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Car Culture

Quando Ford vs. Ferrari quase teve um segundo round… nas ruas!?

Tem uma questão que sempre passa batida nas discussões calorosas e emocionadas sobre o tema Ford vs. Ferrari: o fato de a Ford nunca ter feito um supercarro de rua para dar uma lição no velho Enzo. Ok, eles foram até a França, ganharam as 24 Horas de Le Mans quatro vezes em cima da Ferrari, os italianos nunca mais venceram a prova e a Ford ainda deu um chega-pra-lá na Ferrari quando voltou a Le Mans com os GT modernos para comemorar os 50 anos daquele feito.

Mas, no fim das contas, quando se fala em supercarros, em lendas do automobilismo, nos carros dos sonhos dos garotos, não é a Ford e seu oval azul que aparecem no imaginário popular, mas os carros vermelhos da Ferrari (ou os Porsche 911, ou ainda as supercunhas da Lamborghini). A Ford até fez seus supercarros — o GT40 de rua, o GT de 2005 e o GT de 2016, mas nenhum deles foi lá um grande ícone que marcou época. Eles foram carros muito caros, mas por serem limitados em volume de produção, foram esquecidos tão rapidamente quanto podem chegar aos 200 km/h.

Não é uma linhagem constante, como o Mustang — este sim um Ford que mexe com a imaginação dos garotos —, ou como as próprias Ferrari. A Ford, de vez em quando, parece estar entediada e solta um destes, paga a conta e depois volta a fazer o de sempre. É como um assalariado em uma ocasião especial, na qual ele se permite gastar um pouco mais, mas logo volta à austeridade financeira pessoal. Não é como a GM, que faz um esportivo altamente desejável, capaz de rivalizar com as Ferrari há praticamente 70 anos, sem parar um único ano.

Já parou para pensar nisso? O Corvette foi lançado em 1953. Ano que vem é 2023, ele irá completar 70 anos. A Ferrari é de 1947. Ela tinha só seis anos quando a GM colocou no mercado um carro que, em breve, seria capaz de ameaçá-la nas ruas e nas pistas. E desde então ele está por aí, pronto para oferecer tanto desempenho quanto uma Ferrari por uma fração do preço de uma Ferrari. Ele até a superou na GTE Pro em Le Mans, lembra? Foi em 2015, com o C7.R.

A Ford nunca teve isso. Ela até começou com esse negócio de esportivos por causa da Ferrari. Dizem que o Thunderbird foi inspirado pela Ferrari 250 de Henry Ford II — que, dizem, foi um presente de Enzo a Henry Ford. Depois a Ford tentou comprar a Ferrari justamente por esta razão: eles queriam alguém que fizesse carros esportivos para eles, mas a negociação deu errado e aí você já sabe o que aconteceu.

A Ferrari que inspirou o Ford Thunderbird – e a origem de Ford vs. Ferrari

E depois disso tudo o que a Ford fez foi o Mustang e seus esportivos populares europeus — o Escort, o Sierra, o Fiesta, o Capri e o Puma. Em 2004, para comemorar os 40 anos do GT40, eles fizeram um GT de rua e, depois, em 2015 para comemorar os 50 anos da vitória em Le Mans, eles fizeram um outro Ford GT. E só.

Chega a ser estranho a Ford jamais ter pensado em rivalizar com a Ferrari também nas ruas. Afinal, a Ford foi atrás da Ferrari porque queria esportivos de rua. A briga com Enzo não foi causada por causa disso, mas foi um efeito colateral deste projeto da Ford. Aí eles desviam do objetivo para dar uma lição no velhinho italiano e depois se dão por satisfeitos? Sem vender nenhum esportivo para o público? E aquela história dos esportivos de rua?

Isso, na verdade, aconteceu. A Ford tentou fazer uma “Ferrari americana” para brigar com a Ferrari no segmento dos supercarros. O problema foi que ela não conseguiu.

 

O projeto GN34

No início dos anos 1980 a Porsche e a Ferrari estavam fazendo uma boa grana nos EUA com a venda de esportivos de alto valor agregado. A GM acabava no embalo com seu Corvette: os dois europeus criavam o desejo no público e quem não podia pagar uma Ferrari ou um Porsche, acabava levando um Corvette. Era um bom negócio.

Tão bom que a Ford percebeu que poderia estar comendo uma fatia deste bolo. Ela só precisava de um carro que fosse tão rápido quanto uma Ferrari e um Porsche, mas custasse tanto quanto um Corvette — algo que o próprio Corvette fazia. Na época a Ford dos EUA não tinha grande coisa para oferecer a quem quisesse um carro de alto desempenho. Estamos falando do início dos anos 1980, quando o Mustang era um esportivo de quatro cilindros, recém-renascido após a desastrosa segunda geração, baseada no Ford Pinto.

Mas também estamos falando do início dos anos 1980, quando a Ford havia acabado de montar nos EUA sua Special Vehicles Operation (SVO), a versão americana da British Special Vehicle Engineering Group, a divisão responsável pelo Capri Injection e pelo Sierra Cosworth na Europa. A SVO já tinha uma criação muito bem-sucedida, que era o Mustang SVO, um projeto liderado por Mike Kranefuss, o cara que colocou os Capri para correr — e vencer — no turismo europeu frente a esportivos mais caros como o BMW CSL “Batmóvel”.

Se alguém podia ajudar a Ford a fazer um esportivo para brigar com a Ferrari, esse cara era Kranefuss e sua SVO. Em outubro de 1983, um grupo de diretores da Ford finalizou um estudo de caso para produzir este esportivo. E eles fizeram do jeito que os catadores de feijão gostam: trouxeram números e mostraram que havia dinheiro e condições de fazer um carro destes.

Quando esse estudo chegou à SVO durante seu desenvolvimento, Kranefuss abraçou a ideia com força e não quis mais largar. Aquilo era mais que um projeto, era um sonho para ele e sua equipe de 30 engenheiros, designers e estrategistas. Nascia ali o projeto GN34.

O briefing era simples e direto: entregar desempenho de Ferrari a preço de Corvette.

Para isso, a SVO logo percebeu que seria preciso de um pouco mais de sofisticação do que se encontrava no Corvette. Eles precisavam de uma plataforma de motor central-traseiro e design de ponta para convencer alguém de que aquela era uma “Ferrari americana” sem ter que dizer isso. Eles precisavam, portanto, de um chassi de ponta e um motor de alto desempenho.

O motor não deveria ser um problema, mas naquele início dos anos 1980 era. A Ford havia acabado de sair dos anos 1970, que matou a alta-performance nos EUA. O V8 estava muito longe no horizonte — ele só chegaria em 1990. Eles precisavam de algo mais próximo, porque comprar um motor de terceiros estava fora de cogitação devido ao custo.

Mas havia uma solução: no início de 1984 a Yamaha já estava desenvolvendo um V6 de comando duplo e potência específica elevada que seria usado em um futuro lançamento da Ford. A SVO sabia disso e decidiu que aquele seria o motor ideal para o projeto. Afinal, ele era um V6 moderno e tecnológico e que poderia ter deslocamento ampliado, se fosse o caso. Um quatro-cilindros turbo contra uma Ferrari V8 não teria muito apelo, mas um V6 japonês ultra-sofisticado sim.

Com o motor decidido, o pessoal da SVO começou a pensar no estilo do carro. O problema nem era desenhá-lo, mas produzir um carro com motor central-traseiro. Nenhuma fábrica da Ford tinha capacidade para fazer 20.000 unidades anuais daquele negócio. Eles precisariam encontrar um fornecedor europeu.

Logo ao chegar na Europa a Ford já tinha dois nomes em mãos. A Heuliez, da França, e a Italdesign da Itália. Os franceses estavam muito interessados e chegaram a desenvolver algumas propostas especulativas, enquanto a Italdesign tinha capacidade de desenvolver o estilo do carro e as adaptações de projeto para que ele pudesse ser produzido na Europa — no caso pela Heuliez.

A Ford deu sorte. A Italdesign estava trabalhando em um conceito de motor central-traseiro chamado Maya (esse aí acima). Ele era muitíssimo parecido com o Lotus Esprit e, ao que tudo indica, Giorgetto Giugiaro, dizem, esperava que a Lotus o contratasse para fazer a reestilização do esportivo. O golpe de mestre de Giugiaro veio em março daquele ano de 1984, quando ele perguntou à Ford se eles não forneceriam um V6 para equipar a versão final do Maya. A SVO topou porque sabia que uma plataforma pronta para o seu motor seria um argumento forte de negociação para aprovar o carro com o pessoal do último andar da sede da Ford.

O projeto GN34 agora tinha um chassi, uma carroceria e um motor. Só faltava a aprovação.

 

Ford vs. Ferrari Ford vs. Ford

Estava tudo bom demais para ser verdade. Em julho de 1984, apenas nove meses depois da ideia inicial, a SVO levou suas primeiras propostas a Don Petersen, então presidente da Ford, e seus conselheiros. Os estrategistas de produto checaram as contas e confirmaram que havia muito dinheiro para recolher com este carro. Mas durante as reuniões uma voz contrária se pronunciou.

Stuart Frey, vice-presidente de desenvolvimento de produtos, teve uma reação inesperada. Ele questionou, ponto a ponto, os problemas que poderiam ocorrer em termos de garantia, qualidade de construção, segurança e custos adicionais. Frey havia passado sua vida inteira desenvolvendo carros na Ford. Se havia alguém na fábrica que sabia dos riscos de se fazer um carro de valor agregado tão alto com produção terceirizada, este alguém era ele. E para ele, o GN34 era um projeto arriscado demais.

Depois de dizer, de forma branda, que não via motivos para se fazer um carro fora da Ford quando eles tinham uma equipe de engenharia imensa dentro da empresa, Frey pediu que a SVO trouxesse alternativas mais baratas.

O pessoal da SVO sabia que aquela era uma guerra de egos. Frey era o chefão, um cara experiente e bem-sucedido. Ele queria ter certeza de que fazer o carro fora da Ford era realmente a melhor alternativa. E para descobrir isso, eles precisavam explorar as outras alternativas.

O esportivo do Sierra da Italdesign

A SVO então seguiu o roteiro. Achou no Sierra a plataforma adequada para as alternativas e pediu à Italdesign que desenvolvesse algo. Os italianos, que queriam o contrato, desenvolveram um mockup usando os elementos estruturais do Sierra.

A proposta da Italdesign

Como havia a questão política, a SVO pediu ainda que os designers da Ford desenvolvessem uma opção com uma plataforma modificada do Sierra, na qual o V6 fosse posicionado de forma mais baixa no monobloco. Por último, eles apresentariam como terceira opção o Italdesign Maya.

A proposta da Ford baseada no Sierra

A construção dos conceitos durou cinco meses — eles ficaram prontos em dezembro de 1984. Com os três carros em mãos, a SVO realizou uma clínica com consumidores na qual os três ficaram lado a lado e os clientes deveriam indicar sua preferência. O Maya, com motor central-traseiro, foi o vencedor.

A proposta da Ford

Um grande avanço, mas o tempo estava jogando contra o projeto. Frey havia dado 10 meses para a SVO voltar com algo melhor. E cinco meses já haviam sido gastos com a produção dos conceitos e validação do design pelo público. A Italdesign foi encarregada de construir um protótipo de testes, que acabou batizado Maya EM — era um Maya simplificado com um chassi funcional e um desenvolvimento inicial da dinâmica do carro.

Em setembro de 1985 o protótipo ficou pronto e foi avaliado por ninguém menos que Jackie Stewart, na época um parceiro comercial da Ford nos EUA. Chamar um tri-campeão mundial de F1 foi uma estratégia ousada. Se ele gostasse do carro, eles teriam a credencial de Stewart para apresentar ao chefão. Se Stewart detestasse o carro… o projeto morreria ali mesmo.

Mas tudo correu bem: o Maya EM era mais competitivo que Porsche 944, Ferrari 308 e Corvette ZR1, não apenas em desempenho, mas também em conforto. Ele não era excessivamente macio como o Corvette, nem firme demais como o Porsche.

Com a mecânica resolvida, eles precisavam resolver o visual do carro. O Maya era um carro conceito da Italdesign, ele não poderia simplesmente trocar seus emblemas e fingir que seria um Ford a partir de então. E mais: tinha a questão do desenvolvimento in-house. Todo mundo na Ford sabia que o projeto GN34 estava em andamento. E um destes “todo mundo” era o vice-presidente de design, Don Kopka, que pediu aos designers da Ford que enviassem sua proposta e solicitassem outra ao estúdio Ghia (que era da Ford).

Com o tempo se esgotando, a Ford tinha quatro GN34: o Maya EM, a proposta atualizada da Italdesign, a proposta da Ghia e a proposta dos designers da Ford. Os quatro foram colocados no salão de apresentações da Ford e submetidos a mais uma clínica com consumidores. Incrivelmente os dois protótipos da Italdesign foram preteridos e restaram apenas as duas propostas da Ford — uma delas da Ghia, lembra?

A Ford então organizou mais uma clínica com consumidores, desta vez com proprietários de Ferrari, Porsche e Corvette, no final de 1985. Foi outro momento crítico para o projeto: se o público-alvo do carro não achasse o carro atraente ou achasse seu preço alto demais para um esportivo sem a marca Porsche/Ferrari/Corvette, o GN34 estaria acabado.

O resultado: os clientes gostaram do design da Ghia e acharam que o carro custava o mesmo que uma Ferrari. Quando eles souberam que o carro era um Ford, eles revisaram o palpite e disseram que o carro parecia mais caro que o Porsche 944 e o Corvette. E ele seria mais barato que os dois. O projeto GN34 estava salvo. Era hora de colocá-lo em testes e, depois, levá-lo de volta ao alto escalão.

Foram feitos mais três protótipos do GN34. Um deles era baseado no Escort, com um V6 SHO, e os outros dois eram baseados no De Tomaso Pantera, porém com o chassi próprio do GN34, que foi montado pela Roush Engineering. Um deles tinha o V6 SHO e o outro tinha um V8 modificado, ambos com transeixo ZF.

 

A Ferrari ganha… sem saber

Eu não sei por que você está empolgado com essa história… o final não é feliz. Ou você já viu um supercarro da Ford dos anos 1980? A essa altura você deve estar esperando para saber como é que um projeto tão avançado não foi colocado logo em produção.

O problema foi justamente o que Frey havia questionado na primeira apresentação. O GN34 era um carro globalizado. Seu design era italiano, seu motor era japonês. Sua transmissão era alemã, seu chassi era inglês e sua produção seria feita por franceses. E foi esta produção francesa que colocou tudo a perder: em julho de 1986 o dólar teve uma desvalorização de 20% frente ao franco (a moeda antiga da França, anterior ao euro). Com o câmbio desfavorável da noite para o dia, a margem do carro foi drasticamente diminuída.

A Ford precisava tomar uma decisão: produzir um supercarro e correr o risco de ter prejuízo, ou usar o dinheiro para desenvolver um carro mais convencional, de grande volume?

Àquela altura, Bob Lutz liderava a divisão de picapes da Ford nos EUA, e estava propondo o desenvolvimento de um Bronco de quatro portas. Um carro que ele e sua equipe chamavam de Sport Utility Vehicle e que tinha potencial para revolucionar o mercado. E bem… era Bob Lutz dizendo que tinha um produto matador que poderia explodir os cofres da Ford de tanto dinheiro que eles ganhariam. Como competir com isso?

E foi assim que a Ferrari da Ford, o GN34, acabou engavetado. Frey avisou e, infelizmente (talvez até para ele) ele estava certo. Quanto ao carro de Lutz, ele se tornou o Ford Explorer e cumpriu a promessa de trazer todo aquele dinheiro.

O sonho de um supercarro da Ford só foi realizado em 2005, quando o Ford GT foi lançado. Mas ele não era barato, nem melhor que os Porsche ou as Ferrari ou mesmo os Corvette. Era mais uma homenagem da Ford a si mesma do que um produto para disputar o mercado.

Ironicamente, depois de quase quatro décadas, não é a Ford quem está fazendo um supercarro. É a Ferrari que está fazendo um SUV.  Essas voltas que o mundo dá…


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