini e voltar com os velhos comandos Opel, que ainda defenderam 158 cv nas rodas, mas deixavam uma curva de torque muito mais gostosa em todo o giro, e faziam o carro ser elástico e extremamente esperto em qualquer rotação, em qualquer marcha.

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172 cv nas rodas? Ave Lutz!

Por segurança, mantive o corte de giros em 7.500 rpm. E o Tigrinha voltou a andar, dessa vez mais gostoso, e muito mais forte. E com mais cheiro de cachaça do que nunca.

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E ainda soltava uns pipocos fodas!

O tempo foi passando e o Tigrinha continuou cumprindo seu papel. Era um carro confiável, gostoso e forte. Mas o comichão dos carros me corroía por dentro e pedia mais. Há alguns anos eu vinha juntando uma grana para comprar um novo projeto. Naquele momento da minha vida, o Tigra e a Alfa estavam bem redondos e não me davam surpresas.

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Lindo até nos detalhes… 

Eu tinha já trocado meu apartamento por um maior, e queria uma novidade. Então em março de 2015 surgiu a oportunidade de um grande amigo comprar o Tigrinha. O dinheiro do carrinho iria integralmente para a “poupança da jaca nova”. Num impulso, vendi o carro pra ele. Acertamos o valor, ele me fez o depósito e, imediatamente, eu me arrependi de vender aquele carrinho tão bom. Eu sabia que nunca mais iria montar outro assim, e provavelmente nunca mais teria um Tigra, pois sou firmemente contra repetir modelo de carro (figurinha repetida não enche álbum).

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E ainda sinto saudades desse baixinho…

Então me lembrei que a vida é uma sequência de pequenas mortes. O Tigrinha já tinha morrido e ressucitado na minha mão algumas vezes, já tinha me feito feliz muitas vezes, foi um excelente professor e um companheiro de quatro rodas irrepreensível. Ele tinha cumprido seu ciclo comigo, e tinha feito isso com louvor.

Se eu me arrependo hj ainda? Não sei. Eu sinto saudades dele, que conseguia ser um carro simples e fácil de entender, pra mim quase transparente. Sinto especialmente uma alegria muito grande das histórias que vivi com ele. Das alegrias que me deu, das horas de aperto, de toda vez que eu precisei e o carrinho correspondeu. É difícil, mas é importante desapegar. O amigo que comprou o Tigrinha tem ele até hj e é completamente apaixonado pelo carro. Sorte do Tigrinha, vive hj uma aposentadoria tranquila e continua sendo bem cuidado.

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Alemãozinho curtindo a aposentadoria na praia…

No dia que ia levá-lo para a transportadora decidi me despedir. Levei minha filha na escola com ele. Fomos conversando e eu contei que o Tigrinha ia para uma nova casa. Ela me perguntou: “Porque? Ele tá dando muito problema? Você precisa do dinheiro?” Eu disse que não, que um amigo tinha gostado dele e que era hora de ele ir pra uma nova casa e fazer mais gente feliz.

— “Mas será que ele vai cuidar bem dele?”
— “Sim, ele gosta do Tigrinha igual a gente.”

Ela olhou pra frente, os olhinhos cheios de lágrimas, e me falou com um tom duro: “Tá bom. Mas você tem que prometer que o próximo carro vai andar mais que o Tigrinha”.  Desceu do carro, puxando a mochilinha, virou pra ele e falou: “Tchau, Tigrinha!”

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Por Bruno Angrisano, Project Cars #239

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Uma mensagem do FlatOut!

Bruno, a gente sabe como é esse negócio de estar sempre atrás de um problema que a gente não tem um projeto novo para tocar. Dizem que quando a gente responde coisas por impulso, acabamos sendo mais verdadeiros, revelando o que estamos sentido naquele momento. A venda por impulso talvez tenha sido sua reação natural ao tempo que você passou com o carro e as alegrias que ele te deu. Parabéns pelo projeto e que seu novo dono esteja curtindo o Tigrinha como ele merece ser curtido.