Por Marcus Vinícius Guerra, Project Cars #522
Não tenho certeza se há um país perfeito para os entusiastas de carro viverem, mas tenho certeza que o Brasil não é um deles. Eu não me abstenho em dizer que o governo move esforços para dificultar o interesse daqueles que vivem essa cultura. Há um sistema de impostos que encaminha a sociedade para as aquisições econômicas, um departamento de trânsito que, hipoteticamente deveria trazer segurança e mobilidade para as ruas, mas na verdade é uma máquina pública de receita para o governo a partir de radares, taxas abusivas e leis que mais promovem uma anarquia por parte da sociedade do que a própria segurança rodoviária, sem mencionar a infraestrutura paupérrima e o capital que deveria ser investido nesse intento escorrendo pelo ralo da depravação política todos os anos, como já estamos acostumados a ver nos jornais.
Apesar disso, a cultura automotiva brasileira é riquíssima. Me atrevo a dizer ser uma das mais ricas do planeta, e de muito bom gosto em grande parte. Creio que esta série de obstáculos seja o fator primordial para o crescimento dessa cultura. – Paddy McGrath, editor chefe do Speedhunters.
Meu nome é Marcus Vinícius Guerra, tenho 23 anos, moro em Manaus e tenho um Fiesta 1.5 Turbo. Esta é a nossa história.
O Fiesta teve a primeira geração lançada em 1976, fruto do projeto Bobcat – aprovado para desenvolvimento por Henry Ford II em 1972 – e é comumente é considerado o primeiro Ford de tração dianteira de sucesso. Não tivemos o Fiesta de primeira nem segunda geração oficialmente aqui pelo Brasil; somente na terceira geração (famosa por ser a primeira com variante cinco portas) em 1995 e sob importação da Espanha, com motores Endura de 1.3l, injetados e 60cv.
E acho que aqui começa a minha história com o carro: meu pai teve um Fiesta 1995.
Posteriormente ao Fiesta meu pai também teve um Mondeo 1995, e anteriormente um Versailles – antes de eu nascer. Mas eu não lembro absolutamente nada do Mondeo; eu lembro do Fiesta. Eu lembro do cheiro, do som do motor, do tato no tecido dos bancos e dos botões, das cores do painel a noite. Lembro de absolutamente tudo.
Eram memórias de uma criança que morava num pacato interior do estado, onde qualquer saída no carro, seja para visitar um familiar, ir à igreja ou dar uma volta, era uma experiência excitante.
Nos mudamos para a capital no começo da década de 2000. Época onde tínhamos Need for Speed Underground, pacotinhos de quatro cartas de carro a 25¢, HotWheels, Super Trunfo… não fui de ter muitos amigos na infância, então meu lazer era desenhar carros, jogar NFSU e U2 e Gran Turismo 1, 2, 3, 4… passava tardes lendo a descrição de cada carro no GT como se estivesse estudando para uma prova; e aprendi bastante! A propósito acho que o Gran Turismo teve um papel fundamental, não somente na minha, mas na vida de muita gente no conhecimento teórico sobre o automobilismo.
Aproximadamente uma década depois, em 2014, eu completara 19 anos e conseguira meu primeiro emprego formal. Estava no segundo ano de Engenharia Mecânica, indo e voltando de ônibus e eventuais caronas. Minha família abraçou uma oportunidade financeira e tivemos a chance de poder comprar nosso segundo carro para atender a minha necessidade diária com as seguintes características: hatch, cinco portas, acima de 1.0, com boa dinâmica de chassi e com um custo relativamente baixo.
Lembro que em uma tarde eu deitei à minha cama e processei: qual carro poderia atender a estas características e que pudesse, futuramente, se tornar um bom projeto? Aquelas lembranças do Fiesta e a jornada da família com a Ford me fizeram um apelo emocional e acabaram limpando a minha visão para perceber que o Fiesta de sétima geração (ou sexta, já explico) poderia ser um puta projeto: design bonito, boa motorização e venda mundial, que faz com que seja um carro mais difundido na cultura automotiva, gerando assim mais idéias de bons projetos tanto mecânicos quanto visuais com base na experiência de pessoas pelo mundo.
O “New” Fiesta é a sexta geração do modelo mas acabou sendo conhecida como Mk7 inicialmente no Reino Unido e depois mundo afora, sabe Deus por que. No Brasil chegou em 2010 sob importação do México – este bastante reconhecido por sua qualidade de construção e acabamento interno.
Em 2013 veio o facelift (Mk7.5) fabricado no Brasil, modelo o qual se trata este Project Car. Foi comercializado em nosso mercado inicialmente com duas motorizações aspiradas de 1.5 e 1.6 litros e posteriormente o 1.0 turbo. Americanos, europeus e alguns vizinhos latinos tem a sorte da Ford disponibilizar em seus mercados o Fiesta ST: motor 1.6 turbo de 215cv (nas últimas atualizações), visual mais encorpado, roda 17”, versão de três portas, suspensão mais travada… um hot hatch nato.
Os aspirados disponíveis no Brasil, em questão, provem da família Zetec. São Duratecs evoluídos minimamente e mais conhecidos no Brasil e Estados Unidos como Sigma (Zetec > Zetec SE > Duratec > Duratec TiVCT [Sigma]). São motores de alumínio de 16 válvulas com comando variável e coletor de admissão de plástico. A transmissão é uma iB5+ com atuador hidráulico, a mesma utilizada nos Focus manuais.
Apesar da pequena aparição no mundo modificável, o Sigma é utilizado nos motorsports para carros de algumas copas nacionais nos Estados Unidos, como a SCCA Ford Pro Series e no Reino Unido em alguns campeonatos e centros de pilotagem com Caterhams 7. No uso street é possível encontrar alguns itens de performance, como comandos 270° e 285° Pipercams na gringa e Carlini aqui no mercado nacional, kits de escapamento Mountune, coilovers KW, Bilstein e Eibach, intakes Injen e K&N, remaps e até mesmo kits supercharger Rotrex mais simples.
Consideradas estas informações, fomos a concessionária e compramos um Fiesta 1.5 S 2014/2015 Azul Califórnia. O modelo de entrada já atenderia perfeitamente minhas necessidades, mas sendo bem sincero, se eu tivesse a mesma sabedoria e noção do que o carro seria hoje, tinha levado o 1.6 SE única e exclusivamente por causa do motor. A cor eu escolhi propositalmente imaginando um projeto bem bacana – considero que carros com cores exportam vida e mais personalidade. Se fosse para ter apenas um carro do dia a dia, teria sido prata ou preto. Inicialmente eu não tinha a idéia de montar turbo; só queria um aspiradinho mais básico possível com uma estética bacana. Acho que ninguém em sã consciência com um orçamento limitado, 19 anos – na época – e no primeiro emprego compra um carro zero km pra turbinar.
Modificações iniciais
O Sigma 1.5 tem originais 112cv e 15kgfm. Dinamicamente o Fiesta Mk7.5 é um carro muito no chão; quem guiou já sabe. Baixa tendência de rolagem da carroceria, baixa torção de chassi e boa distribuição de peso são algumas caraterísticas. Em todos estes anos de uso eu posso dizer que sou satisfeito e considero um excelente carro. O único gargalo é o acabamento interno que é bastante inferior ao pré-facelift, fabricado no México.
O modelo tem dois problemas crônicos conhecidos: o eletroventilador queima, o carro esquenta, consequentemente, e queima a junta de cabeçote com uma certa facilidade. O meu queimou o eletroventilador – mas não queimou a junta – e substitui por outro com um reparo nas escovas. O segundo problema é que as maçanetas destravam o primeiro estágio das travas espontaneamente; em algumas situações mais críticas as portas até abrem (não no meu caso). Este defeito é passivo de recall – coisa que eu nunca fiz até hoje. No mais, não me deu outros problemas.
Usei o carro original por quase um ano. Ganhando um dinheirinho com meu primeiro emprego eu comecei colocando um filtro menos restritivo, trocando lâmpadas e outras besteiras. No mesmo ano fiz uma viagem de mais de 4.000km com o Fiesta à Ilha de Margarita, na Venezuela, e trouxe de lá – rodando – um jogo de rodas BWAv Racing Why 17×7,5” – por incríveis R$400,00, novas, na caixa – e chegando em Manaus, depois de alguns meses, comprei um jogo de molas esportivas usadas de um amigo.
Usei esse setup por bastante tempo; com a roda prata, preta, dourada, cinza. Retirei os badges traseiros para um visual mais limpo, pintei a grade e as capas do farol de neblina de black piano, pintei o morto painel cinza no preto perolizado do Fusion.
Fiz uma espécie de red clear nas lanternas usando adesivo específico e instalei um front lip universal de borracha. Juntando esses pequenos detalhes consegui ter um visual less is more bastante limpo e fiquei bastante satisfeito.
Com um visual já consolidado, fizemos um coletor 4-1 custom e confesso que me diverti bastante nessa configuração básica escape/intake. É incrível como esse efeito sensorial de um escapamento dimensionado afeta seu prazer de dirigir.
Como dito pelo nosso amigo Juliano Barata: “Não há dúvidas de que o ronco do motor conta por mais da metade da experiência ao volante. Orgânico, musical, visceral, apaixonante, agressivo, tímido, rouco, anasalado – é principalmente ao ronco que atribuímos características humanas ao automóvel”.
O som era bonito, soltava uns fogões por trás; não andava nada mas era divertido demais. E, mais uma vez, para provar que escape e intake em carro aspirado de baixa cilindrada não traz resultados: num oportunidade que passamos o carro no dinamômetro aferimos 115cv no motor. Nunca fiz reprogramação, primeiramente porque acho loucura gastar R$1.000,00 – R$1.500,00 pra ganhar 10cv, e mesmo assim ainda não havia nada disponível para a ECU do 1.5 na época.
Depois de usar mola esportiva com amortecedor original, decidi comprar um kit rosca, e para a minha decepção comprei um kit da Nunes Suspensões. Acho que esse kit nunca foi testado em um Fiesta antes de ser lançado para venda: molas traseiras absurdamente minúsculas que na rosca mais alta as rodas entravam uns 3cm na caixa, os amortecedores vieram com folga… uma decepção. Temporariamente coloquei as molas antigas na traseira e elas continuaram lá; nunca fiz a devolução do produto.
No mais apenas apenas manutenção com óleo de boa qualidade, fluido de freio Motul, velas NGK Iridium e outros detalhes para uma boa durabilidade do conjunto.
Experiência em pista
Manaus infelizmente é carente de um autódromo. Temos a Amazonas Dragway como uma (excelente) pista de arrancada, mas nada de curvas. Através da iniciativa de um grupo de amigos, em 2016 conseguimos organizar o primeiro Hot Lap da cidade no Kartódromo da Vila Olímpica: O Hot Lap da Villa.
Foi a primeira vez onde pudemos ter uma experiência mais próxima com um autódromo, e essa época está na lista das melhores lembranças que eu tenho com esse carro. Arranquei os bancos, baixei a suspensão e nos divertimos bastante. Na última vez que participei quando aspirado fiquei em terceiro colocado na categoria, fazendo um segundo a mais que o primeiro colocado – um Civic Si K20.
https://www.youtube.com/watch?v=RRaSXtVIoGg
O evento cresceu bastante e logo a grande parte da sociedade automotiva da cidade estava participando do evento. Mas infelizmente o lobby não existe somente entre empresas e grupos políticos: existe nos esportes também. A associação de kart (que administrava o kartódromo na época) vendo que o sucesso do evento foi gigante e dava mais visibilidade que as corridas de kart, decidiu através de uma canetada banir o Hot Lap utilizando de umas desculpas esfarrapadas. O evento permaneceu em hiato por quase três anos e este ano voltou melhor que nunca por conta da força de vontade dos car guys (and girls) da cidade de enfrentar as dificuldades; e agora temos total apoio do atual governo e uma estrutura excelente para o evento.
Projeto turbo
Utilizei o carro nessa configuração por aproximadamente dois anos então as coisas começaram, de certa forma, a melhorar pra mim. Eu já havia trocado de emprego e acabei ganhando uma promoção na minha empresa atual; já tinha condições de poder bancar algo mais avançado com meu próprio suor.
Cogitei o mais lógico a se fazer: manter o Fiesta do jeito que estava, original, e comprar um segundo carro mais antigo e barato para ser meu project car e poder fuça-lo sem dor de cabeça. Mas numa conversa sem compromisso com um antigo preparador, imaginamos como seria interessante um New Fiesta turbo e o que seria necessário para fazê-lo. Eu passei a ter um amor tão grande por essa carro ao longo de todo o convívio que essa idéia circulou por muito tempo na minha cabeça, até que um dia eu parei, pensei e apertei o botão do foda-se:
“E se eu turbinasse mesmo a p*rra desse Fiesta?”
Até então eu conhecia apenas um New Fiesta que fora turbo – já desmontado na época – e com motor 1.6; sem muitas informações da preparação. Nenhum 1.5 que eu tivesse conhecimento. Minhas intenções sempre foram de ter uma coisa diferente de tudo e com a minha personalidade, e essa idéia começou a parecer muito interessante.
É natural que haja uma resistência das pessoas quando você falar que quer pegar um carro desses e turbinar, porque é o óbvio: se não ficar bom, vou ter um gasto grande de dinheiro a toa. Se quebrar, vou ter zoado meu carro do dia a dia e vou voltar a andar a pé até, sabe Deus quando, consertar e pagar caro em peças pra um motor relativamente novo no mercado. Mas confesso que muitas pessoas realmente me desanimaram bastante. Escutei muito “não vai dar certo, vai quebrar, é loucura”, não na conotação de conselho de amigo, mas na maldade pra desanimar mesmo. Sabe como é.
Pelo incrível que pareça quem mais me deu apoio pra eu montar esse carro foi a minha mãe. Sim, uma senhora de 56 anos de idade que reclamou no dia que eu tirei o coletor 4-1 do carro porque ele ficou silencioso e ela gostava do barulho, que assiste todos os vídeos das puxadas nas pistas, que se amarra quando sente a turbina enchendo e que tirou onda com a minha cara no dia que eu apanhei de um Escort RS aspirado. Ela quem me incentivou a dar prioridade e juntar minhas economias pra montar esse carro.
Mais ou menos na mesma época criamos o NorthSpeed: um grupo de amigos disposto a divulgar nossos projetos e o melhor da cultura automotiva na cidade de Manaus através de imagens, vídeos, encontros entre outros. E depois de dois anos acho que estamos conseguindo cumprir o papel de exportar para o resto do país que aqui no norte também tem coisa de muita qualidade. Já fizemos dois NorthSpeed Meetings: encontros organizados em espaço fechado, juntando vários carros de diversas culturas , música boa, comida e muitas experiências novas. O crédito também vai a todos esses caras pelo suporte que me deram pra fazer esse carro do jeito que ele está hoje.
Algum tempo depois voltei com o preparador, lancei a ideia e começamos a traçar um projeto turbo que obrigatoriamente seguisse as seguintes regras: durável, seguro, de qualidade, mas que não necessariamente tivesse um custo exorbitantemente elevado. Eu não queria um carro forte pra cacetar todo mundo na rua. Queria um carro que eu pudesse ir trabalhar, ir para a faculdade, me divertir no final de semana pelas ruas mais afastadas sozinho ou com meus melhores amigos e ir nos eventos de pista da região.
Peguei todos os dados necessários pra montar um carro com a mesma faixa de potência do Fiesta ST. Selecionei a dedo cada peça utilizada nesse carro com muito carinho para que tudo fosse feito da melhor qualidade, dentro do meu orçamento. Passei mais de um ano pacientemente comprando as peças até que finalmente juntei tudo necessário para iniciar a montagem do carro.
Mas isso é papo para a segunda, das três postagens que comporão esse Project Car: na próxima falaremos sobre o processo de montagem da fase turbo!