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Design Automotivo Car Culture

Quando a assimetria é bela: carros que desafiaram o equilíbrio

Desde que Platão escreveu sobre a perfeição das formas geométricas no Timeu, há quase 2.400 anos, a simetria é considerada um dos fundamentos da beleza. Para os gregos antigos, a harmonia visual resultava do equilíbrio — duas metades idênticas espelhadas em torno de um eixo central. Aristóteles reforçou essa ideia ao definir beleza como “aquilo que tem ordem, tamanho apropriado e proporção”. Durante séculos, arquitetos, escultores e artistas seguiram esse princípio como um dos dogmas do design: o belo é simétrico.

Essa obsessão pela simetria chegou inevitavelmente ao design automotivo. Carros são, quase universalmente, espelhamentos perfeitos. O lado esquerdo reflete o direito. As rodas estão à mesma distância do para-choque dianteiro. As portas se repetem. Até os detalhes mais sutis — molduras, saídas de ar, vincos na carroceria — obedecem a essa lei não-escrita do equilíbrio visual.

Até que você abre as portas. Carros, evidentemente, não são simétricos por dentro. O motorista fica de um lado e os controles o acompanham. O painel não precisa do para-sol sobre o quadro de instrumentos no lado do passageiro, afinal, nem há um quadro de instrumentos ali. A função de um carro — transportar pessoas e coisas — é inerentemente assimétrica. E se a função é assimétrica, por que a forma deveria fingir simetria?

Aqui essa conversa parece cair em contradição: se a beleza vem da simetria, por que o interior assimétrico dos carros não nos incomoda? Como eles podem ser percebidos como algo belo?

Bom… isso também se explica por uma viagem. no tempo: a utilidade é um elemento fundamental do design. No século I a.C, o romano Vitrúvio a incluiu como um dos três pilares da boa arquitetura, ao lado da Firmeza e da Beleza. Segundo ele, a beleza era inatingível se o propósito do projeto não fosse plenamente satisfeito. Embora a tradição buscasse a beleza em proporções e simetria, a ênfase na função permitiu que designers modernos, ao criarem carros intencionalmente assimétricos, descobrissem uma nova verdade: a beleza da função pura, mesmo que esta ignore os preceitos clássicos da forma. É por isso que é difícil resistir ao painel de um Toyota 2000GT, por exemplo.

Também é por isso que alguns fabricantes não se importaram em fazer abraçar a assimetria sem medo nem culpa. Carros com entre-eixos diferentes em cada lado. Carros com portas de tamanhos diferentes. Carros onde um lado não reflete o outro, simplesmente porque não há razão funcional para que reflita.

Trata-se de reconhecer que uma solução inteligente — uma porta extra onde ela facilita o acesso, um entre-eixos diferente que maximiza espaço sem comprometer dirigibilidade — carrega sua própria estética. A beleza não está na forma que engana os olhos fingindo equilíbrio. Está na forma que admite honestamente: “este lado faz uma coisa, aquele lado faz outra, e ambos fazem exatamente o que precisam fazer”.


Jaguar D-Type

O Jaguar D-Type, que competiu entre 1954 e 1957, é talvez o exemplo mais icônico de assimetria funcional em carros de corrida. Seu desenvolvimento foi fortemente inspirado pela aviação — Malcolm Sayer, o engenheiro aerodinâmico responsável pelo design, havia trabalhado na Bristol Aircraft durante a Segunda Guerra Mundial. A Jaguar usou túnel de vento para otimizar a carroceria aerodinâmica do modelo.

Como o desempenho era a prioridade absoluta, a dianteira foi reduzida ao mínimo para diminuir o arrasto. Mas isso criou um problema: o motor XK de 3,4 litros era alto demais para caber sob um capô simétrico e baixo. A solução de Sayer foi fazer o capô se moldar assimetricamente ao redor do motor, criando uma protuberância deslocada da linha de centro. Ela é muito sutil, mas se você olhar com atenção, verá que ela é maior para o lado do passageiro.

Atrás do motorista, Sayer adicionou uma aleta vertical — a famosa headrest fairing ou simplesmente “barbatana”, em português — para criar estabilidade em alta velocidade. Como não havia passageiro, não havia razão para colocar uma barbatana atrás do outro banco. Além disso, era peso desnecessário, então não havia barbatana alguma. O lado do motorista e o lado do passageiro faziam coisas diferentes, e a forma refletia isso.

E o negócio funcionou brilhantemente. Depois de uma estreia problemática em 1954, o D-Type dominou Le Mans por três anos consecutivos (1955, 1956, 1957). A assimetria não era um defeito tolerado em nome da velocidade. Era parte integral da solução que fez o D-Type o carro mais rápido de sua era.


Ferrari Testarossa

Em 1984, a Ferrari apresentou o Testarossa com uma peculiaridade que dividiria opiniões: um único espelho retrovisor, montado alto na coluna A do lado do motorista. A história oficial é que isso foi uma resposta literal às regulamentações europeias sobre visibilidade traseira.

Os designers da Ferrari posicionaram o espelho no alto do pilar A para dar ao motorista uma visão clara da traseira do carro — se estivesse na altura convencional, seria bloqueado pela própria carroceria larga e baixa do Testarossa. E se o espelho do motorista precisava ficar alto, um espelho do passageiro na mesma posição seria inútil, pois o motorista não conseguiria vê-lo de qualquer maneira. Então a Ferrari simplesmente o omitiu.

Era uma solução que fazia sentido absoluto do ponto de vista funcional, mas parecia estranha. Alguns clientes reclamaram e pediram um segundo espelho de qualquer forma. Logo depois, ao descobrir que espelhos em posição convencional (mais baixos) também passavam nas regulamentações, a Ferrari os rebaixou e adicionou o espelho do passageiro. Os Testarossa monospecchio — com espelho único — se tornaram raros e, com o tempo, colecionáveis.

Mas havia outra assimetria no Testarossa que poucos notavam: o spoiler dianteiro. Do lado direito, ele tinha uma entrada de ar extra. A razão era puramente funcional: o condensador do ar-condicionado ficava daquele lado e precisava ser resfriado pelo fluxo de ar. Não havia condensador do lado esquerdo, então não havia entrada. Simples assim.


Mercedes 500E: assimetria invisível

Talvez um dos exemplos mais sutis de assimetria intencional seja o Mercedes-Benz 500E, produzido entre 1991 e 1994. À primeira vista, parece perfeitamente simétrico. Mas olhe mais de perto: o espelho retrovisor do lado do motorista é ligeiramente mais longo que o do lado do passageiro.

Não era erro de fabricação. Era otimização aerodinâmica. O espelho do lado do motorista, por estar mais exposto ao fluxo de ar durante ultrapassagens e manobras, gerava mais arrasto. Alongá-lo permitia um formato mais afilado, reduzindo a turbulência. O espelho do passageiro, menos crítico aerodinamicamente, podia ser menor.

Como o 500E era produzido tanto para mercados com direção à esquerda quanto à direita, os espelhos eram trocados de lado dependendo da configuração. O espelho longo sempre ficava do lado do motorista, qualquer que fosse esse lado.

Ao longo dos anos, muitos proprietários — incomodados pela quebra visual da simetria — substituíram o espelho mais curto por outro longo, tornando o carro simétrico. Ironicamente, isso piorava a aerodinâmica, mas satisfazia o olho treinado para esperar equilíbrio. É um exemplo perfeito de como a convenção estética pode sobrepor-se à função, mesmo quando a função é objetivamente superior.


TVR Sagaris

A TVR sempre foi conhecida por designs extravagantes, mas o Sagaris de 2005 tinha uma peculiaridade específica: uma bolha no teto, apenas do lado do motorista. Não era mais uma tentativa da TVR de chocar clientes com design excêntrico. Era pura funcionalidade.

A bolha existia para dar espaço extra de altura para motoristas usando capacetes de corrida. O Sagaris vinha de fábrica com gaiola homologada pela FIA, deixando claro que a TVR esperava que seus clientes levassem o carro para track days. O problema era que a gaiola reduzia o espaço interno, e pilotos altos com capacetes não cabiam confortavelmente. A bolha resolvia isso.

Para versões de direção à esquerda (mercados continentais europeus e americanos), a TVR simplesmente omitia a bolha. Mas curiosamente, ao menos um proprietário comprou um Sagaris de direção à direita, converteu-o para esquerda e moveu a bolha para o lado correto.

O Sagaris durou apenas um ano antes da TVR entrar em dificuldades financeiras e encerrar toda a produção. Mas aquela bolha assimétrica representava algo importante: design honesto. Não tentava disfarçar a função. Admitia que aquele carro existia para ser pilotado com capacete, e criava espaço onde era necessário.


Nissan Cube

Quando o Nissan Cube foi lançado em 1998, era apenas mais um kei car japonês — pequeno, quadrado, prático. Mas quando a Nissan o reformulou em 2002, tudo mudou. O Cube ganhou uma janela traseira que avançava apenas por um lado, impossível de ignorar.

A Nissan descreveu o novo visual como “um design de qualidade superior distinguido por sua clara originalidade, funcionalidade que proporciona alegria de uso, e apelo que inspira lealdade”. Era linguagem de marketing, claro. Mas aquela janela assimétrica, como tudo nesta lista, não era apenas estética. O vidro traseiro avançava para o lado esquerdo (ou direito, dependendo do mercado) para minimizar os pontos cegos do lado oposto ao motorista.

Como a maioria dos designs assimétricos, as pessoas ou amavam ou odiavam. Considerando os números de vendas e os mercados em que ele foi oferecido, o público amou: o Cube vendeu quase 1,3 milhão de unidades entre 1998 e 2019, predominantemente no Japão, seguido por EUA, Canadá e Europa. Em 2009, a Nissan reformulou o Cube novamente com um design ainda mais arredondado, mas manteve a assimetria traseira — prova de que aquilo se tornara parte da identidade do carro.


Fiat Ritmo/Strada

O Fiat Ritmo estreou em 1978 como uma pequena revolução sobre rodas. Enquanto os hatchbacks compactos da época seguiam a cartilha da sobriedade, o Ritmo parecia ter saído de uma linha de montagem de eletrodomésticos modernos — uma mistura de racionalidade industrial e ousadia estética que soava quase provocação. As linhas eram arredondadas, suaves, e o uso extensivo de plástico nos para-choques dava ao carro uma aparência tão diferente que parecia vir do futuro. Esses para-choques envolviam toda a dianteira e a traseira, integrando até as lanternas, numa solução barata, leve e resistente — uma síntese perfeita do pragmatismo italiano aplicado ao design.

Mas o detalhe que eternizou o Ritmo — e dividiu opiniões desde o primeiro dia — foi a tomada de ar no capô, deslocada para o lado. À primeira vista, parecia um erro de montagem; na verdade, era o contrário disso. Nas versões de uso civil, como a 75 CL, ela alimentava o sistema de ventilação da cabine. Já nas versões esportivas, especialmente a 105 TC, a abertura tinha função nobre: conduzir ar frio diretamente ao motor Twin Cam. Era pura engenharia funcional, sem concessão à simetria estética. Um gesto de honestidade brutal: se o ar precisava entrar por ali, que entrasse.

Essa filosofia durou pouco. Em 1982, com a chegada da Série 2, a Fiat cedeu à pressão do mercado e das convenções. O Ritmo ganhou grade frontal, perdeu os para-choques envolventes e, claro, a polêmica tomada de ar assimétrica. O carro ficou mais “normal”, mais fácil de vender — e também mais sem graça. Assim terminava o capítulo mais ousado da história recente da Fiat, aquele em que um simples hatch teve coragem de colocar a função à frente da forma e ainda fazer disso um ícone.


Renault

Entre 1961 e 1994, a Renault produziu uma série de carros que compartilhavam um segredo escondido sob a carroceria: o entre-eixos era diferente em cada lado. O Renault 4, 5, 6 e 16 tinham a roda traseira esquerda posicionada 48 milímetros à frente da roda traseira direita. Para quem olhava de fora, era quase imperceptível. Mas para quem conhecia, era genial.

A razão era puramente funcional. Pierre Dreyfus, diretor-geral da Renault na época, queria que o R4 fosse um carro genuinamente utilitário, capaz de transportar cargas grandes sem sacrificar o espaço interno. O desafio estava na suspensão traseira: o carro usava barras de torção transversais, e para obter os 30 centímetros de curso de suspensão necessários para estradas ruins, as barras precisavam ser longas. Muito longas.

A solução convencional seria empilhar as barras verticalmente, uma acima da outra. Mas isso invadiria o porta-malas, reduzindo exatamente o espaço de carga que Dreyfus tanto queria. Os engenheiros da Renault, liderados por Jean-Claude Bobin, tiveram uma ideia radical: e se, em vez de empilhar as barras, elas fossem posicionadas uma à frente da outra, lado a lado?

As barras estão entre as longarinas, frente a frente

Funcionou perfeitamente. O porta-malas permaneceu completamente plano, sem intrusões. A suspensão tinha curso generoso. E a única consequência era que o entre-eixos do lado esquerdo media 2.405 mm enquanto o direito media 2.453 mm. Os engenheiros testaram o carro exaustivamente e, segundo relatos da época, “falharam em identificar qualquer problema relacionado ao entre-eixos assimétrico” mesmo após milhares de quilômetros.

Era uma solução tipicamente francesa: pragmática, elegante na sua simplicidade, e completamente indiferente às convenções. A Renault nem tentou esconder a assimetria — apenas aceitou que função valia mais que simetria decorativa. O R4 vendeu mais de 8 milhões de unidades ao longo de 33 anos, tornando-se um dos carros mais bem-sucedidos da história da Renault. O R5, R6 e R16 seguiram o mesmo princípio.


Hyundai Veloster

Em janeiro de 2011, no Salão de Detroit, a Hyundai apresentou algo que confundiu a todos: um cupê de três portas. Não três portas no sentido convencional — com duas dianteiras e uma traseira tipo hatch. Três portas laterais. Uma do lado do motorista, duas do lado do passageiro.

O Hyundai Veloster nascia da frustração com um dilema clássico: cupês de duas portas são bonitos e esportivos, mas pouco práticos. Hatches de cinco portas são práticos, mas pouco esportivos. Cupês com pequenas portas traseiras de abertura invertida são o pior dos dois mundos — complicados de usar e estranhos de olhar.

John Krafcik, então presidente da Hyundai Motor America, fez a pergunta óbvia durante a apresentação: “Por que carros deveriam ser simétricos por fora, quando são assimétricos por dentro?”

A resposta da Hyundai foi o Veloster. Do lado do motorista, uma porta longa de cupê, sem pilar B, oferecendo entrada e saída confortáveis e visibilidade lateral excelente. Do lado do passageiro, duas portas convencionais — uma dianteira e uma traseira — permitindo acesso fácil ao banco traseiro.

A lógica era simples mas eficaz: motoristas raramente precisam acessar o banco traseiro pelo seu lado. Quem entra atrás normalmente é carregado pelo motorista, então faz sentido que a porta adicional esteja do lado do passageiro. Além disso, passageiros traseiros saem pela calçada, não pela rua — uma questão de segurança, já que a porta traseira é sempre oposta à do motorista.


AMC Pacer

O AMC Pacer, produzido entre 1975 e 1980, é lembrado por muitas coisas estranhas — formato de aquário, consumo terrível, visual polarizador, karaokê móvel. Mas uma de suas peculiaridades mais sutis era que a porta do passageiro era 10 centímetros mais longa que a porta do motorista. E proposital.

O Pacer havia sido projetado como um carro largo para padrões americanos da época — 1,96 metros de largura, praticamente o mesmo que um Cadillac Eldorado. Mas era curto, com apenas 4,34 metros de comprimento. O resultado era um carro que parecia largo e baixo, com muito espaço interno lateral mas pouco espaço longitudinal.

Para facilitar o acesso ao banco traseiro, os designers da AMC decidiram fazer a porta do lado do passageiro mais longa. Como não havia porta traseira do lado do motorista (o Pacer tinha apenas duas portas), não havia necessidade de manter simetria. A porta mais longa facilitava a entrada de passageiros traseiros sem forçar o motorista a ter uma porta impraticavelmente grande.

Era uma solução elegante para um problema real. Mas como tudo no Pacer, foi ofuscada pelas outras estranhezas do carro. Poucos percebiam a assimetria, e quem percebia achava que era um defeito de fabricação. O Pacer vendeu mal e foi descontinuado após apenas cinco anos. Mas sua porta assimétrica representava um pensamento de design progressivo que estava décadas à frente de seu tempo.


Volkswagen Kombi

A Volkswagen Kombi (Type 2), produzida de 1950 a 2013 na sua forma original, tinha uma assimetria que passava despercebida pela maioria: a porta lateral de correr ficava apenas de um lado — direito ou esquerdo, dependendo do mercado.

Não era questão de economia. Era pura funcionalidade. Vans comerciais normalmente param na beira da calçada para carga e descarga. Ter a porta lateral apenas no lado da calçada (lado direito em países com direção à esquerda, ou lado esquerdo em países com direção à direita) fazia todo o sentido logístico. Por que ter uma porta do lado da rua, onde tráfego passando tornaria carga e descarga perigosos?

Sim, a Kombi tinha portas ao contrário na Inglaterra

A Kombi levou esse conceito ao extremo. Versões de carga nem tinham janelas do lado da rua — apenas chapas de metal. Toda a ação acontecia do lado da calçada: carregar, descarregar, entrar, sair. Essa assimetria funcional se tornou tão natural que ninguém questionava. Claro que vans tinham porta de um lado só. Por que teriam dos dois?

Eventualmente, minivans americanas dos anos 1980 e 1990 seguiram o mesmo princípio. O Chrysler Voyager, o Ford Aerostar, o Chevrolet Astro — todos tinham porta de correr apenas do lado do passageiro. Só em meados dos anos 1990 fabricantes começaram a oferecer portas de correr bilaterais, e mesmo assim como opcional. A Kombi provou que assimetria, quando bem justificada, se torna invisível. Não parece estranha. Parece certa.


Saturn SC

A Saturn, marca extinta da General Motors que existiu entre 1985 e 2010, tinha uma missão clara: fazer carros pequenos, eficientes e diferentes dos outros carros americanos, mirando a invasão japonesa iniciada nos anos 1970 e intensificada nos anos 1980. E em 1991, lançou o SC — um cupê de duas portas baseado no sedã SL.

Durante oito anos, o SC foi um cupê convencional. Mas em 1999, a segunda geração trouxe algo chamado RAD — Rear Accessible Door. Era essencialmente o conceito do Veloster, mas 12 anos antes e ao contrário: o lado do motorista tinha uma porta traseira disfarçada que permitia acesso ao banco traseiro.

A porta traseira se camuflava bem. A maçaneta ficava escondida na coluna C, e as linhas da carroceria faziam a porta parecer parte do painel lateral. De longe, o carro parecia um cupê convencional de duas portas.

O mercado, contudo, foi indiferente. O SC não vendeu bem, e a Saturn cancelou o modelo em 2002. Não porque o conceito era ruim, mas porque a Saturn estava morrendo lentamente e não tinha recursos para continuar desenvolvendo modelos de nicho.


Mitsubishi Minica Lettucce

No Japão, onde espaço urbano é limitado e carros pequenos dominam, fabricantes experimentaram com assimetria por razões práticas. O Mitsubishi Minica Lettuce (sim Lettuce, “alface” em inglês), lançado em 1989, tinha uma porta do lado do motorista e duas do lado do passageiro — exatamente como o Veloster faria 22 anos depois.

A razão era clara: facilitar a entrada e saída de passageiros (especialmente crianças e idosos) pela calçada era mais importante que manter simetria estética. O Honda S-MX, um pequeno monovolume lançado em 1996, seguiu a mesma lógica.

Esses carros kei — categoria de veículos ultra-compactos com regulamentação específica no Japão — eram laboratórios de design funcional. Como precisavam maximizar espaço interno em dimensões externas minúsculas, designers japoneses não tinham tempo para preciosismos estéticos. Função vinha primeiro.

O Mitsubishi Lettuce é particularmente interessante porque seu nome vem de “let us”, um trocadilho bilíngue sugerindo “deixe-nos” (entrar). Era um carro projetado ao redor de um caso de uso específico: mães levando filhos à escola e fazendo compras. A porta extra do lado do passageiro facilitava colocar crianças no banco traseiro sem ter que dar a volta no carro.


Funcionalidade como estética

Olhando para esses carros, um padrão emerge: assimetria funciona quando há razão para ela existir. O Renault 4 tinha entre-eixos diferentes porque isso permitia suspensão de longo curso sem invadir o porta-malas. O Veloster tinha três portas porque motoristas raramente precisam acessar o banco traseiro pelo seu lado. O D-Type tinha aleta só de um lado porque só o motorista precisava de estabilidade adicional. A Kombi tinha porta de um lado só porque carga e descarga acontecem na calçada, não na rua.

Em cada caso, a assimetria não é um defeito estético tolerado em nome da função. É uma qualidade estética derivada da função. Quando uma solução técnica é elegante — quando resolve um problema da forma mais eficiente possível — ela carrega uma beleza própria que pode ser apreciada independentemente da harmonia visual clássica.

É o que o designer alemão Dieter Rams chamaria de “boa forma”: design que não decora, mas resolve. A porta extra do Veloster não está ali apesar de quebrar a simetria. Ela está ali porque é a solução correta, e a correção da solução pode ser esteticamente satisfatória por si só. O entre-eixos assimétrico do Renault 4 não precisa ser perdoado por sua irregularidade. Ele pode ser admirado pela engenhosidade da solução que representa.

Essa é a essência da funcionalidade estética: a capacidade de apreciar a beleza de uma solução bem pensada, mesmo quando ela viola convenções formais. É encontrar prazer visual não na simetria ou na proporção áurea, mas na percepção de que cada elemento está exatamente onde deveria estar, fazendo exatamente o que deveria fazer.

O Bauhaus sistematizou essa ideia nos anos 1920. Walter Gropius insistia que objetos industriais bem projetados possuíam beleza intrínseca — não uma beleza aplicada como verniz decorativo, mas uma beleza que emergia da adequação perfeita entre forma e propósito. A funcionalidade não era inimiga da estética. Era a própria fonte da estética.

Platão associou beleza com simetria e proporção harmônica porque seu sistema estético privilegiava a contemplação. Mas carros não existem para serem contemplados — existem para serem usados. E quando aceitamos que objetos utilitários podem ser julgados por critérios estéticos diferentes dos objetos contemplativos, abre-se espaço para apreciar a beleza da função bem resolvida.

Poucos desses carros tiveram sucesso comercial estrondoso. O Veloster foi descontinuado. O TVR Sagaris durou apenas um ano. O AMC Pacer foi um fracasso. O Renault 4, apesar de ter vendido milhões, nunca foi celebrado por sua assimetria — era apenas um carro popular que resolvia problemas práticos de forma eficiente.

Mas eles representam algo importante: a possibilidade de encontrar beleza em lugares não convencionais. Não na harmonia superficial, mas na inteligência da solução. Não no equilíbrio visual, mas na adequação funcional. Carros não precisam ser simétricos porque simetria é tradicionalmente associada à beleza. Eles podem ser assimétricos e ainda assim belos — não apesar da assimetria, mas através da funcionalidade que a assimetria permite.

A pergunta não é “por que alguns carros são assimétricos?”. A pergunta é “por que todos os outros insistem em ser simétricos quando não precisam?”


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