E aí, leitores do FlatOut?! Tudo beleza? Me chamo Patrick Bleidorn Galera e hoje irei contar a história do Project… Boat! Isso mesmo, um barco acaba de invadir este espaço para contar sua história de construção de 25 anos, regada a muitas dores de cabeça, emoções, crises financeiras e problemas de saúde, mas que não impediram um casal de realizar seu sonho! Se preparem que a história é longa.
Os idealizadores
Essa história não vai começar como outros PC, onde eu conto como me envolvi com carros desde pequeno por influência de meu pai que sempre foi um gearhead, mas sim a história não só de meu pai Jadyr Galera, como também a de minha mãe Elfriede Margarete Bleidorn Galera, onde os dois tinham um sonho de ter seu próprio veleiro, sonho o qual na década de 80 e ainda hoje é muito caro.
Após casarem em 1983, antes de filhos, internet, telefone celular e outros mimos dos nossos tempos atuais, um casal recém-casado curtia aos fins de semana e feriados velejadas pela represa Billings, no clube Cruzeiro do Sul, na companhia de Carlos e Ana Maria Juffernbruch, primos de Fri, apelido de minha mãe. Eles velejavam no Brisa, um veleiro de porte pequeno muito antigo e clássico. Após ganharem experiência com varias velejadas na represa o mar lhes esperava, foram em direção a Ubatuba onde por diversas vezes velejaram no veleiro Whisper 2, um Gaivota 24 do cunhado de Carlos, Sergio. Muitas foram as aventuras a bordo do Brisa e do Whisper 2.
O pontapé inicial e a aquisição do projeto
Meus pais tentaram por anos terem o primeiro filho, passaram em diversos médicos que lhes receitavam diversos tratamentos. Um médico em especifico disse que não se podia pensar só em filhos, que isso não ajudava em nada no tratamento, visto que minha mãe tinha problema em seus ovários. Um tratamento alternativo foi proposto por esse médico, aliado por outro tratamento convencional.
Um hobbie tinha que ser encontrado por meus pais, para encher a cabeça de minha mãe e assim, tirar os bebês de sua cabeça. Minha mãe sempre gostou de cavalos, mas morando em um apartamento de 67 m² no alto de Santana, e claro que um cavalo não cabeira lá. Então porque não um barco? Ok que um barco não cabe num apartamento também, mas o importante é o sonho em si mesmo hahaha
Meus pais visitaram diversas marinas e clubes atrás de barcos usados que coubesse em seu orçamento de casal recém-casado, já que um veleiro zero estava muito fora de cogitação. O preço de veleiros usados na época era um absurdo, visto que era um hobbie que, ainda hoje, é caro. A solução seria comprar o projeto de um, onde poderiam ir construindo quando pudessem. Em abril de 1988 meus pais decidiram que iriam construir um barco do zero, e assim minha mãe entrou em contato com “Cabinho”, Sr Roberto de Mesquita Barros, que nos vendeu o projeto de nº 13 do Samoa 29, e convenceu de imediato meus pais sobre a compra do projeto, frisando bem todas as dificuldades.
Minha mãe foi correndo contar a novidade a seu pai, meu avô, um alemão sério e que não falava quase português. A minha palavra dita por ele foi “Um momento (Augenblick), eu pensei que vocês iriam construir uma família”. Após todos da família ficarem sabendo dessa noticia inusitada, minha mãe entrou em contato com sua amiga Heide Von Galen no Rio de Janeiro, uma antiga colega de trabalho na multinacional alemã que minha mãe trabalhava. Heide de imediato de responsabilizou por despachar o projeto para São Paulo, e dia 26 de abril de 1988 o projeto chegou as mãos de minha mãe que de imediato ligou para meu pai avisando que o tão esperado projeto tinha chego. Mas agora com a “pequena” pasta em mãos, como um vendedor com formação em química e uma artista plástica que trabalhava com comércio exterior iam entender e executar esse projeto?
Aprendendo sobre o Samoa 29
O projeto adquirido foi de um Samoa 29, veleiro monocasco (como o nome já diz, de um casco único) de 8,80m de comprimento e proporções de veleiro transoceânico. Projetado aqui mesmo no Brasil, muitos o chama de “tanque de guerra”, por ser ultra dimensionado, aguentando pancada em cima de pancada, algo que se espera quando se está no meio do Pacifico com um ciclone tropical passando por você. A resistência dele foi um dos principais motivos que levaram meu pai a escolher esse veleiro, visto que antes de seu lançamento oficial, o percursor do que seria o Samoa produzido acabou indo parar nas pedras na área de arrebentação numa região das Ilhas Malvinas.
O barco ficou por horas chocando-se contra as pedras, e após o resgate foi constatado que o vergalhão do leme (o cano que comunica a cana de leme, ou roda de leme, ao leme debaixo d’agua) de 2 polegadas de diâmetro de inox maciço foi entortado. Quando foram analisar o casco, apenas pedaços de tinta foram retirados com os arranhões das pedras, nem uma lasca de madeira ou qualquer coisa parecida foi encontrada, tendo a estrutura do casco intacta depois de severas horas de choques contra pedras na arrebentação. Isso levou meu pai a escolher o projeto do Samoa 29 como o candidato certo para essa empreitada
Foram cinco meses que meu pai ficou em cima das diversas plantas do projeto, aprendendo tudo que podia para então, começar a montagem. Diversos telefonemas foram trocados com o projetista, a fim de tirar todas as duvidas possíveis. Foi tirada também a licença de construção, na extinta capitania dos portos de Iguape, e assim, poderia se iniciar a construção.
O local de construção e colocando a mão na….madeira!
O local escolhido pra iniciar a construção foi a Vila Brasilândia, local onde ficava a casa de minha avó e onde meu pai morou até se casar. O local ficava perto do apartamento de meus pais, localizado no alto de Santana, e trazia a facilidade da casa de minha avó que sempre esteve de braços abertos pra essa loucura.
Diversas ferramentas de marcenaria foram compradas, visto que trabalhar com ferramentas simples não ajudaria nada o projeto. 26 compensados de 15mm sarrafeados foram comprados para a fabricação das balizas, mais duas folhas de compensado de mogno de 10mm, duas de 15mm para as anteparas e um compensado de 6mm também foi adquirido. Neste de 6mm foi colado as quatro folhas do projeto em tamanho natural para servir de gabarito para a fabricação das balizas. Isso tudo seria o inicio para o esqueleto do barco tomar forma.
Mas antes de começar a cortar tudo foi feito o picadeiro, um tipo de estrutura inicial, onde nele foram fixadas as anteparas cortadas e após a fixação das mesmas entre si, o picadeiro seria retirado. Uma espécie de gabarito.
Foi iniciado o corte das balizas e anteparas, mas o que diabo são essas coisas? Balizas e anteparas são a mesmíssima coisa, ambas são o esqueleto do barco, como se fossem costelas segurando uma estrutura por fora. A diferença é que balizas não são fixas, servem apenas para o inicio de construção e fixação do casco, apenas as anteparas serão definitivas. Todas as balizas e anteparar foram fixadas no picadeiro.
O projeto poderia ser construído em 3 formas diferentes, e a escolhida por meus pais foi a de strip-planking, onde diversas ripas com côncavo e convexo foram coladas entre si, dando forma ao casco. Primeiramente foi feito a roda de proa, uma espécie de coluna vertebral do casco. Mas antes da fixação da roda de proa, foi visto que a mesma se encontrava “encolhida”. Algum calculo tinha sido feito errado, mas nada que uma “esticada” não resolvesse os problemas. A roda de proa foi toda curvada em um gabarito, utilizando muitos sargentos comprados e emprestados.
“Anteparas colocadas, curvatura e fixação da roda de proa e a mesma sendo lixada para receber os strips”
Dia 16 de fevereiro de 1989 foram comprados 3.5 metros cúbicos de mogno (com certificado do Ibama) para a convecção dos strips e mobília. Os strips foram cortados por um marceneiro, já devidamente com o tamanho exato e o côncavo e convexo feito. Nesse meio tempo minha mãe resolveu tirar a habilitação de Mestre Amador, onde ela era a única mulher em uma sala com 39 homens. Apesar do sufoco, ela foi aprovada ao final da prova.
Foi iniciada a fixação do trincaniz, a ripa que daria reforço para o inicio da fixação das seguintes ripas. O trincaniz foi laminado com resina epóxi importada para ganhar resistência e flexibilidade (essa resina é muito utilizada na aviação comercial), e assim foi iniciada a colocação dos strips, ou ripas na linguagem popular. Foram entregues pelo marceneiro os strips prontos para serem colados e pregados nas anteparas (+/- 1.5 km). 32 kg de “cola” foram comprados para a empreitada dos strips, além dos pregos de cobre quadrados (pregos quadrados não sofrem o problema de serem jogados para fora pela torção, algo que pregos redondos podem fazer em torções grandes como a do casco). A continuação da roda de proa foi feita, chamada de quilha, ligando a porção central das anteparas. Com a coluna vertebral feita começou a ser colocado os primeiros strips, e assim foi crescendo gradativamente, até o casco estar fechado.
“Trincaniz sendo laminado e colocando todos os strips. Nessa altura minha mãe já estava grávida de seu primeiro filho, uma menina! O casco foi fechado e comemorado com churrasco e caipirinha”.
Pausa para a criança e voltando aos trabalhos
Minha irmã mais velha nasceu em 11 de abril de 1990, pausando a construção do barco por um tempo, visto que primeiro filho não vem com manual de instrução. Meu pai voltou ao barracão sem minha mãe alguns meses depois, retomando a construção.
Com o casco fechado, tudo foi definitivamente laminado com resina epóxi por inteiro e mantas de fibra de vidro foram compradas. O método de construção deste veleiro se faz por ripas de madeira laminadas com fibra de vidro por cima, a fim de aumentar a resistência de todo o conjunto. Um trabalho infernal lixar e aplicar a fibra de vidro. Ao final do trabalho tudo foi pintado com PU e aplicado massa pra corrigir as imperfeições.
“Resina aplicada, massa aplicada por quase todo o casco para corrigir imperfeições, base aplicada e então a tinta em PU final do casco nesta etapa. Entre uma camada de material e outro, tudo era devidamente lixado.”
Neste meio tempo, três anos já haviam se passado desde o inicio da construção. Muitas pessoas questionavam meus pais sobre “porque fazer um barco” e muitas diziam que eles não iriam terminar, que era só uma fase e eles estavam empolgados mas não teriam tanta empolgação pra continuar. Meus pais sempre respondiam com um sorriso no rosto, que aquele era o sonho deles, e não se desiste tão fácil de seus sonhos!
A grande virada
Em 30 de maio de 1992, no meio da algazarra política e financeira da década de 90, meus pais botaram em prática a “virada” do barco. Como vocês viram até aqui, o casco é construído de cabeça para baixo, para facilitar a construção. Após o casco estar fechado, o mesmo deve ser virado para se iniciar a mobília interna e fechar o convés. Foram utilizados diversos pneus para apoiar o casco e talhas fixadas na estrutura reforçada do barracão para virar o caso que estava amarrado por diversos cabos. Foi confeccionado o berço onde o casco iria repousar depois de virado.
“O berço foi confeccionado e a virada começou. Muita tensão estava envolvida, mas tudo ocorreu como o planejado”.
O convés e o inicio da mobília
Com o casco devidamente virado e pronto pra se iniciar os trabalhos, meus pais partiram para cima do veleiro. As balizas foram retiradas, restando somente às anteparas. O casco foi devidamente lixado por dentro para receber a mobília. O convés foi feito primeiro, e junto com ele a popa, traseira do barco (só relacionar popa com popô e com bunda que fica fácil lembrar), foi cortada com o intuito de dar o ângulo correto de projeto, algo que com strips eram impossível de se fazer, e cortando era a única opção.
Com o convés fechado primeiro e depois feito a mobília (algo que meu pai se arrepende até hoje, pois era bem mais fácil ter feito à mobília e então fechado o convés) essa etapa foi parcialmente concluída. O banheiro sofreu uma alteração de projeto, o que fez com que ele ocupasse de costado a costado do barco. O pé direito também foi alterado, visto que meu pai bateria a cabeça no teto, tendo ele 1,81m de altura, e o pé direito original, menos que isso. Todos os novos cálculos e medidas foram passados pelo projetista por telefone, visto que naquela época não se existia e-mail aqui no Brasil para facilitar as coisas.
Meu pai acabou adquirindo nesse mesmo tempo um motor Molde de 11hp, especificado no projeto como o necessário para esse barco. O alto preço do motor, fabricado em Santa Catarina fez meu pai começar a pesquisar o possível preço das próximas peças a serem compradas, a fim de equipar o interno do barco. Neste meio tempo foi publicada a primeira matéria do veleiro, na revista de circulação interna da multinacional que minha mãe trabalhava. A revista rodou o mundo em todas as filias da empresa, e assim ganhamos nossos primeiros admiradores internacionais.
“O casco sendo fechado e a mobília se iniciando. Um vaso de descarga manual foi adquirido e devidamente instalado. Com o interior parcialmente finalizado, foi aplicado PU na antepara que dividi o salão ao banheiro, bem como todo o banheiro foi pintado. O motor foi colocado para dentro e posicionado em seu lugar definitivo.”
A primeira parada
Com o inicio da construção da mobília, minha mãe descobriu que estava grávida de mais um filho, desta vez da pessoa que lhes escreve aqui. Meu pai viu sua família aumentar, e viu que as contas aumentariam de maneira rápida com dois filhos para criar. Pesquisando pelas próximas peças a serem adquiridas para o veleiro, meu pai viu que aquilo que tinham falado para ele no começo, que a construção seria cara, não era nada do que eles tinham falado….era pior!
A estimativa era de ser gasto no total US$ 20.000, sendo que no primeiro cálculo de estimativa de gastos usando catálogos e consultas em diversas lojas especializadas essa conta subiu para US$ 100.000, e essa conta no final chegou bem perto disso. Sem ter como bancar uma família e a construção naquele momento, meu pai jogou uma lona por cima do que era o futuro veleiro Augenblick e decidiu dar a primeira parada, parada esta que durou oito anos.
No próximo post continuarei contando está história, em uma nova fase e em uma nova casa, aguarde!
Por Patrick Galera, Project Cars #342